Abril de 1961. A guerra em Angola começara há pouco mais de um mês. As vitrinas do Palácio Foz, então sede do Secretariado Nacional de Informação ostentam ainda as terríveis fotografias dos massacres levados a cabo pela UPA (União dos Povos de Angola), no levantamento armado de 15 de Março – que o primeiro presidente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), Mário Pinto de Andrade, viria a classificar de “jacquerie”. A Censura impedira os portugueses de conhecer outros massacres anteriormente ocorridos: milhares de mortos de população civil angolana, na repressão da revolta dos plantadores de algodão da Baixa do Cassange, centenas de mortos nos ataques aos muceques de Luanda e na repressão em Icolo e Bengo, na sequência do assalto pelos nacionalistas às prisões e quartéis da capital angolana, ocorrido a 4 de Fevereiro.
Os estudantes africanos em Portugal temem que também sobre eles se abata a repressão. Muitos deles – “nacionalistas progressistas” da Casa de Estudantes do Império, na classificação do inspector Sachetti [1], baptistas e metodistas dos lares de Lumiar de Carcavelos – tinham acorrido ao aeroporto de Lisboa em Dezembro de 1960, protestando contra a deportação do médico Agostinho Neto para Cabo Verde, sendo por isso identificados e retidos para interrogatório pela PIDE. Por outro lado, a guerra que alastra em Angola dá-lhes uma oportunidade de se juntarem às forças que combatem o colonialismo português.
Com um número muito reduzido de militantes em Conacry – Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz, Lúcio Lara, Eduardo dos Santos e Hugo de Meneses – e um pequeno núcleo no então Congo-Brazaville, o MPLA apela aos jovens nacionalistas para que abandonem Portugal e reforcem as estruturas do Movimento no exterior.
O MEA, Movimento de Estudantes Angolanos, constituído sobretudo por frequentadores da Casa de Estudantes do Império, decide então enviar dois representantes a França, onde mais facilmente poderiam tentar contactar a Direcção do MPLA. Edmundo Rocha e Graça Tavares são os escolhidos. A resposta do Movimento, de que não tem possibilidade de os apoiar na saída, leva-os a procurar novos caminhos. Na Bélgica e na Alemanha, vão juntar-se a outros estudantes das colónias portuguesas – José Carlos Horta, de Moçambique, José Fret Lao Shong e Manuel Pinto da Costa, de S. Tomé, Alberto Passos, Arlindo Barbeitos, Carlos Rocha, Desidério Costa, Luís de Almeida, Luísa Gaspar e Ruth Neto, de Angola. E parte de Desidério Costa e Luísa Gaspar a sugestão de um contacto com o bispo metodista de Frankfurt, que talvez os possa ajudar. Este põe os jovens nacionalistas em contacto com outro bispo, Black, da Assembleia Mundial das Igrejas Protestantes, em Genebra. Conhecedor da realidade angolana através de um outro bispo protestante, Ralph Dodge, que vivera muitos anos em Angola, Black apoia as reivindicações dos nacionalistas. (Rocha, 2002:219). Ao responder ao incitamento do MPLA, é das igrejas protestantes, nomeadamente norte-americanas, que os jovens delegados do MEA vão receber auxílio.
Finais de Maio. João Vieira Lopes, finalista de Medicina e Gentil Viana, estudante de Direito, recebem a visita do pastor protestante francês Jacques Beaumont [2]. Beaumont pertence à CIMADE, uma organização ecuménica ligada aos movimentos protestantes de juventude, criada em 1939 para apoiar os refugiados reagrupados nos campos do sul da França, que participara activamente na resistência contra o nazismo e o resgate de Judeus, durante a Segunda Guerra Mundial e se envolvera depois na luta pela independência e o desenvolvimento das colónias, nomeadamente da Argélia.
Acompanhado de outros activistas protestantes, como Charles Harper e Bill Nottingham, Jacques Beaumont vem ajudar a organizar a fuga dos nacionalistas africanos. Anos mais tarde – em 1990 – Bento Ribeiro (Cabulo) [3] recorda alguns descuidos nos contactos havidos:
«Fizemos bastantes erros… O secretário-geral da CIMADE encontrou-se várias vezes connosco no Mandarim… A Pide estava bem informada das nossas movimentações. A maior parte dos angolanos de Coimbra vivia na Rua Antero de Quental, – era onde eu ficava quando ia a Coimbra. A PIDE ficava na mesma rua… Éramos vizinhos do inspector Sachetti, que nos cumprimentava muito afavelmente, mas nos interrogatórios posteriores à nossa saída demonstrou que sabia dos encontros com o secretário-geral da CIMADE.»
