Untitled-1Comunicação apresentada no dia 31 de Outubro no colóquio «As eleições de 1969 e as oposições. 40 anos depois», organizado pelo Instituto de História Contemporânea da FCSH/UNL.

1. Esta intervenção procura relatar o modo como as eleições foram perspectivadas pelo ambiente político-ideológico que se costuma chamar de «esquerda radical» ou «extrema-esquerda». Note-se, antes de mais, que este campo plural ainda se encontrava em processo de definição e estruturação nessa altura. Fazendo uma leitura algo esquemática da sua evolução, diríamos que em 1968 e 1969 se está na antecâmara de uma segunda fase. Se três ou quatro anos depois já existirá um conjunto vasto e hiper-ramificado de grupos maoístas, trotskistas, guerrilheiristas e socialistas de esquerda, uma boa parte destas futuras organizações ainda se encontrava em estado embrionário ou latente na altura em que o Estado Novo promove as suas eleições para a Assembleia Nacional.

2. Entre 1963 e 1964 – num contexto de sedução pelo fenómeno cubano e argelino, mas também na ressaca das lutas populares e estudantis do período de 1958 a 1962 – já haviam surgido grupos que criticavam a via pacifista do PCP. É o caso do MAR (Movimento de Acção Revolucionária, de João Cravinho, Nuno Bragança. Trigo de Abreu, Vítor Wengorovius, Manuel Lucena, Jorge Sampaio – alguns deles, aliás, estariam na CDE) ou do Grupo Revolucionário Português de Libertação (de Carlos Lança e Patrícia MacGowan Pinheiro, criado nas orlas da FPLN em Argel). Ambos os colectivos teriam vida efémera e pouco alcance político.

Mais significativos, porém, foram os textos de Francisco Martins Rodrigues e a constituição da Frente de Acção Popular (FAP) e do Comité Marxista-Leninista Português (CMLP). Esta franja nascente alinhava-se, em termos internacionais, com a China no conflito que a opôs à União Soviética e, domesticamente, propunha formas mais ousadas de combate ao regime ditatorial português, que passavam pela defesa do recurso às armas e pela crítica à tese da «revolução democrática e nacional» do PCP. Apesar disso, o CMLP teve uma vida curta e algo inglória. Em 1966, já a PIDE o havia praticamente desmembrado, e os activistas que de uma maneira ou de outra se lhe encontravam ligados procuraram refúgio no exílio europeu, alimentando o aparecimento de pequenos grupos que se reclamavam directa ou indirectamente do corte esquerdista com o comunismo de Cunhal.

3. Na segunda metade da década de sessenta, e pese embora a fraca expressão organizativa da «extrema-esquerda», a verdade é que o terreno se encontrava fértil para o desabrochar de uma consciência política mais radicalizada, sobretudo junto dos sectores juvenis. Nas universidades e nas escolas secundárias, o PCP começava a ver disputada a sua hegemonia por um leque heterogéneo de militâncias que se alimentavam da repulsa pela invasão da Checoslováquia e da admiração pelo fenómeno chinês; das leituras de Marx, Lenine, Gramsci, Rosa Luxemburgo e Mao e da recepção da ambiência libertária do Maio de 68; da simpatia pela acção anti-imperialista dos povos do chamado «Terceiro Mundo» e da contestação aberta à guerra colonial.

De facto, o prolongamento da guerra colonial, provocando uma generalizada insatisfação, foi sem dúvida um dos elementos mais marcantes no desgaste político, económico e militar do regime. Se é apenas a partir de 1969 que a juventude estudantil universitária incorpora a recusa da guerra e do colonialismo como um eixo fundamental da contestação (ainda que na crise coimbrã de 69 o tema esteja ausente), o certo é que o incremento das deserções e o progressivo alastrar de um sentimento anticolonial não atravessa os anos sessenta de forma continuada e crescente.

4. Em Fevereiro de 1968, foi precisamente uma manifestação contra a guerra – do Vietname, mas procurando atingir em ricochete a guerra levada a cabo em África – que marca o início de um novo campo à esquerda. Alguns dos seus dinamizadores estariam pouco depois na EDE (Esquerda Democrática Estudantil), como é o caso de Fernando Rosas, Amadeu Lopes Sabino, Arnaldo Matos e Jorge Almeida Fernandes. Alguns haviam sido do PCP ou estavam em processo de ruptura. Outros – é o caso paradigmático de Arnaldo Matos, que viera de Macau – mostravam-se já adeptos da China, lida através da imagem exaltante da revolução cultural em curso. A EDE edita onze documentos entre finais de 1968 e meados de 1970, documentos esses que vão denotando uma progressiva sedimentação da opção «marxista-leninista».

