Quando a conheci, há poucos anos, a primeira e maior de uma longa lista de surpresas que colhi do seu contacto mais íntimo, foi a extrema jovialidade, a gargalhada fácil, tanto mais desconcertantes quanto vindas de quem esperava sinais contrários, marcas visíveis de um passado de luta, de sacrifícios e privações inimagináveis. 

Um optimismo assim, uma tal resistência aos duros golpes que a vida não lhe poupou, tinham certamente um segredo. Foi esse segredo que persegui ao longo das muitas horas de conversa que resultaram num dos mais ricos e surpreendentes documento de História Oral que até hoje realizei. A entrevista tinha um guião, mas a breve trecho ele foi abandonado, quando e porque percebi que a vida desta mulher não era um fluir contínuo cronologicamente arrumado, mas um poderoso caudal que nada nem ninguém conseguiu deter ou sequer desviar dos trilhos traçados por uma natureza tão indomável quanto a selva africana onde nasceu em 1918. A visão dos negros algemados que, em regime de escravatura, trabalhavam nas minas de ouro, em contraste com a extrema beleza dos cânticos que entoavam, revelou-lhe que, apesar de criança,  «já não aceitava a maldade dos homens».   

Chegada a Portugal, para cursar Engenharia no IIL, abraçou cedo a causa da luta anti-fascista, integrando-se nos movimentos estudantis de oposição, e logo a seguir adere em 1942 ao PCP

Nos primeiros anos de militância deu largas a todo o entusiasmo e energia contagiante de quem acreditava poder mudar o mundo. Dinamizou um grupo muito alargado de jovens (comunistas e não comunistas), através da criação de uma biblioteca, da promoção de cursos de alfabetização para operários, de peditórios e festas de solidariedade para os mais carenciados. 

A esperança, a alegria e a ingenuidade desse tempo exaltante, reserva para outros mais sombrios, cedo abriram caminho à entrada na idade adulta dos afectos e dos combates. O casamento com José Magro, destacado quadro comunista, muito mais do que um compromisso pessoal, representou um compromisso com o colectivo partidário, a um nível de exigência e perigosidade que longe de a fazerem vacilar, mais fortaleceram as suas opções, por mais sofrimento pessoal que lhe exigissem. 

Obrigada a mergulhar na clandestinidade, de 1945 a 57, foi muito além da disciplina e do rigor no cumprimento das tarefas específicas das mulheres: manter a segurança das casas clandestinas, alimentar rotinas de aparente normalidade, aquietar a curiosidade dos vizinhos, encenar cuidadosamente a vida de um casal vulgar. Suportou o isolamento e a solidão, a doença, a monotonia e a burocratização do trabalho, o stress permanente, as súbitas mudanças de casa (passou ao todo por catorze casas clandestinas) por cada vez que se levantavam suspeitas (com ou sem fundamento) de que a PIDE andava por perto. Inventou comida e roupa, desmanchou pacientemente à mão fatos gastos do marido, costurando-os depois do lado do avesso, para que parecessem novos, construiu mobílias de caixotes velhos e, tentando romper com a tradicional subalternidade das «companheiras», colaborou activamente nas publicações clandestinas do partido, às quais, por sua iniciativa, se juntou A Voz das Camaradas.

Prática, inteligente, desembaraçada e bonita, percebe-se que soube usar cada um destes atributos, de acordo com os desafios que enfrentava, como se tudo tivesse sido fácil, e não fossem permanentemente armadilhados os caminhos que pisava com desarmante segurança e à vontade: «Sabíamos que podíamos ser mortos em qualquer esquina, como aconteceu com os nossos camaradas Alex, Dias Coelho e outros. Mas isso não nos metia medo».

Medo, teve apenas de não suportar a separação forçada da filha: «Fui obrigada a mandar a minha filha com nove meses para casa dos avós. Não tinha dinheiro para a alimentar e pensei que eu poderia aguentar todos os sacrifícios, mas não tinha o direito de obrigar a minha filha a fazê-los. E assim, de comum acordo, mandámos a pequenina para junto dos nossos pais. Foi-nos muito difícil suportar esta decisão. Eu e o Zé chorámos muito!»

