mosteiro odivelas

 
Um texto de Jorge Martins (*)

 
Ventura Isabel Dique de Sousa, freira bernarda do Mosteiro de Odivelas, nascida no Rio de Janeiro em 1688, enviada para Lisboa em 1705, noviça em 1706 e freira em 1709, saiu no auto-de-fé de 9/7/1713, na sequência da denúncia de judaísmo feita, em 1712, contra seu pai, João Dique de Sousa, abastado senhor de engenho no Brasil, que teve onze filhos de três mulheres e enviara as filhas para um convento. Foi assim que aquela infeliz freira de Odivelas se encontrou naquele Mosteiro com uma considerável lista de familiares: a própria mãe, três meias-irmãs, uma tia, três primas e uma tia-avó. No referido auto-de-fé desfilariam dois meios-irmãos da freira, que seriam condenados a cárcere e hábito perpétuo, enquanto seu pai persistia na negação da sua condição cristã-nova, o que lhe custaria sair «relaxado em carne» no auto-de-fé do ano seguinte, em que foi queimado vivo. Um outro meio-irmão de D. Ventura seria também condenado, no auto-de-fé de 1716, a cárcere e hábito perpétuo. 

A família Dique de Sousa tinha, efectivamente, raízes judaicas no Brasil. D. Ventura entraria nos cárceres dos Estaus em 26/6/1713, para ser rapidamente interrogada, de forma a poder sair em auto-de-fé menos de duas semanas depois, em que abjurou suas «culpas» de judaísmo e foi condenada a perpétua clausura no Mosteiro, onde tanto gostava de estar. Nomeou-se confessor para a devolver a Odivelas, mas a execução da sentença não foi tarefa fácil, visto que as quatrocentas freiras a rejeitaram por «impura». O Santo Ofício não gostou da recusa e tentou reconduzi-la ao mosteiro, mas encontrou todas as suas portas e janelas ostensivamente encerradas, tendo que regressar ao Palácio dos Estaus (sede da Inquisição) sem sequer ter conseguido falar com a Madre, pois as freiras fizeram tal gritaria que inviabilizaram qualquer negociação. 

Numa derradeira tentativa, a própria abadessa reuniu as freiras e pediu-lhes que aceitassem D. Ventura. Perante a persistente recusa, a abadessa insistiu e as freiras caíram sobre ela e maltrataram-na. O caso subiu ao Inquisidor Geral, D. Nuno da Cunha Ataíde e ao rei D. João V, que declinou o seu envolvimento directo. Face à insistência da Inquisição em impor o regresso de D. Ventura, a insubordinação das freiras subiu de tom, decidindo-se a sair do mosteiro em manifestação, em ar de desafio, para exigir «justiça» ao rei. Desfilaram 134 freiras em direcção a Lisboa, de imponente cruz levantada à sua frente. No caminho, 5 KM adiante, a condessa do Rio convidou-as a entrar no seu palácio, na tentativa, sem sucesso, de as fazer desistir da inqualificável afronta à sua Ordem, ao Santo Ofício e ao próprio rei. Este, no intuito de calar a chacota que já grassava na capital e se preparava para receber tão insólita manifestação freirática, enviou a Cavalaria para as fazer regressar ao mosteiro, evitando maior falatório à triunfante recepção lisboeta das inesperadas manifestantes, mas as intolerantes freiras barricaram-se no palácio durante dois dias e receberam a milícia à pedrada. 

Forçadas as portas, os sargentos entraram, manietaram e arrastaram as freiras para os coches reais que as transportariam de volta a Odivelas. Vencidas mas não convencidas, as freiras ameaçaram matar D. Ventura se as obrigassem a recebê-la no seu convívio conventual. As insubordinadas correligionárias de Madre Paula – célebre amante de D. João V – haviam perdido uma batalha, mas acabariam por ganhar a guerra da histérica intolerância. Com efeito, a freirinha recolheria à clausura no Convento de São Bento, em Évora, perdendo-se-lhe o rasto. Terminavam desta sorte as desventuras de D. Ventura, perante a intransigência antijudaica das menos rigorosas atitudes noutras matérias, por parte das freiras do Mosteiro de Odivelas. Na verdade, demonstrariam menor rigor moral perante as célebres investidas reais e senhoriais dos garbosos cortesãos, que acalmavam os seus libidinosas impulsos entre aquelas que agora se prestavam à rejeição duma arrependida judaizante, no «harém bastantemente turco de Odivelas», como lhe chamava o escritor Camilo castelo Branco.

 
(*) Biografia de Jorge Martins