1. Os primeiros passos do feminismo foram dados no sentido de se reivindicar a igualdade formal entre homens e mulheres. Caminho aparentemente óbvio, sobretudo na época em que nasceu (o período da Revolução Francesa e das suas proclamações igualitárias), mas que a breve trecho se veio a revelar particularmente sinuoso. Três exemplos demonstram como este foi, historicamente, um percurso minado.
Olympe de Gouges é o primeiro caso. Glosando a Carta dos Direitos do Homem e do Cidadão, Olympe escreve, em 1791, uma Carta dos Direitos da Mulher e da Cidadã, na qual defende a igualdade entre homens e mulheres no domínio público e privado. A ousadia da francesa foi severamente punida: a 3 de Novembro de 1793, Olympe de Gouge é guilhotinada. A República proclamava a universalidade dos direitos mas não podia tolerar que as mulheres deles usufruíssem.
Durante o século XIX, a revolução industrial, com o consequente abandono dos campos e o crescimento do proletariado, empurrou as mulheres para o mercado de trabalho. É no contexto das duras condições de trabalho existentes nesta altura que vamos encontrar o segundo exemplo. A 8 de Março de 1857, as operárias têxteis de uma fábrica de Nova Iorque entram em greve, exigindo a redução do horário de 16 para 10 horas. Recebiam, pelo mesmo trabalho, um terço do ordenado dos homens. Fecham-se na fábrica, onde entretanto é declarado um incêndio. Cento e vinte e nove tecelãs morrem queimadas. A carga dramática do acontecimento fez com que, alguns anos depois, a data fosse escolhida para comemorar o Dia Internacional da Mulher.
Nos primeiros anos, a comemoração serviu, essencialmente, para se reclamar o direito de voto e de participação das mulheres nas instâncias públicas. Esta atitude política, que ficou na história com o nome de «sufragismo», foi dando lentamente os seus frutos. Muito lentamente, por vezes. Se em alguns países as mulheres acedem com razoável rapidez ao voto – Nova Zelândia (1893), Austrália (1901), Finlândia (1906), Noruega (1913), Dinamarca e Islândia (1915), Rússia e Holanda (1917) – noutros lugares a caminhada foi mais longa. Em Itália e França o voto feminino chega em 1945 e na Suiça em 1971.
Em Portugal, o sufragismo também fez o seu caminho. Chega-se assim ao terceiro exemplo, o exemplo caseiro de como o trajecto da paridade não foi (não é) fácil nem consentido. Em 1911, Carolina Beatriz Ângelo, escudando-se numa leitura alternativa da Constituição, que permitia o voto aos «cidadãos portugueses com mais de 21 anos, que soubessem ler e escrever e fossem chefes de família», invoca a sua condição de «chefe de família» e obriga os tribunais a deixarem-na votar. A médica votou mas o gesto acabou por não se multiplicar. Em 1918, ainda durante a I República, a Constituição é alterada de modo a que apenas fossem eleitores os «cidadãos do sexo masculino». Apesar das sucessivas aberturas que a lei foi proporcionando, só na sequência da nova conjuntura proveniente do 25 de Abril de 1974, homens e mulheres adquiriram iguais direitos políticos.
2. Após a segunda guerra mundial, o feminismo ressurgiu com vigor redobrado, sob a influência de obras como O segundo sexo (1949) da francesa Simone de Beauvoir e A mística feminina (1963) da americana Betty Friedan. Nesta segunda vaga do feminismo, consolidada no contexto das fortes mutações políticas e culturais que atravessaram os anos sessenta e setenta, já não se tratava de conquistar direitos civis para as mulheres, mas antes de descrever a sua condição de oprimidas pela cultura masculina, de revelar os mecanismos psicossociais dessa marginalização e de projectar estratégias capazes de proporcionar às mulheres uma libertação integral, que incluísse também o corpo e os desejos. A interrupção voluntária da gravidez, a radical igualdade nos salários e o acesso a postos de responsabilidade são outras das reivindicações do novo movimento feminista.
Muitos dirão que estas batalhas, com quase meio século, estão hoje ultrapassadas. Talvez não seja bem assim. As múltiplas questões ligadas aos direitos sexuais e reprodutivos, que afectam predominantemente as mulheres, continuam a encontrar resistências a vários níveis. Em muitos locais do globo, práticas de subjugação e até de mutilação corporal permanecem vivas. No plano laboral, o género feminino continua a ser descriminado: o Lobby Europeu das Mulheres alertava, em 2001, para o facto de, na União Europeia, elas ganharem em média 76% do salário pago aos homens pelo mesmo trabalho. Ao nível dos processos de decisão, subsiste uma série de «telhados de vidro» que impede o acesso feminino aos lugares de maior poder. No domínio da conciliação entre vida profissional e vida familiar, a mentalidade dominante ainda estipula que sejam elas a assumir o grosso das tarefas domésticas, situação confirmada num estudo recente, coordenado por Lígia Amâncio, que concluiu que as mulheres trabalham em casa, por semana, mais 19 horas do que os homens. Daí resulta uma maior dificuldade em dispor de tempo para dedicar ao trabalho, à formação, ao estudo ou ao lazer.
Este olhar impressivo mostra como, apesar dos constantes anátemas, o ideário feminista permanece actual. Com outros conteúdos, sem dúvida, mas com a mesma motivação: a tal que era proclamada pelos assassinos de Olympe de Gouges.
(Publicado originalmente em Passado / Presente e também na página digital de Le Monde Diplomatique, 23 de Abril de 2007.)
