Mário Soares, num livro escrito no exílio no início dos anos setenta do século XX, assinalou as tremendas derrotas para a PIDE que constituíram as dificílimas fugas da cadeia de diversos dirigentes do PCP e, em 1969, do «dirigente revolucionário do L.U.A.R., Hermínio da Palma Inácio, que nesse momento era concerteza (sic) o homem mais vigiado e bem guardado do País». Antes dessa fuga, que foi aliás a última de um estabelecimento prisional gerido pela polícia política de Salazar e Caetano, já Hermínio da Palma Inácio tinha conseguido escapar da prisão do Aljube, em 1949, após ter sido detido em 6 de Setembro de 1947, na sequência da sabotagem de avionetas, na tentativa falhada de golpe da «Mealhada» contra o regime ditatorial. No Aljube, frente à Sé de Lisboa, todas as janelas eram então «gradeadas, menos uma, pequenina, numa arrecadação à altura de um 5.º andar, a caminho do gabinete de inspecção médica». Palma Inácio enrolou lençóis nas pernas, debaixo das calças, e meteu-se na fila para aí ser atendido, às 8 horas da manhã. Aproveitando um momento de ausência do guarda, utilizou os panos como corda e escapou-se para o pátio, 15 metros abaixo. Já na rua, um guarda fez frente a Palma Inácio, que o derrubou e desapareceu.
Rigorosamente vinte anos depois dessa fuga, Hermínio da Palma Inácio voltou a escapar, em 8 de Maio de 1969, da prisão da delegação da PIDE do Porto. Tinha sido novamente detido, em 20 de Agosto de 1968, na falhada tentativa de ocupação da Covilhã por brigadas da LUAR, começando por ficar no forte de Caxias, antes da de ser transferido para o Porto, para ser julgado. No princípio de 1969, um inspector superior da DGS dera conhecimento a José Barreto Sacchetti, director dos serviços e Investigação, de uma futura tentativa de introdução, por Helena Palma, irmã de Hermínio da Palma Inácio, na prisão de Caxias, de umas serras, dissimuladas nas capas de uma agenda. No entanto, dias depois da data prevista para a visita de Helena Palma ao irmão, o responsável pelo forte de Caxias, inspector da PIDE Gomes da Silva, assegurou, numa carta à direcção dessa polícia que nada tinha sido entregue àquele recluso. Sacchetti seria porém posteriormente informado por Agostinho Barbieri Cardoso e Álvaro Pereira de Carvalho, respectivamente subdirector e chefe dos serviços de Informação da polícia política, de que a agenda já se encontrava em poder de Palma Inácio.
Veja-se como tudo se passou. Para protegerem um informador da polícia infiltrado na LUAR, Ernesto Castelo Branco («Canário»), a quem a irmã de Palma Inácio tinha dado conta da vontade de fuga deste, Pereira de Carvalho e Barbieri Cardoso entregaram uma serras ao “colaborador” da PIDE. Ernesto Castelo Branco remetera as serras à irmã de Palma Inácio, que, por seu turno as entregara a este, escondidas na capa almofadada de uma agenda. Partindo para Londres, onde residia, a irmã apurara que a encomenda só tinha chegado às mãos de Palma Inácio, quatro semanas depois. Mal sabia a irmã de Palma Inácio que «a sua artimanha era já do conhecimento da PIDE», mas que esta «foi impotente para desfazer o engenho do processo utilizado» (Diário de Lisboa, 3/5/1974), pois nada conseguira encontrar na revista ao embrulho com a agenda. Foi, assim, que a fuga de Palma Inácio contou com a ajuda, embora involuntária da… própria PIDE/DGS, apesar de alguns dos seus elementos o negarem mais tarde.
O inspector da PIDE/DGS, Abílio Pires, garantiria, após 25 de Abril de 1974, ter sido ele próprio a comprar as serras, para proteger o infiltrado no seio da LUAR, afirmando que a fuga de Palma Inácio valia bem a protecção de um informador. Após ser preso, depois de 1974, o informador infiltrado na LUAR, Ernesto Castelo Branco, confirmaria ter sido ele a entregar as serras à irmã de Palma Inácio e a avisar Pereira de Carvalho da introdução das mesmas no forte de Caxias. Castelo Branco acrescentaria que, após a fuga de Palma Inácio, utilizando as serras, Pereira de Carvalho e Barbieri Cardoso se tinham zangado com ele e que as relações entre o informador e a PIDE haviam esfriado.