Com mais ou menos erros, a fuga dos jovens nacionalistas começa, integrando não só angolanos mas também nacionalistas de outras colónias africanas, como Joaquim Chissano, moçambicano, e Pedro Pires, cabo-verdiano [4]:
«O Iko Carreira é que foi o meu elemento de ligação com o grupo. A organização era de protestantes – houve um elemento de ligação americano protestante preso connosco em San Sebastian . Houve um primeiro grupo que saiu, que passou normalmente a fronteira espanhola-francesa e estava-se a preparar um segundo grupo, convidaram-me para fazer parte e eu aceitei imediatamente. Eu estava na tropa.»
Como Pedro Pires, muitos outros estavam em idade militar e só tinham duas opções: ou ficar e ir combater contra os seus ou sair e juntar-se aos que lutavam no exterior. Optaram, naturalmente, pela segunda.
Estruturaram-se em grupos de 3 a 5 pessoas, em Lisboa, Coimbra, Porto. O local escolhido para a passagem da fronteira foi o Norte de Portugal:
«Um camarada nosso, estudante de Medicina, tinha um amigo que era casado com uma senhora do Norte de Portugal que tinha família na Galiza. Esta senhora pôs-nos em contacto com um familiar, que nos disse que, através de contrabandistas, podia pôr-nos fora de Portugal. Ele era anti-franquista, tinha família dos dois lados da fronteira, tinha os contactos todos feitos. Era preciso pagar – e havia depois a Espanha franquista.» [5]
Era nesta segunda fase que a CIMADE se revelava ainda mais importante, garantindo uma travessia tranquila rumo a França. Embora nem todos os fugitivos fossem protestantes, não contactaram qualquer estrutura ligada à Igreja católica, por esta ser considerada demasiado próxima do regime. Segundo as informações que recolhemos, tampouco o PCP terá sido contactado.
Entretanto, alguns saem legalmente, como Amélia Araújo [6], que pretexta uma ida ao Santuário de Lourdes com a filha de poucos meses a fim de agradecer à Virgem a cura de uma doença da menina, ou Manuel Videira [7], que se justifica com a lua de mel antes do cumprimento do serviço militar. Rui de Sá (Dibala) [8], consegue visto à conta do desporto: jogador de volley no Benfica, acompanha a sua equipa a um torneio em Asnières, França, e arranja ainda maneira de assistir à participação do clube, com Eusébio, no torneio anual do Paris Saint- Germain. Ou ainda como Gim Monteiro [9], que integra a digressão de um episódico Trio Ouro Negro…
Os que saem clandestinamente partem de Lisboa e de Coimbra para o Porto e daí para o rio Minho, que deverão atravessar em botes de contrabandistas.
À frente do grupo de Lisboa estão, segundo João Vieira Lopes, membros das células clandestinas do MPLA, que dá como existindo em Portugal desde 1960. Dos cabecilhas, só um, Pedro Filipe, não seria do MPLA, mas sim militante da UPA/FNLA: «Na altura não fazia diferença.» Ainda segundo Vieira Lopes, «saíram de Lisboa para o Porto, em carros e comboios, mais de 80 pessoas, incluindo crianças de 2 a 5 anos e mulheres grávidas, uma delas de 8 meses».
Pelo meio há episódios curiosos, como relata um dos elementos da CIMADE, Charles Harper:
«Um desvio não planificado leva-nos directamente para uma festa do S. João, em pleno centro de Santo Tirso. Os habitantes parecem surpreendidos perante tantas caras negras. Felizmente, é a época do delírio em torno do rei Pélé. Recebem-nos bem e abrem caminho para passarmos.»
