Sous l`histoire, la mémoire et l´oubli.
Sous la mémoire et l´oubli, la vie.
Mais écrire la vie est une autre histoire.
Inachévement.
Paul Ricoeur

O que é um homem no infinito? A angustiante e radical questão de Pascal não terá nunca resposta satisfatória. Sabemo-lo bem. Mas a História Oral (HO) tem, pelo menos, o mérito de aceitar o apaixonante e arriscado desafio de recentrar o papel do indivíduo na história. Através justamente da memória, a mais épica das suas faculdades, segundo Benjamim. A HO, mais do que qualquer outro ramo da história, vive, portanto, numa estrita (quase total) dependência da memória. É claro que a memória (mental, escrita ou oral) é a matéria principal da história, o que a obriga a um confronto em permanência com o imenso processo dialéctico da memória e do esquecimento, que vivem quer indivíduos, quer sociedades. No caso concreto da HO o indivíduo que rememora ou evoca o tempo vivido, fá-lo sempre de forma selectiva, o que significa que se há lembranças resgatadas, em contrapartida há outras esquecidas e excluídas de forma consciente ou inconsciente. Como escreve Fernando Catroga, «a memória individual é formada pela coexistência, tensional e nem sempre pacífica, de vária memórias (pessoais, familiares, grupais, regionais, nacionais) em permanente construção devido à incessante mudança do presente em passado e às consequentes alterações ocorridas no campo das representações do presente» (Catroga, 2001:16).

Mas a memória oral, porque pessoal e directa, tem o inegável fascínio de ser mais próxima e mais viva, se comparada com qualquer das outras modalidades da memória, além de ser absolutamente indispensável para todos aqueles acontecimentos que de uma forma ou outra surpreendem o normal curso da história de longa duração, mais preocupada com as impessoais estruturas económicas e sociais e a suas permanências seculares, do que com o tempo de curta duração do acontecimento, que subverte essas estruturas, de alguma forma curto-circuitando esse processo e invadindo a cena com protagonistas que improvisam e não são apenas figurantes que debitam um papel já conhecido. São os momentos de crise como as revoluções em que a pura racionalidade abstracta dos conceitos e dos sistemas, cede face à invasão de elementos supra ou infra racionais, como as paixões políticas, a fidelidade aos valores e aos ideais, a coragem, a honra, o respeito ou desprezo pelas instituições, os sentimentos altruístas, a sensibilidade democrática.

Mas, como lembra Jacques le Goff, «tal como o passado não é a história mas o seu objecto, da mesma forma a memória não é a história, mas sim um dos seus objectos, sendo também um nível elementar de elaboração histórica» (Le Goff, 1988: 221). O autor pretende assim chamar a atenção para ingénuos entusiasmos em relação à importância do testemunho oral, sublinhando que «se se pretende dizer que o recurso à história oral, às autobiografias, à história subjectiva, amplia a base do trabalho científico, modifica a imagem do passado, dá a palavra aos esquecidos da história, tal é perfeitamente razoável» (Le Goff, 1988: 221). Mas acrescenta também que não se pode colocar no mesmo plano «produção autobiográfica» e «produção profissional».

É justamente aqui que tem lugar um importante debate sobre o estatuto científico-académico da HO. Um debate que, apenas iniciado entre nós, me parece desde o início desviado para questões acidentais ou periféricas. Não discuto a importância das questões técnicas que envolvem a produção e conservação do documento oral (natureza da relação entrevistador/entrevistado, momento ideal da gravação, a sua duração e frequência, formas de conservação, inventariação e utilização), mas elas parecem-me estranhamente sobrevalorizadas em relação às questões epistemológicas que deverão estar a montante. Isto é: a HO é tão somente uma ferramenta, uma técnica, uma metodologia auxiliar das diversas áreas do conhecimento, ou mais do que isso, tem plena legitimidade a constituir-se como uma nova disciplina académica? A que necessidades responde e como explicar que o seu êxito seja muito maior justamente fora dos meios académicos?

Excluindo as correntes da historiografia mais conservadora, que remetem a HO para o domínio da pura subjectividade, que o mesmo é dizer para um terreno demasiado exposto e vulnerável ao risco do embuste, da falsidade ou da invenção, os historiadores começam a baixar o nível das resistências, utilizando progressivamente nas suas obras a HO, com uma importante ressalva: desde que entendida como meio e nunca como fim, ou seja como ferramenta, instrumento, mecanismo, recurso. Seja qual for a designação, a ideia parece clara: não reconhecer dignidade e autonomia à HO, à qual, sintomaticamente, preferem a designação de testemunho oral (é o caso de José Mattoso), que só se justifica enquanto instrumento ao serviço de uma interpretação histórica global. Não é, contudo, uma visão consensual. Em paralelo se vem afirmando uma outra, defensora da HO como disciplina autónoma, a única capaz de escutar a voz dos excluídos, trazer à luz do dia realidades «indescritíveis» e dar testemunho das situações extremas de sofrimento ou exaltação.