Perante o processo eleitoral, a EDE aspirava representar uma «terceira via» no conjunto das oposições. Criticava tanto o PCP como os socialistas, e considerava que se devia aproveitar o período eleitoral embora afastando qualquer hipótese de ir às urnas. A EDE rejeitava assim a ideia «segundo a qual o período eleitoral é necessariamente o período privilegiado da luta política»; mas também rejeitava «a fórmula eleições-traição», que acarretaria o «abstencionismo político e a paralisação da luta»[1].

Na opinião do colectivo, a subida ao poder de Marcelo Caetano correspondia a uma alteração qualitativa no que concerne às estruturas económicas e às alianças dentro das classes dirigentes. O Portugal agrário e pré-industrial estava a ser substituído através de amplos processos de modernização que alteravam a estrutura do capital. Afirmava-se, porém, a incapacidade de Marcelo em levar a cabo o seu desejado projecto de liberalização, em função das fortes contradições entre as elites económicas e a atrofiante permanência da guerra colonial.

Assim, tanto seria errado considerar que o marcelismo não vinha alterar em nada o regime, como acalentar esperanças políticas relativamente à prometida liberalização. Em consequência, seria de evitar fazer a luta contra o fascismo «sob a tradicional forma unitária com toda a burguesia não-monopolista», o que levaria as «forças populares a travarem uma luta em termos que não são necessariamente os seus», correndo o risco de um futuro isolamento. A luta deveria ser contra a burguesia monopolista, contra o capitalismo e contra o imperialismo, não esquecendo que a guerra colonial era o «principal nó de contradições do sistema capitalista que rege Portugal, país colonialista progressivamente colonizado pelo imperialismo».

Para a EDE as eleições não assumem uma importância «decisiva, básica», mas sim uma importância táctica, uma excelente oportunidade para «desencadear novos assaltos à fortaleza do capitalismo». Em termos organizativos, defende-se que a prioridade deve ser dada ao trabalho de base que compreenderia o lançamento de um movimento de juventude de cariz «novo, dinâmico e mobilizador» [2].

A EDE não participa na CDE mas intervém na dinamização um Movimento da Juventude – que tem elementos que participam na CDE – e que se estabelece como uma espécie de «fronteira externa» relativamente a essa plataforma eleitoral. Realizam-se vários convívios – na Arrábida e na Fonte da Telha, por exemplo – onde se discute a participação ou não nas eleições. Os jovens afectos à EDE defendiam a não participação – o «boicote activo à farsa eleitoral» – vindo a estar posteriormente, em Setembro de 1970, na fundação do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado).

5. Esta clivagem manifestou-se noutros lugares. O Tempo e o Modo, por exemplo, uma revista que esta esquerda radical começava a hegemonizar, realiza uma mesa redonda no rescaldo das eleições. Nela, alguns redactores questionam João Bénard da Costa, ainda director da publicação, sobre a sua presença nas listas da CDE e as opções realizadas por esta plataforma. Neste «jogo da verdade (possível)», Arnaldo Matos considera que «a contradição está não no ter participado, mas no querer participar sem querer ir até ao final». E Amadeu Lopes Sabino acrescenta: «a partir do momento em que não se lançou outro tipo (radical) de luta, deixou de ter significado o não ir às urnas» [3]. Tratava-se, pois, de entender as eleições de um ponto de vista anti-eleitoralista, capaz de insuflar disposição combativa nas massas, o que segundo estes sectores não havia acontecido. O próprio Lopes Sabino, num livro publicado este ano, esclarece:

Os mais radicais – entre os quais me incluía – eram pela pura e simples abstenção. Sempre entendi, e continuo a achar que estava certo, que qualquer participação nos plebiscitos eleitorais do Estado Novo, jogando uma partida cujo resultado era conhecido com antecedência, legitimava o regime e as suas regras e nada trazia de positivo para o antissalazarismo [4].

6. Surgido em França no final de 1968, O Comunista manifestava uma posição semelhante à da EDE. Em Agosto de 1969, publica um comunicado-cartaz no qual se afirma que a posição justa consiste em «aproveitar o período eleitoral para intensificar a agitação de massas, ao mesmo tempo que se prepara a organização revolucionária que poderá desencadear a luta pela tomada do poder». Assim sendo, declara-se necessário abandonar as «ilusões legalistas» e denunciar a «burla eleitoral» mas aproveitando o período para discutir «a falta de condições de vida, a guerra colonial, a exploração a que o trabalhador está sujeito» [5]. A verdade é que, sem expressão organizativa consistente no país, esta posição não saiu do domínio das intenções.

