Um texto de Paulo Pinto (*)

Todos os povos têm os seus heróis, os seus mitos fundadores, o seu imaginário fabuloso, o seu cimento identitário. Porém, a massa deste é formada não só por aquilo que une, mas também por aquilo que tenta o efeito contrário. Todos os povos têm inimigos. Não exactamente os inimigos reais, que podem variar consoante as épocas e as conjunturas, mas aqueles que são percepcionados desta forma, os que estão entranhados no fundo da alma de cada povo e sedimentados no imaginário colectivo ao longo de muitas gerações. Historicamente, os inimigos são sempre os nossos vizinhos, os que nos disputam os recursos, os que ameaçam a nossa integridade ou nos tolhem os movimentos. A pior sorte esteve sempre reservada aos pequenos povos que vivem em zonas de disputa de grandes potências hegemónicas e rivais. Os Balcãs e o Cáucaso, mosaicos de povos, línguas e religiões, teimam em recordar-nos este facto. Os polacos têm o supremo azar de estar entre alemães (prussianos, melhor dizendo) e russos. Os persas não morrem de amores por turcos e árabes. Os coreanos têm a poderosa China e o aguerrido Japão sempre à espreita.

Os portugueses, encurralados numa ponta da Europa, também temem desde sempre os seus vizinhos. Os castelhanos, não os «espanhóis», porque Espanha é uma entidade política relativamente recente e artificial. Uma relação de amor-ódio, de atracção e repulsa com muito de inveja à mistura. Se a existência de Portugal implica a quebra da unidade peninsular, também é verdade que essa unidade teve que ser construída do centro para as periferias, de Castela-Leão para as outras regiões. Foi o que aconteceu, um movimento centrípeto, um vórtex iniciado nos século XIII, com a união das duas coroas, e reforçado, de forma irreversível, a partir dos finais do século XV. Portugal ficou de fora. Porém, a atracção era difícil de resistir. A nobreza portuguesa sempre sentiu uma enorme inveja pela sua congénere castelhana, pela riqueza das principais casas, pela extensão dos seus domínios, pela opulência das suas rendas. Até a Coroa portuguesa da Casa de Avis, a mesma que emergira em 1385 na luta contra Castela, não resistiu a uma aproximação dinástica gradual mas inexorável, que a curto prazo resultaria inevitavelmente numa união peninsular, como veio a ocorrer em 1580.

Passadas algumas décadas, a história foi reescrita. Inventou-se uma «Restauração» para legitimar um golpe de estado e uma nova dinastia. E para a posteridade ficou a memória, também ela sedimentada ao longo de gerações, de um «período filipino», de um «domínio espanhol», de uma «perda da independência», de uma «usurpação» e de outros epítetos bem menos simpáticos para designar o período em que Portugal, Castela e Aragão partilharam um rei comum, uma monarquia que era, à data, a mais poderosa da Europa e que dirigia o primeiro império à escala planetária, «onde o Sol nunca se punha». Essa memória de usurpação e de «período negro» subsiste até hoje, nos manuais escolares, nas obras de divulgação, no senso comum. Os Filipes são os únicos reis de Portugal que não têm direito ao tratamento de “Dom”. E, geralmente, são até nomeados pelo título da Coroa de Castela e não de Portugal, ou seja, «Filipe II, III e IV» em vez de «D. Filipe I, II e III». São reis estrangeiros, para todos os efeitos.

Esquecido na penumbra fica o facto de as mais sérias e intencionais tentativas de união entre Portugal e Castela não terem partido de lá, mas de cá. D. João II, o príncipe perfeito, o nosso monarca iluminado do Renascimento, que fez correr muita tinta há pouco mais de uma década, em odes laudatórias à sua sageza, ao seu conhecimento premonitório sobre viagens atlânticas e Projectos das Índias, sonhava na verdade unir Portugal a Castela. E por pouco que não o conseguiu, não fosse o cavalo do príncipe D. Afonso ter baqueado no dia 13 de Julho de 1491, causando-lhe a morte. Já estava casado com a filha dos Reis Católicos e pronto para unir as três grandes coroas peninsulares. Igual sorte funesta teve, poucos anos mais tarde, o infante D. Miguel, filho de D. Manuel I e também ele jurado herdeiro em Portugal, Castela e Aragão. O desejo de unir as três coroas era de tal maneira intenso que foi baptizado D. Miguel da Paz, como forma de celebração de uma nova era de união e de paz ibérica. Estranha obsessão esta, a de um reino sobre o qual se afirma tantas vezes que estava de costas voltadas para Castela e virado para o mar e para as empresas ultramarinas.

