Há 50 anos, na madrugada de 11 para 12 de Março de 1959, deveria ter eclodido o «golpe da Sé», assim chamado porque os conspiradores reuniram na Sé Patriarcal de Lisboa, de que era pároco o padre João Perestrelo de Vasconcelos (*) , um dos participantes. Ainda está por fazer a história dessa falhada intentona que se propunha derrubar o governo de Salazar, na sequência da burla eleitoral das eleições presidenciais de 1958, em que a candidatura do general Humberto Delgado tinha incendiado o país. Em particular, estiveram envolvidos muitos elementos que a PIDE nunca detectou, foram feitos previamente muitos contactos pelos participantes directos no golpe entre oposicionistas ao regime para um eventual futuro governo provisório, em caso de vitória. No entanto, apenas me vou limitar a dar algumas informações sobre essa falhada tentativa de golpe, recolhidas no Arquivo da PIDE/DGS, polícia que terá sabido da eclosão do golpe com antecedência e conseguiu matá-lo à nascença.
Militares e civis católicos
No seu livro Portugal Amordaçado, Mário Soares observou que o «golpe da Sé» nada teve a ver com os tradicionais movimentos putschistas militares anteriores, não só porque nela participaram diversos jovens civis, já sem qualquer relação com os republicanos e «reviralhistas», como devido a ter sido «um movimento de clara inspiração católica, embora com a participação importante de elementos não católicos, democratas de diferentes correntes oposicionistas». A «alma civil da conspiração foi o oficial da marinha mercante Manuel Serra, antigo dirigente da juventude católica e participante entusiástico da candidatura Delgado» do ano anterior. Entre os civis, destacaram-se Fernando Oneto, Asdrúbal Pereira, Horácio Queiroz, Raul Marques, Jaime Conde, Pedro Bogarim, Amândio da Conceição Silva, que participaria no desvio do avião da TAP em 1961, e António Vilar, morto anos depois na revolta de Beja, no final deste ano. Mário Soares referiu ainda a participação do seu amigo Eurico Ferreira, advogado de Santarém.
No «plano estritamente militar, se bem que a direcção suprema pertencesse ao então major Pastor Fernandes, (…), o principal organizador da conspiração parece ter sido o dinâmico capitão Almeida Santos, antigo dirigente da “Mocidade Portuguesa”, assassinado depois em condições dramáticas». Outras figuras de relevo do movimento foram os majores Clodomiro Sá Viana Viana d´Alvarenga e Luís Calafate, os capitães Fernando Costa Revez Romba e Amílcar Domingues, o 1.º tenente da Armada Vasco da Costa Santos e o oficial miliciano médico Jean Jacques Valente. Por seu lado, o capitão João Varela Gomes, que viria a ser o dirigente militar do «golpe de Beja», em 1962, disse também que o núcleo dinamizador dessa movimentação era constituído por católicos e monárquicos, citando, além de Manuel Serra e do capitão Almeida Santos, o advogado Francisco Sousa Tavares e o capitão Nuno Vaz Pinto. O próprio Varela Gomes chegou a participar numa das reuniões da conspiração, ao lado do então capitão de Engenharia Vasco Gonçalves e do capitão Baptista da Silva, que representava jovens oficiais de Infantaria, entre os quais se contavam ainda Firmino Miguel e Soares Carneiro.
Segundo o relatório do processo da PIDE, a autoria do golpe Movimento Militar Independente (MMI) propunha-se «libertar o país do regime de força e ditadura pessoal a que se encontra sujeito, obrigando o governo a abandonar o poder, pela efectuação de um golpe militar». O comando supremo do golpe ficava a cargo de uma Junta Militar Nacional do MMI e as forças revolucionárias eram compostas por militares – combatentes ou simpatizantes -, grupos técnicos, para ocupar, impedir ou assegurar o funcionamento das emissoras, transportes colectivos, correios, telefones, centrais eléctricas, bem como por grupos auxiliares de combate ou informação.
