Mesmo sendo pouco dada a saudosismos, tenho essa noite na memória, e não só eu, pois que quando nos encontramos – os da geração de sessenta – e falamos do antigamente na universidade, vem sempre à baila a prisão dos 1.500. Mil novecentos e sessenta e dois. 1962 foi um período marcante para todos nós da resistência, para o movimento associativo e para o regime.
Estávamos às centenas, sentados no chão por tudo o que era espaço ocupável na cantina da Cidade Universitária de Lisboa. Reclamávamos a possibilidade de comemoração do Dia do Estudante e havia até um grupo de jovens universitários em greve de fome. Era o culminar de uma luta que vinha de muito antes.
Pela noite dentro, foram chegando mais estudantes que vinham juntar-se a nós. Isto porque, ao cair da noite, começou a correr que a PIDE ia aparecer e fazer prisões logo que a maioria dos que, durante o dia, ali haviam permanecido fosse para casa. Perante este «diz-se que», quem ia embora não foi e desencadeou-se um movimento de telefonemas (de cabines) para colegas ausentes, a chamá-los ali. Com excepção das meninas dos lares universitários, quase não ficou colega por contactar. «Liga à Emília, eu falo aos jornalistas do República…» Acordados eles e as famílias pela noite dentro, os apoiantes do movimento associativo começaram a chegar. Viam-se entrar, como que estremunhados. Em alguns casos, tinham-se escapado de sapatos na mão, pelo corredor da casa fora, fugindo ao controlo paternal – elas, sobretudo, que a moral vigente não lhes dava cobertura em saídas nocturnas. Um pé-de-vento. Chegaram muitos. Não admitiam que, no dia seguinte, viessem dizer – como era costume do governo – que apenas uma minoria, sem significado, estava naquela luta. Não era verdade, a Universidade de Lisboa, na quase totalidade dos alunos e muitos, muitos docentes, apoiava os dirigentes do movimento associativo, o que era evidente nas reuniões plenárias em que apareciam aos milhares. Por isso, logo que começou a circular que naquela noite ia tudo dentro, até os habitualmente mais difíceis de convencer a agirem se levantaram da cama e foram para lá.
O previsto – e que durante a noite era já aguardado por todos – aconteceu mesmo. O regime não aguentou nem a pressão da contestação, em crescendo na universidade, nem a coesão dos dirigentes e do movimento estudantil.
A vida não lhes corria mesmo nada de feição com as inúmeras greves operárias desse ano, e agora eram até os meninos da burguesia a criar-lhes problemas? Só faltava essa… Decidiram cortar o mal pela raiz – que já era tarde – e antes de perderem totalmente o controlo da situação, prenderam de uma assentada 1.500 jovens – na esmagadora maioria, oriundos das classes sociais tradicionalmente afectas ao regime (era, não esqueçamos, a Universidade enormemente elitista do início da década de 60). Zás! Tudo «dentro». Intimidados por esta acção repressiva, talvez os pais tivessem mão nos seus filhos.
Lembro-me de que ainda o sol não tinha aparecido no horizonte quando na curva à esquerda, lá ao fundo, surgiram como coelhos saídos da toca, num caminhar lento, dezenas de camionetas da polícia, azuis e enormes. Uns minutos depois, ao longo da fachada do edifício e mais adiante, só se viam polícias de metralhadora aperrada. Um cenário de ocupação.
As camionetas cercaram os espaços envolventes da Cantina e avançavam uma a uma para junto do edifício, Estacionavam, para se encherem com jovens alunos, à medida que eram detidos. Rapazes numas camionetas, raparigas noutras, que não eram consentidas misturas, claro.
A detenção de 1.500 pessoas não teria sido, em quaisquer circunstâncias, um acto de execução rápida, mas nos termos em que decorreu demorou horas e foi acompanhada de uma chacota geral. Estávamos conscientes daquilo que nos movia, sabíamos o que nos esperava, mas éramos jovens e bem dispostos.
Na verdade, naquela madrugada, o militar de alta patente, responsável pela acção preparava-se para entrar no edifício onde «os rebeldes se encontravam acantonados» e, de megafone na mão, anunciar: «Todos quantos se encontram aqui estão detidos. Fazem o favor de me acompanhar». Enchia rapidamente as camionetas, o governo encerrava temporariamente a cantina e assunto arrumado.
Ainda tentou, contudo não conseguiu agir com uma tal presteza. Foi-lhe lembrado, de imediato, que para cumprir a legalidade teria de comunicar individualmente com os que pretendia deter, dando formalmente, a cada um, ordem de detenção e indicação para que o acompanhasse. Acabou reconhecendo ser legítima a pretensão dos dirigentes da RIA (Reunião Inter Associações) e deu início à operação, segundo o que lhe fora reclamado.
Indescritível, o que então se passou.