Fernando Pereira Marques, outro membro da LUAR que estava detido na mesma cela da delegação da PIDE do Porto, para onde Hermínio da Palma Inácio fora transferido de Caxias, com o objectivo de ambos serem julgados naquela cidade nortenha, também descreveu mais tarde a «fuga que deixou a PIDE verdadeiramente desesperada pela sua ineficácia». Lembrando que, «devido a traição de um tipo chamado Castelo Branco, a PIDE soube que iam ser introduzidas serras, na prisão, para Palma se poder evadir, sabendo a polícia como se processaria a passagem das serras trazidas de Londres por uma irmã deste», Pereira Marques relatou que a própria polícia não descobrira porém onde o utensílio para a fuga estava escondido. Ao ser transferido para o Porto, Palma Inácio conseguira levar as serras, com as quais serrara as grades durante as noites de chuva, disfarçando cada corte com uma massa de pão e cinza.
Pelo testemunho de Mário Soares, ao qual a irmã de Palma Inácio recorrera como advogado, sabe-se que era vontade do irmão que o julgamento fosse adiado até chover. À beira de ser novamente transferido para Caxias ou para o forte de Peniche, Palma Inácio iniciou a fuga, precisamente numa noite de chuva, ajudado por Pereira Marques. Ambos tiraram os parafusos da bandeira da janela, que este último voltou a colocar, após o fugitivo atravessar o patamar, deslizar sobre um telhado de zinco, visível da janela do piquete da PIDE/DGS, o que demorou quase uma hora. Saltou, em seguida, para a rua, caindo por trás da guarita do guarda, que, devido à chuva, estava dentro do seu abrigo, e passou assim diante deste. Pereira Marques conseguiu depois que o alerta fosse dado o mais tarde possível, pelo que os guardas prisionais só se aperceberam da fuga, pelas 9 horas da manhã. Refira-se ainda que, na sequência de um inquérito relativo à fuga de Palma Inácio, conduzido no seio da PIDE/DGS pelo inspector Fernando Gouveia, foram suspensos do serviço um chefe de brigada e um agente de 2.ª classe dessa polícia, respectivamente António de Matos Pais e Rogério Guimarães Lages, bem como o guarda prisional Fernando Martins de Lemos.
Fontes e bibliografia
– Arquivo do Ministério da Administração Interna (MAI) no IANTT, Gabinete do ministro, caixas 011 («Ministério das Comunicações») e 359 («Pessoal»)
– Arquivo da PIDE/DGS no IANTT, proc. 457 GT, Hermínio da Palma Inácio, fls. 45, 50 e segs. e 54
– Arquivo do Tribunal Militar, Ernesto Castelo Branco, proc. 14/80 do TMT de Lisboa, fls. 187-199
– A Capital, 25/2/1975, pp. 12-13
– «O aventureiro da liberdade perdida», Visão, 16/6/1994, pp. 40 e 42
– Bruno de Oliveira Santos, Histórias Secretas da PIDE/DGS, Lisboa, Nova Arrancada, 2000, p. 121
– Mário Soares, Portugal Amordaçado, Depoimento sobre os Anos do Fascismo, Lisboa, Arcádia, 1974, pp. 260-262
Como complemento, ler:
Mário Soares, Em memória de Palma Inácio
Sexta-feira, 24.Jul.2009 at 12:07:34
Guardo a mágoa de nunca ter feito uma grande entrevista a Palma Inácio. E de termos tão pouco hábito de fazer filmes sobre algumas personagens da nossa História que, a meu ver, o justificavam. Mesmo sobre Sousa Mendes, mais consensual, o primeiro filme de ficção é francês. (Désobeir, de Joel Santoni, com Bernard Le Coq e Nanou Garcia, http://www.youtube.com/watch?v=8VES7mjUGf8 )
Sexta-feira, 24.Jul.2009 at 09:07:06
Irene Pimentel, tenho sempre muito gosto ao lê-la. Eu não sou de elogios fáceis mas, se tenho um bom sentimento, é o da gratidão. E gosto de dizer obrigado. Obrigado, pois.