A PIDE apurou que estavam ainda envolvidos na «conjura» muitos civis, o principal dos quais era Manuel Serra, dirigente da JOC e director da revista Náutica, enquanto chefe de uma milícia civil e elemento ligação entre esta e a Junta do MMI, através do major Calafate. Observe-se a proximidade entre a sigla do MMI e a do Movimento Nacional Independente (MNI) de Humberto Delgado, que aliás aguardou a eclosão do golpe na embaixada do Brasil onde estava exilado, pronto a sair. Relativamente à acção dos civis, entre os quais havia um médico e um padre, a PIDE assinalou, no seu relatório, que, a partir de Janeiro de 1959, se haviam activado os preparativos, segundo um plano que previa a divisão da cidade em quatro sectores, nos quais actuariam vários grupos, cada um constituído por cinco homens, sob o comando de um oficial miliciano fardado. A principal tarefa desses grupos era a captura de membros do governo e de altas individualidades, os quais seriam depois entregues às autoridades militares, e depois do «golpe», manutenção da ordem nas ruas e nos edifícios públicos.
Falhanço do golpe
Marcado o dia da eclosão do golpe para dia 12 de Março, cerca de cem civis aliciados receberam ordem de concentração em vários pontos da cidade, em leitarias e cafés, enquanto os chefes dos grupos foram convocados para os claustros da Sé de Lisboa, onde aguardariam instruções. Dispondo de automóveis alugados ou táxis, cada grupo ficou de se dirigir a para um local receber armamento que Fernando Oneto iria buscar numa determinada unidade militar da guarnição de Lisboa.
Às 23 horas de dia 11 de Março, todos se dirigiram aos lugares marcados e Manuel Serra, com quatro ou cinco colaboradores, distribuíram distintivos, cordas e fardas, quando chegaram à Sé dois oficiais da Junta Militar, um dos quais, Pastor Fernandes, deu ordem de dispersão e saída rápida dessa igreja, devido ao facto de o governo já estar informado do golpe. Dado que Fernando Oneto já tinha partido para a unidade militar de Lanceiro 2, onde iria carregar o armamento para os grupos civis, Manuel Serra, o tenente Vasco da Costa Santos e o major Pastor Fernandes partiram num automóvel, guiado por Mateus, para a Calçada da Ajuda, onde conseguiram travar aquele de receber as armas.
O movimento falhou, entre outras razões, devido a diversas fugas de informação, uma das quais foi detectada pelo tenente-coronel Joaquim dos Santos Gomes, comandante do Batalhão de Metralhadoras 1, que prontamente avisou a tutela. Em consequência as unidades militares de Lisboa entraram de prevenção e os oficiais, que tinham ligações, quer a esse quartel, quer ao Grupo de Companhias de Trem Auto, ao Regimento de Infantaria 1 e ao Regimento de Lanceiros 2, não actuaram. Terá havido também vigilância prévia e infiltração da PIDE, que soube de antemão o que se iria passar e prendeu 44 pessoas acusadas de participação no movimento, a primeira das quais foi Manuel Serra, detido ao cair da noite de dia 13 de Março.
A prisão de católicos
Outros dirigentes católicos detidos foram João Joaquim Gomes, presidente da JOC, José Hermínio Bidarra de Almeida, da JUC, e Armando Bento dos Santos, pelo qual a Câmara Eclesiástica do Patriarcado intercedeu junto da PIDE. Um dos elementos presos pertencia à família da casa onde o pai de Salazar tinha sido feitor. Tratou-se do padre João Perestrelo de Vasconcelos, recentemente falecido, que a PIDE foi deter, em 18 de Março de 1959, na sacristia da Igreja da Cova da Piedade. Começando por recusar seguir o agente que o foi prender, por pertencer a uma polícia que considerava ilícita, acabou depois por dizer que acederia se recebesse ordem para isso do Patriarcado.
O certo é que a isso foi instado por Manuel Gonçalves Cerejeira e, através de uma carta dirigida à PIDE pelo padre Perestrelo de Vasconcelos, se fica a saber que se apresentara na sede dessa polícia por ordem do «Eminentíssimo Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa». A PIDE apurara que esse sacerdote tinha contactos com Manuel Serra e sabia da tentativa de golpe, tendo facilitado conscientemente a entrada de revolucionários civis nos claustros da Sé. Depois do falhanço do «golpe», oferecera-se ainda para destruir papéis, e transportara um dos revolucionários no seu automóvel até à Praça do Comércio, bem como uma pequena pasta com documentos, que queimara depois em casa do seu pai. Em 21 de Maio de 1959, acabou por ser solto mediante o pagamento de uma caução de 10.000$00.