Num dos lados da sala, encontravam-se, deitados e assistidos por médicos, os estudantes em greve de fome. No resto do edifício, havia gente em todos os espaços. O homem avançava por entre aquela massa compacta de jovens, uns sentados junto às mesas, outros no chão e nas escadas (alguns envolvidos por cobertores, o que dificultava a memorização da sua imagem) e, apontando com o pingalim, dirigia-se directamente a uns cinco de cada vez: «O senhor está detido, acompanhe-me. A senhora está detida, acompanhe-me. O senhor está detido, acompanhe-me”, etc.
As pessoas punham-se obediente e prontamente de pé, seguiam-no uns poucos de metros e, subitamente, nas suas costas, sentavam-se de novo no meio dos colegas que cobriam o chão. À camioneta chegava quando muito um – o que ia mais perto de si. O homem apercebia-se disso, mas sempre emproado, e mais ou menos paciente, regressava ao interior da cantina para novas detenções individuais. Entretanto, “a malta” (como se dizia na altura) ria. Galhofa muda.
A intenção de quem passara aquela espontânea “palavra de ordem” era, porém, bem mais importante do que a simples desobediência: pretendia-se retardar a operação, dar tempo a que a cidade acordasse, se iniciasse o movimento de idas para o trabalho, as lojas fossem abrindo, e o povo de Lisboa desse conta da passagem das camionetas da polícia, cheias de jovens. A repressão sobre os estudantes ficava, desse modo, à vista de todos.
Assim aconteceu. Em algumas camionetas, sobretudo nas das raparigas, porque atravessaram o Centro e a Baixa, para subirem ao Chiado, escreviam-se bilhetes, em papel de cadernos, com a frase «1.500 estudantes presos, esta manhã, por quererem comemorar o Dia do Estudante» e deitavam-se pelas janelas, para a rua.
Os rapazes foram levados, uns para Caxias, outros para o Quartel da Parede.
Nós, raparigas, por sermos apenas cerca de uma centena (eram tempos em que os pais não autorizavam saídas das filhas, à noite…), fomos para o Governo Civil.
Metidas, como sardinhas em lata, nos calabouços – umas trinta por cada minúscula sala.
Essa espécie de cela tinha capacidade para umas oito pessoas, nem uma só cama, e apenas um estrado em madeira, sem colchão, onde dormia quem por lá passava a noite. Assim sendo, só uma parte de nós podia sentar-se, a maioria tinha que ficar de pé. Totalmente fechados, sem janelas, estes calabouços eram iluminados por uma lâmpada de luz frouxa. A única via de renovação do ar era uma pequeníssima abertura na porta, destinada à comunicação com as guardas.
À tarde já nos tínhamos organizado de modo a podermos, rotativamente, por grupos, dormir no estrado ou sentar-nos. Mas a atmosfera começou a ficar sem oxigénio e houve quem começasse a ter grandes dores de cabeça. «Se não comermos, vamos cair desmaiadas e levam-nos para o hospital ou têm que nos pôr na rua.» Foi assim que se decidiu entrar em greve de fome, como forma de se pressionar as autoridades para uma libertação imediata. «Colegas dos outros calabouços, comunicamos-vos que temos connosco duas tabletes de chocolate e vamos dividi-las por algumas das nossas, as que têm dores de cabeça!» Nesse dia, foi a única vez que alguém comeu, mas a boa disposição, apesar disso, continuava. A algazarra feminina não esmorecia nem com a fome, nem com a saturação do ar.
Num calabouço perto de nós, estava uma mulher que, em aflição com a vida, na noite anterior à nossa chegada, tinha tentado suicidar-se, atirando-se da ponte Duarte Pacheco e que, por isso mesmo, havia sido presa. Quando chegou ao Governo Civil, a polícia retirara-lhe o relógio de pulso e a criatura desesperada – agora mais, com a “expropriação” – gritava, pedindo que lho devolvessem. Em vão, que nem guardas havia por perto. Isto foi o que viemos a saber, graças à intervenção de uma das nossas.
De facto, quando da nossa entrada, ouvimo-la em grande gritaria, mas logo parou de chorar, atenta àquela invasão de «mulherio». Uns minutos depois, recomeçou.
A dada altura, a Gabriela, uma das jovens estudantes que se encontravam no calabouço ao lado do meu, aproximou-se da pequena janela na porta e questionou-a acerca da razão da sua prisão e do seu impressionante choro.
(Entretanto, todas nós, emudecidas pela curiosidade, seguíamos atentamente o diálogo).
Uma vez informada, a colega procurou acalmá-la e dar-lhe umas palavrinhas de alento, garantindo-lhe a nossa solidariedade para a recuperação do relógio. A criatura calou-se.
Entusiasmada com a reacção da «companheira» de prisão – que entretanto se mantinha em profundo silêncio – a G. prosseguia. Nas restantes celas, tudo à escuta.
Durante uns minutos, no sossego do corredor, já só se ouvia a voz animadora da nossa G., claramente satisfeita com o êxito da sua prédica.