Aprendo quando leio o que escreve. E mais uma vez aconteceu isso com o “seu” Palma Inácio. Não conhecia as circunstâncias daquela fuga. Sabia da “boca” do Soares, mas desconhecia o resto.
Percebo a frustração da Diana Andringa, mas, em compensação, ela tem sido excelente na recuperação do nosso passado. Falhou o Palma Inácio, não falhou muitos outros.
Domingo, 26.Jul.2009 at 08:07:37
Olá Diana Andringa
Dúvido que Palma Inácio se deixasse entrevistar era um homem muito reservado e modesto avesso as luzes da ribalta.
Segunda-feira, 27.Jul.2009 at 01:07:49
Como diz o José Hipólito, ele deu muitas entrevistas. Infelizmente, quando surgiu a oportunidade de o entrevistar, não teve disponibilidade. Mas fiquei contente de ver, não há muitos meses, um documentário feito, salvo erro, pela RTP Porto. Acho é que a história dele podia dar lugar a um filme de ficção.
Segunda-feira, 27.Jul.2009 at 11:07:51
O Palma Inácio foi uma figura extraordinária que bem merece um filme.Há bastante material e ele deu muitas entrevistas.
Em finais de Janeiro de 1968, entrei para a direcção da LUAR, onde, pela primeira vez, cada pessoa passou a ter um pseudónimo (eu era o Azevedo). Na nova drecção entrou um “Canário”, por quem o Palma revelava uma grande afeição. Distribuiram-se algumas responsabilidades e a mim coube a das Relações Internacionais e a do Secretariado, esta em conjunto com Canário. Mostrei alguma relutância nesta co-responsabilidade pois,instintivamente e desde o início da reunião, aquele indivíduo não me inspirou confiança. Palma apercebeu-se das minhas reservas e convidou-me a ir jantar com ele e o Canário, ao “Chateau” nos arredores de Paris de que ele era o responsável enquanto os proprietários, no inverno, se alojavam no Sul, mais quente. Canário mostrou-me o chateau, os esconderijos das armas roubadas em Évora e de parte do dinheiro que ele guardava. Manifestei o meu desacordo com tudo isto e não mais voltei a encontrar esse personagem, mas o Palma não se poupava em elogios. Dois ou três meses depois chega a notícia à direcção de que o Canário fora a Portugal, por doença ou falecimento do pai, fora apertado pela Pide e entregara tudo o que tinha! Até o Palma se mostrou indignado, não acreditando na história que ele mandara transmitir.Achava que o tinha traído!
Já depois da fuga do Palma, da prisão da Pide do Porto, coube-me ir buscá-lo a Itália e na viagem contou-me como Canário se oferecera para o ajudar a fugir. Continuei a insistir que não passava dum infiltrado da PIDE, com o que ele próprio, Palma, estava de acordo. Mas…Canário estaria totalmente “seduzido” pela sua pessoa, capaz de tudo para lhe mostrar a sua amizade e de que a história anterior fora um mero acidente. Achava que, por razões de fidelidade a uma “amizade”, o Canário, embora colaborador da PIDE,fazia um jogo duplo!
Este foi sempre um defeito grave na maneira de funcionar do Palma – seduzir as pessoas confiando que elas passariam a ficar-lhe ligadas pessoalmente tornando-se incapazes de o trair!
Estou a trabalhar para poder dar um contributo para a história da LUAR. Como todos nós, Palma tinha muitos de feitos, mas, mais do que nós, tinha uma coragem e uma determinação fora do comum. É uma figura marcante, ímpar, da luta contra o fascismo
Terça-feira, 28.Jul.2009 at 05:07:48
Percebo perfeitamente a Diana Andringa por não ter podido fazer a entrevista.