É um facto que, nessa época, os negros que a população conhece são, sobretudo, os grandes nomes do futebol. Os fugitivos são tratados, portanto, com toda a simpatia. Foi aliás um jogador de futebol da Académica, Daniel Chipenda, que convidou Jorge Valentim a integrar a fuga. No seu livro «Esperança», Valentim conta que, no dia combinado, deixou a casa como normalmente, acompanhado por Mateus da Silva, encontrando-se depois ambos num café com um cidadão americano, que falava português e guiava um carro Mercedes Benz. Na fronteira do Minho juntaram-se a outros colegas, formando um grupo de 19 pessoas. A saída para Espanha decorreu sem problemas, bem como a travessia do país e a passagem para França: embora os passaportes que lhes tinham dado tivessem fotos que não coincidiam, e lhes atribuíssem uma língua que desconheciam, passaram sem incidentes para território francês, onde os esperava a gente da CIMADE.
As coisas não correriam tão bem com o segundo grupo, de cerca de cem pessoas:
«Saímos em 3 vagas. A primeira chegou a Espanha, passou pela Espanha e seguiu directamente para França e dali para a Suíça. A segunda vaga parou em Espanha à espera da terceira, para depois seguirem juntas para França. Eu fiz parte dessa segunda vaga, estive 20 dias fechado à espera dos outros, nem podíamos assomar à janela. Depois fomos atravessar a fronteira, os espanhóis não acreditaram nos salvo-condutos senegaleses. A nossa história era que éramos estudantes senegaleses em França, tínhamos atravessado a fronteira em Barcelona, não tinham posto carimbo… os espanhóis não acreditaram, levaram-nos para a Cadeia Distrital.» [10]
«Saímos de Lisboa, fomos ao Porto, e a altas horas da noite partimos para a fronteira, para o Rio Douro. Esperámos muito tempo, não apareceu o passador, tivemos que regressar ao Porto e repetir a operação no dia seguinte. Nessa noite conseguimos passar, num bote de contrabandistas. Estivemos escondidos numa pequena mata, depois transportaram-nos para San Sebastian. É aí que as coisas se complicam. Devíamos passar com um documento senegalês, mas a polícia já devia estar avisada… Fomos interrogados, levados para uma prisão.» [11]
Aparentemente, surgira um imprevisto: o guarda fronteiriço espanhol cuja desatenção fora garantida pela CIMADE adoecera e fora substituído por um colega mais atento, que recusou os argumentos esgrimidos pelos fugitivos. Estes correm o risco de ser devolvidos a Portugal pelas autoridades franquistas: o governo português terá mesmo feito deslocar um avião a Madrid, para garantir o regresso.
O grupo passa assim 48 horas na prisão de San Sebastian. Com eles, os pastores protestantes que os acompanhavam. Mas estes têm contactos que conseguem pôr em acção: há quem fale do Ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Couve de Murville, quem refira a administração Kennedy, até mesmo a CIA [12]. Certo é que os prisioneiros são libertados e conduzidos em carros da própria Guardia Civil até à fronteira Irun-Hendaye.
Do lado francês, a CIMADE recebe-os com um enorme jantar e garante-lhes hospitalidade. Mas rapidamente essa hospitalidade lhes vai parecer pesada.
O problema, explica Manuel Videira [13] – que, embora tendo saído legalmente, recebera também apoio da CIMADE – era que continuavam semi-prisioneiros, porque não lhes davam documentos. A razão invocada era o risco, previsível para alguns, de serem tomados por argelinos, numa altura em que estes eram violentamente perseguidos.
Mesmo as visitas não eram fáceis: na CIMADE, diz Videira, para lá de Savimbi, apenas os visitou – até porque lá se encontravam, entre outros, Joaquim Chissano, Pascoal Mocumbi e Joana Simeão – Eduardo Mondlane, que trabalhava na ONU e tinha passaporte diplomático. Já os encontros com Mário Pinto de Andrade – que usaria então passaporte egípcio – Viriato da Cruz e Lúcio Lara eram feitos clandestinamente, num café perto da CIMADE, frequentado precisamente por argelinos. E com o MPLA a exortar todos os que quisessem juntar-se à luta a seguir para Leopoldville, é aí que Mário Pinto de Andrade lhes dá indicações para prepararem uma outra fuga, desta vez da CIMADE.