Exército versus PIDE
Os oficiais militares envolvidos no «golpe da Sé», como já tinha acontecido em outras tentativas, queixaram-se por ficar sob a alçada da PIDE, que os começou a interrogar. Ao ser interrogado pelo inspector-adjunto Boim Falcão e pelo chefe de brigada Armando Rodrigues Rego, o major Alvarenga lamentou que, «estando como arguido de processo que corre os seus termos no foro militar», tivesse sido obrigado a ir a essa polícia prestar declarações. Os capitães Almeida Santos e Fernando Revez Romba disseram o mesmo, acrescentando o último que se sentia «humilhado como oficial do Exército por ter sido obrigado a ir à PIDE», pois que «as declarações podiam ter sido feitos segundo o foro militar».
O ministro do Exército, Almeida Fernandes, manifestou então o seu descontentamento e, em 20 de Março de 1959, elaborou um despacho, segundo o qual era a PJ Militar que tinha competência legal para proceder à instrução preparatória de um processo por crime contra a segurança do Estado com arguidos militares. Numa carta enviada ao inquiridor da PJ Militar, general, Manuel Lopes Pires, a PIDE informou, que, através dos interrogatórios feitos aos arguidos, se havia confirmado a participação de diversos oficiais, que ficariam num processo à parte do processo referente aos civis detidos à ordem dessa polícia. Com «a devida vénia», o director da PIDE lembrou que incumbia a essa polícia a instrução preparatória dos processos respeitantes a crimes contra a segurança do Estado, não havendo distinção entre os arguidos civis e militares. Acrescia ainda – dizia a PIDE – que o interesse público justificava que as diligências fossem feitas pela única autoridade «especializada na averiguação dos crimes contra a segurança do Estado».
Epílogo: o julgamento
Entre os implicados do «golpe da Sé», vinte e três foram a tribunal, mas, quando o julgamento começou, Manuel Serra, Amândio da Conceição Silva, Francisco Mateus, Raul Miguel Marques e o major Luís Calafate estavam asilados em embaixadas latino-americanas, enquanto o capitão Almeida Santos estava morto e Jean-Jacques Valente encontrava-se evadido. Lembre-se que, na noite de 20 para 30 de Novembro de 1959, estes dois se tinham evadido do forte de Elvas, com a cumplicidade do cabo António Marques Gil. O capitão Almeida Santos acabou por ser assassinado por razões passionais pelos outros dois companheiros, aparecendo o seu cadáver numa praia do Guincho, um episódio que foi aliás tema do livro de José Cardoso Pires, intitulado A Balada da Praia dos Cães. Em 14 de Janeiro de 1961, o tribunal leu a sentença dos implicados no «golpe da Sé», cujas penas não foram porém muito elevadas, oscilando entre os três e os vinte e dois meses de prisão. Esse facto e o de muitas das penas terem ficado suspensas levaram aliás Mário Soares, que foi então advogado de defesa de Fernando Oneto, a elogiar o presidente do Tribunal e o juiz auxiliar, coronéis Rui da Cunha e Teixeira.
Implicados do «golpe da Sé» que foram a tribunal e respectivos defensores:
– Augusto Pastor Fernandes, Fernando Revez Romba e Eurico Ferreira, defendidos por Eduardo de Figueiredo;
– Clodomiro Sá Viana Alvarenga, representado por Francisco Sousa Tavares e Fernando Calixto;
– Amílcar Ferreira Rodrigues, defendido por Artur Cunha Leal;
– Carlos de Jesus Vilhena e Pedro Navarro Bogarim, defendidos por Duarte Vidal;
– Vasco Costa Santos, defendido por Luís Carvalho de Oliveira;
– António Pedro Correia Vilar, defendido por João Paulo Monteiro;
– Afonso Costa Santos, defendido por José Joaquim Catanho de Meneses;
– Francisco dos Santos Mateus, defendido por Francisco Salgado Zenha e Mário Soares
– Fernando Oneto, defendido por Mário Soares;
– Manuel Serra, defendido, por João Camossa;
– Jaime do Rosário Fernandes Conde e Amândio da Conceição Silva, defendidos por Varela Cid;
– Raul Marques e Henrique Febrero de Queirós, defendidos por Acácio Gouveia;
– Miguel da Silva, defendido por Eduardo Fernandes e Rui Cabeçadas;
– Helder Pereira da Silva, defendido por Acácio Gouveia, Gustavo Soromenho e Mário Soares;
– Carlos Alberto dos Santos Oliveira, defendido por Ernesto de Moura Coutinho;
– António Amado da Silva Ruivo, defendido por Mário Soares e Gustavo Soromenho;
– João Joaquim Gomes, defendido por Ernesto Moura Coutinho
– Asdrubal Teles Pereira, defendido por Sargo Júnior.
