Quando preparava o livro Acção Revolucionária Armada – ARA, um dos materiais mais impressivos que consultei foi o dossier da PIDE/DGS intitulado «Muxima». Os meios usados, o esforço dispendido, as dezenas ou centenas de pessoas interrogadas, incomodadas ou presas revelam o empenho posto na perseguição da ARA e também as rotinas de uma polícia que não tinha preocupações orçamentais. Uma razão suplementar justificava tanto empenho: é que um ano e meio depois de acções armadas com grande impacte político, a PIDE não conseguia encontrara a ARA.

«Muxima» foi o nome dado pela ARA a uma acção de sabotagem, em Janeiro de 1972, de material de guerra que se encontrava no cais de Alcântara, em Lisboa, para ser transportado para a guerra colonial em Angola no navio Muxima.

Antes, porém, de revelar a PIDE em acção, talvez seja avisado, sobretudo para os mais novos, explicar o que foi a ARA e contextualizar a investigação.

ARA é o acrónimo de «Acção Revolucionária Armada» (ver aqui e aqui), uma organização criada pelo PCP, que desencadeou acções armadas contra a ditadura e em especial contra a guerra colonial, de 1970 a Maio de 1973. Os principais alvos eram armamento e meios logísticos da guerra colonial e infra-estruturas, sensíveis e mediáticas cuja destruição contribuísse para o derrubamento do regime fascista.

A ARA era uma organização pequena, muito compartimentada, na qual a maioria dos militantes não se conhecia: doze quadros clandestinos, doze a quinze operacionais «legais», três a cinco dezenas de elementos de apoio. O autor deste post, que tinha aliás programado para a sua vida caminho bem distinto, decidiu envolver-se no levantamento desta organização: um trabalho de sapa organizativo, paciente e desesperante, durante quase cinco anos, porque por duas vezes a PIDE quase destruiu todos o tudo, com vagas de prisões no PCP, que acabaram por atingir a ARA ou as suas margens e por obrigar a pôr de lado estruturas e quadros caídos em perigo. Oito meses após o início, foi preso o seu principal dirigente, Rogério de Carvalho, membro do Comité Central do PCP que, resistindo às torturas da PIDE, evitou que eu e outros fôssemos presos também.

No período operacional, a ARA foi dirigida por um «comando central» constituído por Jaime Serra (operário então com 49 anos de idade e que era na altura membro da comissão executiva, o órgão supremo do PCP no interior do país), Francisco Miguel (operário, 63 anos, membro do Comité Central do PCP, vinte e dois anos de prisão em Peniche e Caxias e a maior parte no Tarrafal) e Raimundo Narciso (ex-estudante do IST, 32 anos, quadro do PCP na clandestinidade).

A ARA foi contemporânea das Brigadas Revolucionárias (BR), outra organização que desencadeou acções armadas com objectivos idênticos aos da ARA e que era dirigida por Carlos Antunes e Isabel do Carmo, dissidentes do PCP. A ARA era uma organização autónoma do ponto de vista organizativo e operacional e assumidamente não terrorista, aliás como as BR, e evitou ao máximo vítimas pessoais, tendo-se registado uma única morte por acidente.

O comunicado que a ARA enviou às agências de comunicação social nacionais e estrangeiras sobre a acção «Muxima» começava assim:

«Na madrugada do dia 12 de Janeiro [de 1972] um comando da ARA colocou duas potentes cargas, uma explosiva e outra incendiária, num dos armazéns do cais de Alcântara em Lisboa. Em consequência da forte explosão e do incêndio que se lhe seguiu foi destruída grande quantidade de material pronto a embarcar para a guerra colonial, entre o qual se encontrava importante material de guerra recém-chegado de França e destinado a unidades de caçadores pára-quedistas…»

O Diário de Notícias de 13 de Janeiro de 1972, informava que:

«Toda a zona ribeirinha da cidade foi alertada (…) pouco antes das sete horas [hora escolhida por se situar no intervalo dos turnos de trabalho no cais] por uma grande explosão a que se seguiu a passagem de (…) cerca de duzentos homens e de trinta viaturas dos bombeiros, praticamente todos os efectivos em serviço, na altura…» «As chamas chegaram a atingir o Muxima atracado a cerca de trinta metros de distância e destruíram mais de metade do edifício…»

Sobre o material de guerra destruído, os jornais, impedidos pela Censura, nada disseram. No entanto, mesmo censurada, a Imprensa tinha grande utilidade para a luta que travávamos, como o comprova esta acção de sabotagem, pois ela teve origem precisamente numa notícia da imprensa diária de Novembro de 1971:

«Traduzindo a preocupação do Governo do Professor Marcelo Caetano na defesa da integridade da Pátria, em breve seguirá para Angola, moderno armamento adquirido em França, destinado às nossas tropas de pára-quedistas que não dão tréguas aos terroristas comandados do estrangeiro.»

Lemos e relemos a notícia. Afinal, se nos dizíamos irmãos de luta dos que em África combatiam pelos seus países, não podíamos ficar só pelas belas palavras. A leitura da notícia dera-nos uma «sugestão» e, pacientemente, nunca mais a largámos até a transformarmos, dois meses depois, na operação «Muxima».