Mascaras da Utopia - JOBarata

Foi apresentada ontem, em Lisboa, esta História do Teatro Universitário em Portugal (1938-1974), da autoria de José Oliveira Barata, numa excelente edição da Fundação Gulbenkian

Durante a sessão, o autor leu o belíssimo texto que a seguir se transcreve e que me enviou a meu pedido.
 

Todos os presentes lembrarão os versos de uma canção escrita e interpretada por um poeta francês, anarquista, admirador de Baudelaire, celebrante terno e laico da liturgia da solidão. Cantava ele e cantámos nós com ele tantas vezes:

Avec le temps…
Avec le temps, va, tout s’en va
On oublie le visage et l’on oublie la voix…

Somos sensíveis às palavras do poeta; com elas nos identificamos porque expressam o indizível; justifica-nos e apazigua-nos para além do prosaico: «o tempo tudo leva», «o tempo tudo cura», etc.

Paradoxalmente, porém, a tranquilidade que a poesia transmite desde sempre no consagrado topos do tempus fugit encontra na narratividade histórica um outro complemento para compreender o tempo enquanto cenário múltiplo onde se inscreve a apresentação, a representação, o jogo enquanto símbolo do mundo em que vivemos.

O leitor encontrará neste livro uma parte das muitas memórias pessoais e colectivas não apresentadas como um tempo que fugiu por entre as malhas do inexorável tempo cronológico, antes como temps vécue, condividido e partilhado e agora oferecido como tempo pensado, no que teve de compromisso cívico, de angustiados sobressaltos intelectuais e de generosa dádiva. Resgatar esses tempos, rememorar é um dever de memória, uma ética da recordação e também de dívida, na busca da justa memória – como assinala Paul Ricoeur – que o historiador tem que ter, quer no confronto com o passado, quer na narrativa que apresenta aos seus contemporâneos.

Tendo como bússola essa justa memória, percorreremos trilhos paralelos na busca de outras realidades ainda não desveladas e, porém, sempre com a consciência exacta de que o saber é finito, causador de angústia, no exacto sentido de que reflectir sobre os factos implica o rigor de não ser «bugiardo sul pretérito» como escreveu Leonardo da Vinci discorrendo sobre as relações entre pintura e literatura.

Inventariar as perplexidades e problemas que se perfilam a quem aceita percorrer os caminhos do Teatro Universitário — sobretudo em tempos de eufórico e fácil deslumbramento perante o diletantismo cultural — pode parecer inútil perda de tempo ou compungida reflexão, que, dificilmente cabe no quadro consumista que se vive, neste tempo neo-barroco onde mais que ser conta o parecer; e mais do que tudo aparecer. Porém, independentemente do que possa parecer a quem ler, ficará o testemunho não original, mas muito sentido, da urgente necessidade de se pensar na importância do estudo da nossa cultura, nomeadamente a que mais directamente se relaciona com a investigação presente. Ninguém ignora que perante a linguagem fria dos números e de siglas que cada um vai absorvendo num vazio investimento per capita a investigação e estudo sobre largas zonas da nossa história cultural carecem de apoios sólidos. Mas sabemos que assim não acontece. O estudo das humanidades, os trabalhos sobre os nossos fundos bibliográficos, não compensam. Surpreende mesmo que se assista a um quase obsessivo interesse pela discussão da nossa identidade nacional — tema cuja oportunidade não se discute —, apesar de ignorarmos muitas das fontes que, por certo, fornecem dados novos para uma análise histórica fundamentada sobre os itinerários que a nossa cultura tem percorrido; das suas zonas de penumbra até aos períodos mais luminosos.

Por isso o livro que agora se publica terá que ser visto como uma primeira tentativa para, de forma segura, se poder penetrar num mundo quase inexplorado entre nós.

Mais uma vez nos confrontamos com o penoso trabalho que, não despertando as fáceis notas dos opinion makers institucionalizados, estamos certos será gratamente recebido pelos que sabem que os trabalhos de investigação exigem sempre um trabalho preliminar de recensio sem o qual é impossível progredir.

O presente trabalho deu-nos o especial agrado de recuperar antigos afectos que as palavras sempre guardam, mesmo quando e onde por imperativo de informar recorremos à aparente frieza de seco repertório; queríamos igualmente que tivesse o papel de guia, cicerone, contacto primeiro que outros continuarão. Sempre, com a segurança tranquilizadora e bem hegeliana de quem sabe que a Idéia não tem pressa…

A documentação reunida não foi tida como monumento intocável e fixado de agora em diante como o repositório de toda a verdade. Ela constitui essencialmente a necessária autorização para rever uma realidade que decisivamente interferiu na paisagem cultural de um país onde a lucidez se confrontava com a bipolaridade oscilante entre o riso do sarcasmo e a depressão feita de queixas de almas jovens censuradas, recuperando as palavras de Natália Correia musicadas por José Mário Branco.

Os protagonistas directos desta narrativa viveram esse presente como horizonte de todos os possíveis, servido igualmente por todas as armas possíveis. O teatro foi uma delas e, como comprova a longa lista de intervenientes no vasto movimento do teatro universitário, a urgência de intervir não hierarquizava espaços nem níveis de intervenção.

O conjunto muito variado e desigual das experiências que o Teatro Universitário foi ensaiando ao sabor de uma irregular actividade aconselhou-nos ao longo do nosso trabalho, a recusa de qualquer redutora catalogação dos factos, pretendendo antes penetrar na conflitualidade, nas contradições programáticas, verificar como se viveram, aproveitaram e superaram êxitos e inêxitos, constatar a precariedade das estruturas e malgré tout o anónimo heroísmo da generosidade militante.

Neste jogo especular que a pesquisa científica dramatiza, procurámos as múltiplas máscaras que o teatro universitário foi representando para se representar a si próprio, expressando o pulsar de muitas gerações que, à sua maneira, viviam a realidade académica como um tempo intervalar «pensando», «sonhando» alternativas a construir. Outros cenários, onde se deambulava não com a máscara do embuste mas antes convictamente movidos pela procura da alteridade em que a máscara surgia como passaporte para percorrer um tempo e um espaço futuros; ou seja os da utopia.

A compreensão desse itinerário complexo e percorrido ao sabor do imediato, sem plano calculado, pode resumir-se à resposta de Camus quando o interrogaram porque fazia teatro universitário: «tout simplement parce que le Théâtre est un des liex du monde où je suis heureux».

José Oliveira Barata

 
José Oliveira Barata, Máscaras da Utopia. História do Teatro Universitário em Portugal. 1938-1974, Fundação Calouste Gulbenkian (396 p.)