Segundo Manuel Videira, é a embaixada da Guiné Conacry que arranja passaportes e uma organização clandestina de argelinos em França que organiza a fuga em massa, financeiramente apoiada pelo Gana. Fogem de autocarro, pretextando-se uma orquestra – para o que terão comprado, aliás, diversos instrumentos. Dirigem-se para a fronteira alemã, numa zona pouco vigiada, perto da Bélgica. Com a ajuda de argelinos, atravessam a fronteira e entram na Alemanha. Daí partirão poucos dias depois, de avião, com destino a Accra, no Gana.
Segundo recorda Fernando Chaves [14], voaram primeiro para Amsterdão e depois, pela KLM, para o Gana, com passagem por Las Palmas e Monróvia. Em Acra, foram recebidos pelo Africain Affairs Center e alojados num hotel perto do aeroporto – curiosamente chamado Lisbon Hotel. Mais tarde foram encaminhados para Aximota, um centro universitário, onde ficaram até serem transferidos para Núngua, uma pequena aldeia perto de Tema, a segunda cidade portuária do Gana, onde, refere Chaves, receberam a visita do adido cultural brasileiro, que os convidou a visitar uma fragata brasileira que ali passava e a ir para o Brasil. Foram também visitados por Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Miguel Trovoada.
A maioria dos protestantes do grupo dirigira-se entretanto para a Suíça, onde se encontrava já Jonas Savimbi. Outros, como Cabulo, Filipe Amado, Fernando Octávio, Wilson e Ilda Carreira (Baiana), querendo continuar os estudos, tinham optado pela Alemanha [15]. Agora, a proposta feita aos fugitivos é que os estudantes prossigam os seus estudos no Bloco de Leste – URSS e Checoslováquia, sobretudo, mas também na RDA – ou na Suíça e na Holanda.
Quanto aos médicos, deverão dirigir-se para Leopoldville, para ali dar assistência aos refugiados que abandonaram Angola na sequência da perseguição aos “assimilados”, que se seguiu ao 15 de Março. Entre os que chegaram ao Gana há vários médicos – Vieira Lopes, Manuel Videira, Mário Assis, Carlos Pestana “Katiana”, Manuel Boal – e a sua presença vai permitir a “operação batas brancas”, ou seja, a instalação em Leopoldville de um organismo estreitamente ligado ao MPLA, o Corpo Voluntário Angolano para Assistência aos Refugiados, CVAAR, que conta também com os médicos do grupo dos “mais velhos” anteriormente sediados em Conacry: Américo Boavida, Eduardo dos Santos, Hugo Meneses. «É a primeira ONG angolana», ironiza Manuel Videira. Criam postos de assistência aos refugiados na fronteira e recolhem fundos e medicamentos, garantindo apoios da Suécia, da Holanda, um pouco de França, mais tarde da URSS.
Outros, como Rui de Sá (Dibala), irão receber treino militar, para seguir para a frente de combate.
Hoje, os elementos da grande fuga de 1961 estão espalhados pelos seus países de origem e em outras partes do Mundo. Alguns ocuparam ou ocupam o mais alto cargo dos seus países, como Joaquim Chissano, em Moçambique e Pedro Pires, em Cabo Verde. Alguns foram ministros, outros embaixadores, generais, deputados, altos funcionários. Em alguns, a forma como a independência do seu país evoluiu deixa uma mágoa: «Não foi isto que nós combinámos!»
Mas aquilo que tinham em mente ao fugirem de Portugal nesse Junho de há 48 anos, isso foi conseguido: o colonialismo português foi derrotado e são agora cidadãos de países independentes – mesmo se a luta pela concretização do sonho de jovens, essa, tem de continuar.
Notas:
[1] AN/TT – PIDE-DGS, Proc. CEI 4529/62, Docs. 132 a 136, abud Rocha, Edmundo, Angola – Contribuição ao Estudo da Génese do Nacionalismo Moderno Angolano, Kilombelombe, Luanda, 2002, 1º vol., pág. 222.
[2] Rocha, Edmundo, Angola – Contribuição ao Estudo da Génese do Nacionalismo Moderno Angolano, Kilombelombe, Luanda, 2002, 1º vol., pág. 219.
[3] Bento Ribeiro (Cabulo), declarações recolhidas em 1990, para a série “Geração de 60”.
[4] Pedro Pires, declarações recolhidas em 1990, para a série “Geração de 60”.
[5] Bento Ribeiro (Cabulo), declarações recolhidas em 1990, para a série “Geração de 60”.