7. Por sua vez, o CMLP – herdeiro directo da ruptura de Francisco Martins Rodrigues e igualmente pouco expressivo no «interior» – assegura que «votar é trair» porque é «colaborar no processo de recomposição do Estado fascista» e «desorientar as massas, estagnar o movimento e impedi-lo que marche no caminho da insurreição». Para o CMLP, o período entre 1958 e 1961 havia servido para marcar a ultrapassagem do carácter legal das reivindicações, pelo que agora o centro de gravidade se deslocara irremediavelmente para o desencadear de acções revolucionárias violentas [6].

Este posicionamento seria visto pelo PCP como uma oposição aos princípios constantes em Esquerdismo. Doença Infantil do Comunismo, livro no qual Lenine critica os «comunistas de esquerda» pela defesa sistemática do boicote às eleições. Esta linha de argumentação seria aliás usada por Cunhal em 1971, no seu Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista. Acusando o toque por antecedência, a UEC (m-l), destacamento estudantil do CMLP, vem esclarecer, em Outubro de 1969, que concorda em abstracto com o aproveitamento dos meios legais de luta em ligação com o trabalho clandestino, mas critica que num contexto de luta armada contra o colonialismo português, um «partido dito comunista» «subordine a luta da Classe Operária às alianças eleitorais com a burguesia democrática» [7].

8. Outros colectivos, como os agrupados em torno das publicações Cadernos de Circunstância e Cadernos Necessários, também optaram pela desmontagem crítica das eleições marcelistas. Para os Cadernos Necessários, editados a partir do Porto por Mário Brochado Coelho, o parlamentarismo apenas servia a «táctica da burguesia», empurrando a «luta de classes para o espectáculo do gato [e do] rato». E clarifica:

É claro que o regime abre brechas no seu terreno quando se obriga a legitimar-se através do processo eleitoral. (…) Somos da opinião de que é de aproveitar essa ocasião privilegiada. Mas também somos da opinião que o problema não é (nunca é) das formas legais ou ilegais de luta e seus aproveitamentos, sim das formas revolucionárias ou não [8].

Tal como a EDE, também os Cadernos Necessários consideram estar a assistir-se a uma recomposição do capitalismo português, o que levaria o Estado a deitar fora as «incómodas roupagens do fascismo, herdadas da idade rural, [liberalizando-se] para integrar no sistema a oposição ao regime»[9].

9. Em termos genéricos, a perspectiva da extrema-esquerda foi abstencionista, ainda que com diferentes matizes: ora entendendo as eleições como uma oportunidade para radicalizar a luta (foi o caso da EDE), ora desvalorizando as eleições e considerando que qualquer envolvimento apenas serviria para legitimar o regime (foi o caso do CMLP ou dos Cadernos Necessários, através de inspirações ideológicas diferentes).

Por outro lado, o certo é que muitos dos que participaram no processo eleitoral, ou que foram tocados por esse momento político, viriam a engrossar as organizações de extrema-esquerda fundadas a seguir. A URML (Unidade Revolucionária Marxista-Leninista), criada em 1970, foi formada por activistas que se conheceram precisamente no contexto das eleições na CDE em Lisboa. Também as Brigadas Revolucionárias de Carlos Antunes e Isabel do Carmo vieram a acolher activistas que haviam despertado para a política através da CDE. No Porto, o futuro O Grito do Povo também se alimentou de gente que havia começado a politizar-se nas orlas da CDE, muitos através do Movimento de Jovens Trabalhadores.

10. A ressaca que se seguiu à onda de esperança de 69 contribuiu para radicalizar sem retorno uma juventude já de si inquieta. E proporcionou também, não só um crescimento dos sectores da extrema-esquerda, como uma deslocação do centro da sua intervenção, que passa definitivamente do «exterior», da emigração, para o «interior» do país. Esta, sendo uma história que extravasa o momento eleitoral de 69, não pode ser compreendida em toda a sua plenitude se não o tomar em consideração.

 


 

[1] EDE, Para uma oposição revolucionária ao poder da burguesia monopolista [Julho de 1969].

 


 

[2] Ibidem.

 


 

[3] O Tempo e o Modo, Dezembro de 1969.

 


 

[4] Amadeu Lopes Sabino, Jorge Oliveira e Sousa, José Morais e Manuel Paiva (2009), À Espera de Godinho. Quando o Futuro Existia. Lisboa: Bizâncio, pp.308-309.

 


 

[5] O Comunista, «Contra as “eleições”; pela Revolução Popular!», cartaz-comunicado, Agosto de 1969.

 


 

[6] Estrela Vermelha, «Nós, Cunhal e as eleições», n.º3, Agosto de 1969.

 


 

[7] Servir o Povo, «Sobre as “eleições”», n.º1, Outubro de 1969.

 


 

[8] Cadernos Necessários (1975), 1969-1970. Porto: Afrontamento, pp.84-85.

 


 

[9] Cadernos Necessários (1975), 1969-1970. Porto: Afrontamento, pp.239.