Porém discordo do comentário do Francisco por um simples motivo, já no longínquo ano de 2000 apareceu uma entrevista com o Palma Inácio, tenho essa memória.
Se a Diana Andringa quiser poderei amanhã ou depois facultar-lhe a fonte.
Não sei se foi a última entrevista que lhe fizeram, merece apesar de muitas discordâncias da acção política do meu respeito enquanto antifascista.
Um livro que aparece na bibliografia não sei até que ponto se poderá fiar nele, já o li diversas vezes e parece-me bastante parcial.
Terça-feira, 28.Jul.2009 at 11:07:44
Muito bom o comentário do José Hipólito dos Santos. É por assim dizer “história ao vivo”. Ao que encontrei nos arquivos da PIDE/DGS e noutras fontes, acrescenta outra faceta do mesmo episódio. José Hípólito, membro da LUAR, suspeitou que «Canário» fosse um infiltrado, confirmando-se a sua suspeita. Já agora, Portugal é um dos raros países com arquivos fabulosas relacionados com o período ditatorial. Não só estão acessíveis arquivos da ex-polícia política como arquivos referentes a processos que foram feitos a elementos e colaboradores da PIDE/DGS do pós 25 de Abril de 1974.
André Amador deve se estar a referir ao livro «Histórias Secretas da PIDE/DGS». Evidentemente que deve ser manuseado com cuidado, mas é uma fonte importante, se for cotejada com outras fontes.
Terça-feira, 28.Jul.2009 at 02:07:27
Sobre a fuga do Porto há algumas imprecisões que não são graves neste contexto e que ficam para outra altura e outro lugar esclarecer. Mas sobretudo importa não alimentar a versão com que os PIDEs que ainda mexem se pretendem limpar do ridículo que sofreram, ao insinuarem terem permitido a fuga para proteger um informador. Eles permitiram a entrada das serras com esse objectivo, pensando depois controlarem a situação. Só que se enganaram. Disse-me um outro antigo companheiro da LUAR que vive no estrangeiro que tem ainda uma agenda idêntica à que foi utilizada a qual, aliás, até deve/via existir nos arquivos da PIDE.Mas saudações por este sítio e desde já aviso que não voltarei ao tema por agora (não é por nada, só que não tenho tempo).
Sexta-feira, 21.Ago.2009 at 04:08:14
Ao Sr. Fernando Pereira Marques
Por acaso dei com este Blog há pouco tempo e o que me interesseria saber é o seguinte:
Conheci Palma Inácio pessoalmente, nem vale a pena eu enumerar seu lado antifascista nem outros, porque a história se encarregara disso. A essa história até pode ser dada uma ajuda:
Fernando Pereira Marques diz-te alguma coisa em fins de 1973 passagem de fronteira por perto de Chaves, táxi até ao Porto, dormida no Porto em frente a um Banco.
A minha questão é…
-Que cor tinha o carro saído de França com destino a Portugal?
-Onde ficou esse dito carro até ao regresso.
Se adivinhares, és quem eu penso. Se não esquece e já não vai para a história.
Outra pergunta.
-Porque razão isto nunca foi falado a partir do momento em que foi instaurada a Democracia?
Esclareçam-me por favor, devo andar por outras bandas e até posso não estar ao corrente do que foi ou não dito.
Em todo o caso os meus cumprimentos a todos os amigos da Liberdade e da Democracia.
Virgílio
Quinta-feira, 27.Ago.2009 at 04:08:06
Outra coisa: Fernando Pereira Marques Sabes tão bem como eu que o Palma Inácio foi preso na Duque D’Avila “num café com outros companheiros de luta” porque não contestas o “dito” do camarada Mário Soares quando este diz que o já falecido Palma Inácio foi preso na Covilhã? Ver artigo aprofundado sobre o Palma Inácio, escrito neste Blog pelo camarada Mário Soares.
Vês com a Historia fica enganada com falsas verdades?
Já agora: lembras-te do falecido Guerra?
Cumprimentos Democráticos
Virgílio
Sábado, 22.Ago.2009 at 09:08:54
deveria de aver mais galos como este