[6] Declarações recolhidas em 1990, para a série “Geração de 60”
[7] Declarações recolhidas em Julho de 2006, para a preparação de um documentário sobre a fuga de Portugal dos estudantes nacionalistas das colónias.
[8] Id.
[9] Ibid.
[10] José Araújo, declarações recolhidas em 1990, para a série “Geração de 60”.
[11] Pedro Pires, declarações recolhidas em 1990, para a série “Geração de 60”.
[12] Rocha, Edmundo, Angola – Contribuição ao Estudo da Génese do Nacionalismo Moderno Angolano, Kilombelombe, Luanda, 2002, 1º vol., pág. 221.
[13] Declarações recolhidas em Julho de 2006, no âmbito da preparação de um documentário sobre a fuga de Portugal dos estudantes nacionalistas das colónias.
[14] Declarações recolhidas em Julho de 2006, no âmbito da preparação de um documentário sobre a fuga de Portugal dos estudantes nacionalistas das colónias.
[15] Declarações de Luísa Gaspar, recolhidas em Julho de 2006, no âmbito da preparação de um documentário sobre a fuga de Portugal dos estudantes nacionalistas das colónias.
Terça-feira, 16.Jun.2009 at 07:06:01
É justíssimo este relembrar do que foi o papel da CIMADE, no apoio aos movimentos de libertação, nos seus primeiros passos, a quem presto também a minha modesta homenagem. Foi também a CIMADE que me ajudou a desertar da Guiné, onde me encontrava, e a conseguir o primeiro emprego em Paris.
E testemunho que era de facto ecuménica, pois foi nela que encontraram também apoio muitos padres e ex-padres católicos que conheci.
Mas, para além disto, hoje, o mais importante é continuar a lembrar que “ não foi isto que nós combinamos”.
nelson anjos
Terça-feira, 16.Jun.2009 at 12:06:05
Nelson, não quer contar-nos esse episódio da deserção? E como é que a CIMADE entrou nisso?
Terça-feira, 16.Jun.2009 at 01:06:53
Nelson,
Pensei o mesmo que a Diana quando li o seu comentário. Não quer mandar-nos um texto que publicaremos como post? Será um prazer. Nesse caso, envie-me por mail, por favor.
Abraço
Terça-feira, 16.Jun.2009 at 03:06:48
Diana e Joana
Penso que os meus talentos literários não justificam mais que a forma de “comentário”.
E a história é igual a tantas outras; igual também, no facto de ser original apenas para aquele que a viveu. Expurgada de devaneios literários conta-se em duas ou três linhas.
Em 68/69 encontrava-me no norte da Guiné (Farim), integrado numa companhia de atiradores de infantaria, que tinha por missão principal a intercepção dos grupos de guerrilheiros do PAIGC, e populações das áreas sob o seu controlo, que utilizavam essa região para introduzir nas suas bases do interior, apoio logístico, a partir das bases localizadas no Senegal.
Apenas para dissipar a dúvida residual quanto à questão de saber se de facto aquelas terras também eram Portugal, como pretendia fazer crer a propaganda do regime, aceitei ir, em vez de ter desertado antes do embarque. A dúvida desfez-se depressa e cedeu lugar a uma outra: aquela guerra, pura e simplesmente não me dizia respeito, ou eu estava apenas do lado errado? – e coloquei algumas vezes a hipótese de que a atitude mais correcta a tomar fosse a de passar para o outro lado. Por fim concluí – e sempre que me coloco a questão continuo a concluir da mesma forma – que o caminho era desertar, e a melhor ajuda que poderia dar aos povos da Guiné era lutar com os demais, pela mudança no meu país. E foi isso que fiz.
No que respeita a forma, havia a possibilidade de procurar a base mais próxima do PAIGC, através da mata, ou aproveitar o mês de licença em Portugal, a que se tinha direito, após um ano de permanência no teatro de operações, e deixar o país a partir daí. Considerando alguns contactos de militantes anti-fascistas que consegui, em Portugal e também na Guiné, foi a segunda forma a que utilizei.