Domingo, 08.Mar.2009 at 11:03:46
E o teu artigo Miguel também é actual,pois existe uma tendência para esquecer que a premissa fundamental do feminismo,
é a luta contra o poder discriminatório do capital!
Por arraste ,os homens beneficiosos e vitimas simultâneamente deste sistema,reproduziram e reproduzem este poder!
Ontem as feministas,os homosexuais ,os ciganos ,os emigrantes ,os “outros”e os que pensam e agem diferentemente do canon.
Hoje estes, mais os velhos.
Segunda-feira, 09.Mar.2009 at 11:03:55
No mundo actual existem inúmeros exemplos de segregação sexista, mas gostava de salientar dois paradigmáticos, por serem de instituições que têm um grande peso na nossa sociedade, com bases e princípios éticos contratando com as suas práticas correntes: a Igreja Católica (que nega o sacerdócio ao sexo feminino) e a Maçonaria (que, apesar da sua Liberdade, Igualdade e Fraternidade, faz os seus conclaves unisexuais).
Segunda-feira, 09.Mar.2009 at 12:03:20
Uma dúvida: erro se disser que já li que a Maçonaria já aceita mulheres?
Segunda-feira, 09.Mar.2009 at 02:03:48
João Tunes: eu não sei muito sobre a Maçonaria. Porém o GOL é exclusivamente masculino. Noutras obediências (se é assim que se diz) maçónicas em Portugal, existe pelo menos outra exclusivamente masculina, uma exclusivamente feminina e, parece-me, uma menos clássica que ensaia uma abertura aos dois sexos, a qual, tanto quanto sei, é ultra-minoritária.
Segunda-feira, 09.Mar.2009 at 04:03:07
OK, Jorge Conceição. Mas, embora com restrições nesta ou naquela Loja, não se pode dizer com rigor que a Maçonaria é unissexual. Portanto e sobre isto, a Taça pertence à Igreja Católica. O seu a seu dono.
Segunda-feira, 09.Mar.2009 at 06:03:21
Miguel Cardina, permita-me que faça uma citação de Olympe de Gouges e que acrescente mais algumas palavras.
A citação : « La loi doit être l’expression de la volonté générale; toutes les citoyennes et citoyens doivent concourir personnellement, ou par leurs représentants, à sa formation; elIe doit être la même pour tous; toutes les citoyennes et tous lecitoyens, étant égaux à ses yeux, doivent également être admissibles à toutes dignités, places et emplois publics, selon leurs capacités, et sans autres distinctions que celles de leurs vertus et de leurs talents »
Olympe de Gouges foi uma dama bastante turbulenta. Propôs-se como defensora do rei, no processo a que foi sujeito. Foi grande admiradora de Mirabeau, o “traidor” descoberto como tal depois da morte. Pegou-se com Robespierre, a quem chamou “animal amphibie” e ainda com Marat, para ela, “un avorton de l’humanité”. De certo modo, ao defender a liberdade para as mulheres, procedeu como se já a tivesse em pleno.
Morre guilhotinada a 3 de Novembro de 1973.
In “Histoire et dictionnaire de la Révolution Française, Jean Tulard e outros, Robert Laffont, Bouquins, 1987», págs 171 et 855.
Segunda-feira, 09.Mar.2009 at 10:03:31
Que o José Eduardo de Sousa me permita a graça: e o que fez a Olympe de Gouge durante os quase dois séculos em que esteve no cárcere à espera que a lâmina lhe afagasse o pescoço?
Terça-feira, 10.Mar.2009 at 10:03:02
João Tunes
Não sei o que fez durante esse tempo. Com um pouco mais ainda lá estava à espera do corte de pescoço. Era bom, íamos visitá-la para dois dedos de conversa. Se a idade ainda lho permitisse. Era mulher para ter muito de contar e de dizer, se para aí estivesse virada.
Tem piada, o dicionário que citei parece manifestar uma espécie de horror, de bom tom e de bom uso, ao Terror e a Robespierre. E as suas referências a Olympe de Gouge indiciarão (?) ter sido guilhotinada por ser “malcriada” com Robespierre.
Um abraço
Sousa
Quinta-feira, 12.Mar.2009 at 01:03:08
Ana, não há dúvida de que se trata de uma luta do presente, que se intersecta com muitas outras.
Em relação ao tema que apareceu nos comentários – a maçonaria feminina – ficou tudo um bocadinho enevoado… mas nunca se sabe se não aparece por aqui alguém das sociedades discretas a esclarecer-nos.
Quinta-feira, 12.Mar.2009 at 10:03:53
Eis um acesso a alguma informação sobre maçonaria feminina
http://www.glfp.pt/glfp/glfp.htm
que muito provavelmente já conhecem.
Há um livro de Fernando Marques da Costa que eu não estou em condições de abonar. Não lhe encontrei data de edição, mas acontece ver velha a maçonaria de que trata. Oliveira Marques indica-o na bibliografia do seu Dicionário de Maçonaria Portugues, Editorial Delta, 1986
Tive algumas leituras sobre a maçonaria, mas, mesmo assim, só posso dizer que não sei nada do assunto
Domingo, 22.Mar.2009 at 04:03:13
No século XVIII, é caso para referir ainda, para além de Olympe de Gouges, a carismática Madame Roland. Embora muito diferentes, as duas foram consideradas, pelos revolucionários de serviço, indignas de subir às tribunas, mas merecedoras do cadafalso, por ousarem transgredir os limites e os papéis a que se pretendia confiná-las.