Finalmente, a questão de saber por que razão a comunidade académica resiste ao reconhecimento da HO, ao mesmo tempo que se recusa a conceder dignidade histórica aos muito e muitos trabalhos nesta área, desenvolvidos dentro, mas sobretudo fora do seu contexto. Muitas vezes essa desconfiança maior esconde-se por detrás de desconfianças menores, relativamente às técnicas de produção, arquivo e utilização, mas visam no fundo a grande questão do processo de validação e verificação dos documentos orais que a comunidade académica ainda encara como um monopólio seu. É como se o documento resultante de uma entrevista (em que colabora naturalmente, e apenas, o investigador e o entrevistado), precisasse de um certificado de validade que nenhum dos dois está em condições de assegurar, e que só uma entidade exterior – a academia – poderia fazer. Não discuto que os documentos orais (exactamente como os escritos) têm que estar sujeitos à crítica, mas não apenas à crítica da comunidade científica, que como a própria história tem abundantemente provado não é imune àquilo que tanto teme e pensa esconjurar: embustes, falsificações ou manipulações. Talvez uma crítica alargada, responsável e democrática seja o que mais falta faz à história em geral: oral ou escrita.

Como nos lembra Paul Ricoeur: «Não mos devemos jamais esquecer que tudo começa pelo testemunho, e não pelos arquivos, e que, seja o que for que possa faltar à sua fiabilidade, não dispomos, em última análise, de nada melhor do que o próprio testemunho para asseverar que alguma coisa se passou, à qual cada um declara ter assistido pessoalmente, face ao que, para além do recurso a outro tipo de documentos, nos resta sempre a confrontação entre diferentes testemunhos.» (Ricoeur, 2000: 182)

Continuando na senda deste autor, atingiremos o critério último de fiabilidade que incorpora, mas ultrapassa quer o procedimento técnico «artificial» do arquivista, quer o da investigação do juiz. O lugar da prova é, pois, o de uma outra instituição, que não é nem o arquivo, nem o tribunal, nem a academia. É a segurança do vínculo social que repousa na confiança na palavra do outro. Este vínculo fiduciário estende-se a todas as trocas, contratos e pactos, e transforma-se num habitus da comunidade, corporizado afinal numa regra de prudência: primeiro confiar na palavra do outro, em seguida duvidar, se fortes razões a isso obrigarem. O crédito dado à palavra do outro faz do mundo social um mundo intersubjectivamente partilhado. E esta partilha é a componente maior do que podemos chamar «senso comum». É ele que é duramente afectado quando as instituições políticas instauram um clima de vigilância mútua, de delação, de práticas mentirosas, que rompem pela base a confiança na linguagem. E conduzem à manipulação da memória e, consequentemente da história.

Para os mais relutantes em conceder dignidade histórica aos documentos recolhidos no registo único da oralidade, não resisto em invocar o que todos sabem, mas parecem esquecer: O testemunho constitui a estrutura fundamental da transição entre memória e história. Por isso a HO longe de ser uma conquista das mais modernas correntes da historiografia, tem, afinal, grandes tradições: é tão velha como a própria história, cujo pai (Heródoto) transpõe para a narrativa factual o imenso legado da narrativa poética do seu antecessor Homero. E, quanto a mim, a chave para a compreensão da origem e verdadeira natureza do conhecimento histórico (às quais parece ser tão urgente regressar) reside não apenas no consagrado historiador Heródoto, mas também no não menos célebre poeta Homero. Liga-os afinal, a prática magistral da narrativa (factual ou poética) como tentativa de nos aproximar o mais possível da realidade. Porque, como escreve Hannah Arendt, «a realidade é diferente da totalidade dos factos e dos acontecimentos e é mais do que esta, que, de qualquer modo não pode ser determinada. Aquele que diz o que é, conta sempre uma história e nessa história os factos particulares perdem a sua contingência e adquirem um significado humanamente compreensível» (Arendt, 1995: 58). E não é afinal o fim último de toda a ficção, tocar, mesmo ao de leve, os mistérios da realidade humana? E mais do que isso, torná-la suportável, mesmo nos limites da dor extrema ou da suprema alegria? Como nos diz Karen Blixen «todas as dores podem ser suportadas se as transformarmos em história ou se contarmos uma história sobre elas».

O regresso à dupla Homero/Heródoto, como matriz e horizonte da frágil fronteira entre história e literatura, parece-me mais do que bloqueio, sinalização de um caminho que, apontado desde a antiguidade, e após a longa deriva de séculos sob o império de um conceptualismo analítico redutor, abre para uma hermenêutica compreensiva como corolário de um pluralismo dinâmico que ligue ciência e arte, como os dois pólos da vida individual e colectiva. Como escreve Gilbert Durand: «A razão e a ciência só ligam os homens às coisas, mas o que liga os homens entre si, ao humilde nível das felicidades e das penas quotidianas da espécie humana é a representação afectiva, porque vivida. (…): depois do Museu Imaginário (de Northop) no sentido estrito, o museu dos ícones e das estátuas, é preciso apelar para um outro museu, é preciso generalizar um outro museu mais vasto que é o dos poemas» (Durand, 1993: 104).

Bibliografia
ARENDT, Hannah (1995), Verdade e Política., Lisboa: Relógio d´Água Editores.
CATROGA, Fernando (2001), Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto.
DURAND, Gilbert (1993), A Imaginação Simbólica. Lisboa: Edições 70.
LE GOFF, Jacques (1988), Histoire et Mémoire, Paris: Editions Gallimard.
RICOEUR, Paul (2000), La Mémoire, l´Histoire, l`Oubli. Paris: Éditions du Seuil.

Publicado originalmente em Passado/Presente.