Puro e breve engano, o seu (e o nosso). A Gabriela não tardou a desistir. A do relógio retomara o choro, de novo em altos berros, mas tinha passado a clamar: «As meninas falam assim porque já estão habituadas a vir cá parar, nessas rusgas que eles fazem durante a noite… Falam bem, falam… mas eu quero o meu relógio (pausa). Quero o meu relógio! Falam bem, falam… (pausa). Quero o meu relógio! Falam bem, falam…»
Já tarde na noite, começámos a ser libertadas aos poucos e a desgraçada ainda clamava pelo relógio. Quando a G. passou em frente dela, olhou-a um pouco murcha, mas ainda lhe disse, em jeito de esclarecimento: «Olhe que somos estudantes, ouviu? E vamos pedir aos guardas que lhe dêem o relógio.»
Por momentos, voltou a fazer-se silêncio naquele calabouço.
(In Saudações, Flausinas, Moedas e Simones, Campo das Letras, 2006)
Quarta-feira, 11.Mar.2009 at 12:03:48
Que me lembre, foi este o melhor texto que li com a descrição deste episódio marcante da crise de 62! E o único de produção feminina.
E, a esta distância, sabe bem ler uma abordagem a uma situação dramática com um final tão bem humorado!! Gostei imenso! Felicito-a!
No ano seguinte, em Coimbra, chegaram muitos dos estudantes que participaram activamente no Dia de Estudante e na crise da Universidade de Lisboa. Um deles foi mesmo o escolhido pelo Conselho das Repúblicas (a lista de esquerda) como candidato a Presidente da Associação Académica de Coimbra, mas que foi impedido pela comissão governamental (e pela PIDE)que se pronunciava sobre sobre tal assunto. Chamava-se António Correia de Campos…
Quarta-feira, 11.Mar.2009 at 01:03:03
Uma pequena rectificação ao meu comentário (a memória de vez em quando prega-me partidas…): o ano das eleições na AAC foi em 63/64, ano da reabertura da Associação, que tinha sido encerrada na sequência da “Tomada da Bastilha”, dois anos antes. Assim, os estudantes que acederam a Coimbra, teriam sido expulsos da Universidade de Lisboa no ano anterior e não no da crise de 62. (Por favor, quem tiver melhor memória que reponha a verdade).
Quarta-feira, 11.Mar.2009 at 04:03:20
Jorge Conceição:
Pois foi! A crise académica de 62 foi a primeira das grandes lutas de estudantes que varreram a Europa na década de 60. Para tentar travar esse movimento, o governo fascista procurou decepar-lhe a cabeça…e desenraizar os seus dirigentes, expulsando-os para outra Universidades. E foram vários os colegas, expulsos de Lisboa, que vieram a frequentar a Universidade de Coimbra em 63/64. Lembro-me do Albano Nunes e do Eurico Figueiredo porque fiz algumas cadeiras nesse ano na Fac. de Ciências em Coimbra e faziam parte do grupo com quem mais me dava. Curiosamente, um grupo de gente que, na esquerda, tem marcado a vida política: o João Amaral, o Barros Moura (já falecidos) e o Vital Moreira, o Correia Pinto, o Manuel Alegre. Outros, do mesmo grupo, são prestigiados profissionais, como o Zé Lopes de Almeida, o Ireneu Cruz, o Zé Calos Vasconcelos, o Fernando Bento Gomes e a Rute. Gosto pouco de referir nomes porque me ocorrem primeiro aqueles a quem estive afectivamente mais ligada e, certamente, outros ficarão embrulhados neste meu combate com as teclas do computador (sempre a dizerem-me “rápido, vai rápido, que se te acaba o tempo” – nabices de info-ignorante…)
Quarta-feira, 11.Mar.2009 at 11:03:42
Helena Pato:
Acho bem citar nomes, mesmo que alguns não ocorram na altura. Para além do lado afectivo que lhes está ligado, tais citações servem para mostrar que as lutas (as diversas que existiram) foram feitas por pessoas concretas, de carne e osso, com as suas faculdades e as suas limitações e não por seres anónimos ou por super-heróis.
Dos citados conheci, falei e trabalhei (na Associação) com quase todos eles, particularmente com o José Carlos Vasconcelos e, sobretudo, com um que foi um grande amigo, o Zé Barros Moura. Mas apetece-me citar mais dois nomes, estes de dois dos expulsos da Universidade de Lisboa e que foram meus amigos, com os quais tive relações mais próximas: o Luís Bagulho e o João Resende (Janot). E também a irmã deste e a Laura Barros Moura. E vários outros de que também não me ocorrem os nomes.
Em 63/64 também fiz algumas cadeiras na Faculdade de Ciências, seguindo a “rotina” dos estudantes de Engenharia e de Ciências da Universidade do Porto. E foi excelente tal oportunidade de enrequecimento e de troca de experiências entre jovens estudantes de meios estudantis tão diversos, como os de Lisboa, do Porto e de Coimbra.
Segunda-feira, 16.Mar.2009 at 12:03:55
Belo relato de um episódio “épico”, Lena! Foi a época do “nascimento” de muitos de nós para a luta política!…