A longo prazo, o que persistiu na memória colectiva foi apenas o resultado final, o clímax desse longo processo de aproximação desejada. E assim, de uma forma perfeitamente acidental, pois não era suposto que o jovem D. Sebastião desaparecesse em África e deixasse o reino sem herdeiro, as seis décadas de União Ibérica passaram a uma espécie de Dark Ages do imaginário nacional, sinónimo de decadência, de opressão, de guerra, de perseguições, de submissão a um poder estrangeiro, em contraste com a luz da Golden Age dos Descobrimentos que a precedera. Submissão a um rei estrangeiro, mas não um rei qualquer: o rei de Castela, o rei vizinho. Até o nosso feriado nacional foi criado em tons carregados, sombrios, teatrais, trágicos. Camões foi, de facto, um herói da propaganda republicana, que conheceu o seu auge nas celebrações do 3º Centenário da sua morte. O Dia de Portugal não é uma data de celebração de uma batalha, de um tratado, da morte de um mártir da causa nacional. Não é Aljubarrota, o Tratado de Zamora, um qualquer Tiradentes. Não é sequer a data da «Restauração». É a data da morte de um poeta que cantou glórias e heróis passados, numa era luminosa que morreu com ele, em tom premonitório e de mau augúrio. Lembro-me, algures por volta de 1970, de uma colecção de cromos sobre a vida de Camões que terminava precisamente com um epitáfio deste tipo: «a 10 de Junho, já as tropas do Duque de Alba entravam em território português, apagou-se a chama do Poeta e, com ele, a independência nacional». O «período filipino» é o luto dos Descobrimentos, a ressaca da pimenta e da canela, o purgatório do ego nacional, que veio, todavia, a ressuscitar após 60 anos de incubação e de amadurecimento.

A aversão aos espanhóis atravessou séculos. «De Espanha, nem bom vento, nem bom casamento», diz o ditado. Durante os séculos XVII e XVIII, Portugal pendeu, primeiro, para os vizinhos-nas-costas-dos-vizinhos, ou seja, a França, e depois para a velha aliada britânica, numa clara opção atlântica. As aventuras de Napoleão e os delírios de Manuel de Godoy agravaram a crispação. Só em 1861 é que surgiram por cá as primeiras teses iberistas, mal-aceites de um modo geral e pronta e publicamente contestadas por uma «Comissão Central 1º de Dezembro». Este núcleo de feroz oposição às ideias que preconizavam a aproximação e, eventualmente, a união com Espanha veio posteriormente a dar origem à Sociedade História da Independência de Portugal, instituição que ainda existe e que conta entre os seus objectivos a «promoção do culto do amor pela pátria» e «a preservação da dignidade de Portugal como nação livre e independente».

Nem a sintonia entre Salazar e Franco fez abrandar a tonalidade sombria, céptica, carregada, das percepções e impressões acerca do país vizinho, herança de séculos de desconfiança sedimentada. Espanha era o país da guerra civil, a terra de pesetas fracas perante o orgulhoso escudo forte, de prostitutas, de caramelos e de bárbaras touradas de morte, onde havia terrorismo e atentados a ministros, uma terra sem os nossos brandos costumes, sem a nossa tradição civilizadora enraizada em África e na Ásia, sem a nossa vocação atlântica, multicultural e multirracial. Espanha pariu conquistadores sanguinários que destruíram civilizações inteiras, com um passado feito de convulsões internas e de envolvimento em guerras europeias. Portugal, pelo contrário, concebeu navegadores pacíficos que descobriram o mundo, com uma história marcada por feitos heróicos de amor à Pátria, em perfeita sintonia com o facto de possuir a mais velha fronteira da Europa. Uma Europa turbulenta e longínqua. Lembro-me de uma caricatura germanófila da 2ª Guerra, onde uma URSS aflita espera a ajuda do Tio Sam. Um lusito barra o caminho e diz, orgulhoso: «isto aqui é Portugal!». A sua História apenas regista um período negro, do qual veio, porém, a renascer fortalecido e revigorado: precisamente, o do domínio espanhol.

Subitamente, Portugal vê-se parceiro da Espanha numa comunidade europeia, num processo que avança para uma união aduaneira e monetária. A união política está na calha. Vivemos numa época em que se discute uma Constituição Europeia e, posteriormente, um Tratado de Lisboa, que mais não são do que trilhos para uma futura Federação da Europa, alargada até às portas da Rússia e do Médio Oriente. Mas o que por cá suscita debate mais aceso não são os efeitos duráveis destes passos. São as simpatias iberistas de Saramago e a forma desabrida como as expõe. Ninguém parece preocupado em denunciar o risco de invasão por húngaros ou lituanos ou por a locomotiva da Europa estar longe, para lá dos Alpes. Mas sentimos a inundação de produtos, de peixe, de fruta, de empresas e de marcas espanholas. E paradoxalmente, olhamos para o quintal dos vizinhos e invejamos o seu «nível de vida», os seus salários, os seus índices, a sua dinâmica e o seu think big. Muitos sussurram que não se importavam de ser espanhóis, num misto de inveja, desencanto e oportunismo. Ontem como hoje, a ambivalência prevalece. Curiosamente, o único verdadeiro ponto de ruptura formal entre Portugal e Espanha está hoje relegado à condição de mera curiosidade de baú, uma teima de uns quantos indefectíveis, um assunto de que ninguém fala e toda a gente ignora ou prefere ignorar. Olivença é uma vila alentejana que foi ocupada pelas tropas espanholas há mais de dois séculos e nunca devolvida. O seu estatuto permanece num limbo que Portugal aceita na prática mas não reconhece de jure, numa Europa em vias de federalização, num mundo globalizado, numa era que alguns dizem ser de «fim da História. Os esconjuros do passado bem que podiam começar por aqui. Não seria muito, mas sempre era um começo.

 
(*) Biografia de Paulo Pinto