Filha de várias gerações de militares, quer por parte da mãe, quer por parte do pai, contrariando o horror à política, cultivado por tradição de família, descobriu por si própria a sua dimensão mais nobre: a preocupação com as pessoas, sobretudo as mais desfavorecidas. Por elas desceu ao inferno dos bairros mais miseráveis de Lisboa, onde os operários vendiam o próprio sangue para pagar a renda da barraca que lhes servia de casa, forçou burocracias, escancarou portas para acompanhar e apoiar doentes e famílias no hospital de Santa Maria, fez seu o quotidiano dos operários qualificados da BP em Cabo Ruivo.

Por onde passou procurou pessoas, vítimas de injustiças e flagelações iníquas, inscreveu o seu nome na PIDE, pela recusa activa e militante em ser o que a ditadura pedia a uma assistente social: «a gota de óleo na engrenagem», teceu uma rede apertada de causas e de afectos que sempre a acompanhou, mesmo quando outras vozes a chamavam para uma outra frente de combate, como aconteceu nas campanhas eleitorais de 1958, 62, 69 e 73. Contudo, nesta nova frente, mais visível e convidativa ao protagonismo pessoal, sempre deixou para outros (sempre muitos, sempre demais…) esse estatuto, porfiando no seu combate discreto mas eficaz.

Como assistente social foi política e como politica foi assistente social. São palavras suas, que resumem todo um programa que o passar do tempo e o agravamento da situação do país tornava mais exigente e urgente, perante os insucessos sucessivos das lutas da oposição, particularmente dos militares que apoiava e acompanhava de perto, lado a lado com o companheiro de uma vida: João Varela Gomes. Quando este foi gravemente ferido naquela que ficou como última tentativa de derrube do regime, antes do 25 de Abril – o golpe de Beja de 1962 – foi como Antígona que enfrentou sozinha a face mais terrível do regime fascista: o seu braço armado, com todas as suas prepotências e desumanidades.

Foi ainda como Antígona que cumpriu o doloroso périplo pelas cadeias do fascismo, acusada de «tentativa de alteração da Constituição por rebelião à mão armada» ou seja, por participação activa no golpe. A desproporção da acusação convidava a uma recusa frontal, que a poderia livrar de ano e meio de prisão, restituindo-a à companhia dos quatro filhos pequenos, afastados também do pai, entretanto preso.

Mas não foi esse o caminho. Gravou para si a única declaração que faria à PIDE, e repetiu-a as vezes necessárias sem a mínima hesitação: «Não participei nem na preparação nem no assalto ao Quartel de Beja, mas estou de alma e coração com o meu marido e os companheiros dele». As paredes de Caxias guardaram de si a memória incisiva da coragem e do amor com que atravessou esses subterrâneos do tempo, passando o testemunho intacto a outros companheiros. Coragem e amor que perseguiu e reinventou num quotidiano de chumbo, com estrelas secretas resgatadas ao registo de lembranças felizes. Pequenas cintilações com que escondia as lágrimas de si própria, mas sobretudo dos carrascos, para os poder olhar de frente, cara a cara, imperturbável e desconcertante. Ela podia imaginar o terrível efeito desse olhar vazio de emoção que transformava o confronto entre a vítima e o carrasco no decisivo encontro entre a fraqueza dos fortes e a força dos fracos.

Por isso nunca lhe assentou a figura da «mãezinha ou da mulherzinha em lágrimas». Mãe Gena era (e é) o seu nome de família. Escreveu-lhe o seu marido João Varela Gomes, da Penitenciária de Lisboa, a 28 de Janeiro de 1962: «Agradeço-te a tua coragem que sei nunca faltará. Nem a dignidade. São qualidades que fazem parte de ti». Nunca faltaram, antes se acrescentaram por cada hora que passou do lado de lá do humano. Apenas alcançou a liberdade, à margem de qualquer lógica de cálculo ou de conveniência, e muito menos de renúncia, entregou o resto das suas energias à causa dos presos políticos, cuja tragédia, silenciada pelo poder fascista, jurou denunciar, antes de mais como imperativo de consciência. Infatigável, mobilizou velhas e novas vontades, lançando as bases da futura Comissão de Socorro aos Presos Políticos.

Foi assim até ao 25 de Abril, que ela apenas pôde festejar a 26, com a saída dos presos de Caxias. Foi o dia mais feliz de uma vida, que merece ser lembrada como o que de melhor a nossa memória pode contrapor ao quotidiano amargo e medíocre de hoje, tão contrário à alegria gregária do pais renovado de há trinta e quatro anos que Mãe Gena/ Mãe Coragem ajudou a construir.

 
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