Um dia de manhã, quando gozava a minha licença em Portugal, em casa dos meus pais, levantei-me cedo, dei-lhes um beijo de despedida e disse-lhes que ia sair do país e não voltaria mais à Guiné. Naquele tempo sabíamos que era para sempre. Ninguém chorou porque não há nada mais vazio do que o sempre. E fiquei a saber também que o vazio nunca mais se preenche. Levava comigo apenas um pequeno saco com alguma roupa pessoal, e a partir de então nunca mais voltei a recuperar o sentimento de pertença ao país. Sinto-me vagamente europeu, por restos de cultura.
Na hora e local aprazado iniciei a viagem para a fronteira com o meu companheiro de viagem, desertor como eu, e com ligações a pessoas da CIMADE. Até Vilar Formoso fomos transportados por um amigo. Atravessamos a fronteira com “passaporte de coelho” e apanhamos o comboio do lado de Espanha. E foi com o mesmo “passaporte” que passamos a fronteira Espanha/França, em Hendaya (Pirinéus), e voltamos a apanhar o comboio do outro lado.
Em Paris a CIMADE arranjou-nos trabalho nas linhas de montagem de automóveis da Renault. Depois, vieram outras histórias …
nelson anjos
Terça-feira, 16.Jun.2009 at 07:06:47
Dito assim, parece muito fácil. Quem viveu esse tempo sabe que não era assim tão fácil…
Quarta-feira, 17.Jun.2009 at 12:06:39
Um post que é um autêntico serviço público. Do mais esclarecedor entre o aqui colocado.
Quarta-feira, 17.Jun.2009 at 06:06:47
Atravessar a fronteira era de facto muito fácil, Diana.
As fronteiras mais difíceis eram as que existiam dentro de nós.
Não havia qualquer Muralha da China ou Linha Maginot.E, mesmo relativamente a essa, no eclodir da segunda guerra mundial os alemães descobriram o óbvio: que o mais simples era passar ao lado. Foi o que fizemos também muitas vezes.
Ao longo de muitos quilómetros de fronteira existiam apenas meia dúzia de postos fronteiriços. Tudo o resto era espaço aberto, – como a consciência de cada um. Particularmente durante a noite, era lindíssimo calcorreá-lo.
A ausência do neon urbano punha a descoberto todas as estrelas do espaço. E o silêncio deixava ouvir os mais vagos ruídos da noite. Continuo a gostar da noite na mata. Aqui, ou lá para os lados da minha aldeia, na serra da Lousã.
nelson anjos
Quarta-feira, 17.Jun.2009 at 02:06:57
Era às fronteiras dentro de nós que sobretudo me referia. Ainda hoje me parece estranho que haja quem considere que desertar era um acto de cobardia.
Quinta-feira, 18.Jun.2009 at 01:06:35
Pela minha parte confirmo as afirmações do Nelson Anjos.
Passar a fronteira nos fins dos anos 60, princípios dos anos 70 era relativamente simples desde que se pagasse a um “passador”. Eu próprio cheguei a Paris na manhã do 1º de Janeiro de 1971, depois de trinta e tal horas de ter atravessado a fronteira perto de Vilar Formoso. Devo relembrar que a maioria dos jovens portugueses, na altura, não possuía passaporte.
A acção da Cimade foi realmente importante durante anos no acolhimento de desertores e de outros refugiados, sobretudo no que dizia respeito ao emprego e ao alojamento. Penso que devem existir alguns relatos da acção da Cimade nessa altura.
Domingo, 21.Jun.2009 at 11:06:50
Todos sobreviventes de CONACRY, políticos, intelectuais, familiares, historiadores e interessados deveriam criar uma base de dados para reconstituir toda dinâmica que remonta dos anos 50 até aos anos 60.
Há uma tendência de minimizarem o nacionalismo oriundo da Guinée Conacry que envolveu a criação, fundação de partidos e movimentos de libertações.
O papel relevante da mobilização e outras actividades com repercussão internacional em prol da libertação pelos movimentos de libertação nos territórios sob dominação Portuguesa.
Os historiadores contemporâneos ou todos os intervenientes, estudiosos e interessados na importância da génese do nacionalismo libertário supostamente honestos e sérios deveriam congregar esforços para reconstituir toda essa dinâmica.
Deveria ser criado um banco de dados onde seriam não só lançados dados úteis como doações de espólios.
Esta cooperação permitiria uma credibilização e reposição valorização de uma das etapas tão nobres do nacionalismo tão genuíno como as outras.
Deveria haver uma preocupação de interligar todos centros de pesquisa histórica para restituir a verdadeira grandeza de Conacry reconstituindo a sua génese.