A austera contenção do relato mais amplia a devastação interior que nunca pode perdoar a quem lhe roubou o único fio de luz entre os escombros. Por uma vez o sorriso desaparece, ensombrado pela dúvida sobre essa opção dilacerante.

Mas havia que continuar, acrescentando agora a terrível arma da revolta a essa mistura explosiva de orgulho, sentido prático e espírito de missão que fez dela um caso sério para a policia politica. Na verdade, desde a humilhação à adulação, de todos os expedientes os seus funcionários mais zelosos e expeditos se serviram para o assalto final a esse reduto de honradez e coragem, ininquadrável nas suas cartilhas para «extermínio dos comunistas».

Logo em 1945, no dia em que o marido fazia 25 anos, a casa de ambos foi assaltada e Aida responde com o silêncio obstinado ao cerrado interrogatório acerca do paradeiro de José Magro. A frase que lhe lançaram – «que espécie de mulher é a senhora que não sabe do marido?» – obteve o mesmo resultado que a estratégia oposta, mais tarde seguida pelo sinistro inspector Gouveia, por altura da sua prisão, em 1957, quando as provas dadas lhe permitiram trabalho político de invulgar responsabilidade para uma comunista: controle da Zona Oriental do Comité Local de Lisboa.

Depois de uma longa prelecção em que não poupou na retórica adulatória – «mulher excepcional, pessoa de eleição» – o inspector concluiu pacificador: «Bem, podemos ficar todos bem. Pode ficar a senhora bem, pode ficar o partido bem, e pode ficar a polícia bem…». Não podiam, ambos o sabiam.

E a abrupta e violenta reacção de Aida – «Está-me a fazer um convite à traição»

foi apenas a primeira das muitas lições de dignidade (para os carrascos) e de sobrevivência (para as vítimas) em que, sempre prática e decidida, transformou o seu período de prisão. Condenada por dois anos e meio, acabou por ver a sua pena prolongada até aos seis anos, por ser um «elemento perigoso». Perigoso, antes de mais para a paz podre da consciência dos seus carrascos, como prova a invulgar quantidade de castigos (desde a privação de visitas, refeições, recreio, livros, até ao total isolamento por semanas ou meses) pelas suas constantes «indisciplinas», recebidos com a tranquilidade de quem «Necessariamente estava a defender qualquer coisa de muito sagrado para o bem geral das companheiras de luta. Necessariamente, não podia ficar inactiva e tinha por obrigação enfrentar o inimigo no seu covil. Nunca me furtei a dar o peito no combate diário pela conquista de melhores condições de vida carcerária».

Enfrentar o inimigo no seu covil, olhá-lo cara a cara, imperturbável, desafiadora até à provocação, arrastá-lo habilmente para a zona-limite do confronto entre a fraqueza dos fortes e a força dos fracos, foi esse o seu maior trunfo, como quando exigia aos pides que a conduziam de Caxias a António Maria Cardoso para interrogatórios na máxima segurança, que parassem pelo caminho para comprar linhas de bordar…

Ou quando, em protesto pela péssima qualidade da comida servida às presas, pediu uma audiência ao director da prisão e, colocando-lhe o prato na frente, perguntou se ele comia aquilo…

Ou ainda quando, durante um interrogatório, à pergunta se estava com medo, disparou: «Não! Não estou com medo. Não tenho medo dos polícias . Nunca tive medo dos bichos. Não tenho medo dos animais – é preciso dizer que vivi a minha infância na selva de Angola, onde nasci.»

Talvez resida afinal aqui a chave desse segredo que ao longo de meses tentei desvendar: no tesouro de uma infância feliz que fez dela uma força da natureza plena de paixão e determinação, mas que é humana, tão profundamente humana quanto a história de um grande amor: amor por um homem, pela sua filha, pela sua família, pelos seus amigos, pelo seu partido, pelo seu país. Viver cada uma destas paixões sem fazer cedências ou concessões a nenhuma delas, mas vivê-las na sua totalidade e inelutável contradição teve um preço incalculável: a própria Vida.

Como incalculável é o respeito, a seriedade, ou mesmo a emoção com que esta vida merece ser conhecida, quer se tenha nascido antes, depois, ou durante o acontecimento que lhe deu sentido: a Revolução do 25 de Abril de 1974.