A s vozes dos nacionalistas se vão apagando e a história continua a não testemunhar a verdadeira dinâmica.
Será que o MPLA como força política acompanhará todas as consequências da globalização?
Todos esses processos de desenvolvimento serão compatíveis com a essência nuclear vigente do MPLA de hoje?
Afinal o que é que separa os objectivos do MPLA de hoje em relação ao MPLA de Conacry?
Segunda-feira, 22.Jun.2009 at 12:06:44
Inteiramente de acordo com o apelo aos “históricos” para testemunharem e para garantirem a preservação dos seus espólios e a sua colocação ao dispor dos investigadores.
Diana Andringa
Domingo, 21.Jun.2009 at 11:06:36
Só uma pequen pergunta, por mera curiosidade , depois de ter lido com emoção os vossos depoimentos. Alguém soube de um esforço que fazia um grupo da corrente “protestante” denominada valdense e com sede numa aldeia levantada por auto construção no pós guerra 39_44 a norte de Itália, perto de Turim – na montenha? Aíem 1965 participei num verão num campo sobre “socialismo e África” havia representantes de muitos países de Africa e gente nova estudantes de Moçambique e Angola (?) contavam-se entre os participantes. Mais tarde por intermédio deste grupo veio a Portugal um “tipo italiano”, que trabalhava num grupo de ajuda a antifascistase e que deu aqui grande apoio em trabalho de informação clandestina-
Segunda-feira, 22.Jun.2009 at 12:06:23
Eu não. Mas espero que entre os que acedem aos Caminhos alguém possa acrescentar informação.
Diana Andringa
Quarta-feira, 29.Jul.2009 at 02:07:45
O MPLA COMO MARCA
O MPLA como Marca representa um poder permanente em função de mais do que a sua história e multiplicidade de histórias e perpetuações das suas tradições.
Um dos factores qualitativos de recriação da sua força consiste na lealdade da corrente regeneradora dos seus aliados.
Os seus atributos, qualidade e expectativas criadas e uma amálgama de resultados e sua funcionalidade reforçam uma narrativa que impulsiona a sua existência.
Não há dúvida de que as crenças sagradas, criações, metas e seu prestígio, sua visão e missão, capacidade de inovação reforçam o seu posicionamento.
A sua suposta notoriedade e fidelização em constante construção criando boas ligações emocionais melhorarão consideravelmente essa marca.
Sendo assim será que a marca MPLA é um sistema propulsor e fonte de criação de valor?
Será que a notoriedade do MPLA continua a ser evocada de forma espontânea?
Para que a marca MPLA se perpetue será necessário que as atitudes das pessoas correspondam a avaliações globais favoráveis.
Não há dúvida que a força da marca MPLA quase se confundirá a um culto descentralizado e de interacções e laços fortes e experiências partilhadas que criam várias identidades verbais e simbólicas.
Para falar da antiguidade da Marca MPLA teremos que falar forçosamente do seu núcleo fundador de Conacry dos anos 60.
A marca MPLA se perpetua pelo seu prestígio devido as associações intangíveis, pelo seu simbolismo popularizado incontornável e grandes compromissos com o passado.
O MPLA como marca, alem de possuir narrativas de sobrevivência, inclui testemunhos que dão a história, significados mais profundos e grande carácter de emocionalidade.
A história do nacionalismo e luta de libertação pelos actores de renome a partir da fundação do MPLA em Conacry pelos seis fundadores bem personalizados, como Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Hugo José Azancot de Menezes, Lúcio Lara, Eduardo Macedo dos Santos e Matias Migueis perpetuarão essa marca de forma reflectida.
Poderemos então afirmar que os fundadores de Conacry foram os agentes prioritários e fundamentais da verdadeira autenticidade da marca MPLA.
A dinâmica da história e a construção de identidades pressupõem estados liminares, pelo afastamento constante de identidades anteriores.
Desenvolver a cultura da marca MPLA exigirá um constante planeamento e estratégias que permitirão reunir e sentir esta marca global.
Para terminar apelaria que nas verdadeiras reflexões que a lenda da marca não obscurecesse a lenda dos fundadores verdadeiros artífices.
Escrito Por:
AYRES GUERRA AZANCOT DE MENEZES