Fontes e bibliografia
Arquivo da PIDE/DGS no ANTT, pr. 368/59. «Tentativa de golpe de Estado»,
Arquivo da PIDE/DGS no ANTT, pr. 730 GT, Manuel Serra
Frederico Delgado Rosa, Humberto Delgado, Biografia do General sem Medo, Lisboa, Esfera dos Livros, 2008
João Varela Gomes, Tempo de Resistência, Lisboa, Ler Editora, 1980
Mário Soares, Portugal Amordaçado, Depoimento sobre os Anos do Fascismo, Lisboa, Arcádia, 1974
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(*) Dados biográficos de João Augusto da Costa Perestrello de Vasconcelos que morreu no dia 2 deste mês de Março (enviados por Artur Lemos, seu amigo pessoal).
Sexta-feira, 27.Mar.2009 at 02:03:39
A conversa que se segue teve lugar nos comentários a um meu post que foi uma simples remissão para este. Porque acho que contém elementos de interesse a propósito desta efeméride, passo a transcrevê-la para que fique arquivada no “armário” indicado.
1) De José Eduardo de Sousa a 24 de Março de 2009 às 22:05:
A Irene Pimentel tem a paixão de saber. Só lho podemos agradecer. Os seus livros são para serem lidos. Bem como os seus textos avulsos.
Talvez devesse escrever este meu comentário no post dos Caminhos de Memória, mas o texto sobre a Revolta da Sé é tão “académico” que, se o fizesse, fugiria completamente desse tom. Por outro lado, é tão insignificante o que possa dizer que o meu acrescento nada acrescentava e muito diminuía.
Já o João Tunes escreveu num tom que me facilita uma intromissão. Sem grande perda para o seu texto. Espero.
Por aquele tempo, o da Revolta da Sé, eu, à ilharga dum amigo de infância, frequentava um pouquinho uns quantos amigáveis, não bem amigos meus, e entre eles estava o Pastor Fernandes. Era um meio profissional.
Numa ocasião, em conversa a dois, eu, pelo que me lembro, comecei a fazer as minhas observações à cumplicidade, ou talvez tão só a inércia, à indiferença das forças armadas perante aquele regime. Ora, o Pastor Fernandes respondeu deixando-me a ideia de que alguma coisa se poderia estar a preparar. Por isto se adivinha a facilidade com que a PIDE se pode ter infiltrado.
Pelo que se dizia, entre aqueles amigáveis, o Pastor Fernandes esteve na Trafaria donde saía, de quando em quando, para dar aulas (ligadas à energia nuclear) na Academia Militar. Parecia que, naquele tempo, ele era alguém insubstituível para leccionar aquela matéria.
Mais tarde, muito mais tarde, um desses amigáveis, este um quase amigo que eu também tentei endoutrinar e que, antes ou depois do 25 de Abril, foi pela certa do PC, disse-me que o Pastor Fernandes lhe tinha escrito, julgo que de Timor (hesito se não seria de Macau, mas seguramente que não foi) contando que, ele, com a sua história, estava ali como elemento de um Tribunal, julgo que seu Presidente, que julgava crimes contra a Pátria.
Não sei se o Pastor Fernandes já morreu. Não me lembro do seu nome ter sido referido no 25 de Abril ou mesmo depois.
Olhando para outro lado, para o lado do Almeida Santos e do seu assassínio, eu lembro-me do frenesim de boatos, de bocas, do que se sabia a partir de quem estava bem informado, etc. Houve vários casos, antes e depois, que provocaram como que uma histeria popular de falatórios. O caso do crime de Cascais, por exemplo.
Cada um tinha a sua história para contar, o seu pormenor para acrescentar. Havia pouca gente a calar e muita a falar em maior ou menor medida. Esta vozearia, imponderada e excitada, aparece ainda hoje a propósito de tudo e de nada. Se tivesse de indicar uma das coisas que mais falta aos portugueses, eu talvez respondesse: tento na língua.
O assassínio de Almeida Santos foi atribuído à PIDE. Tudo bem, parecia mais do que provável. Parecia certo. Mas havia uma história que circulava e que também se destinava a provar tal autoria. Dizia-se que Almeida Santos tinha os sapatos ao contrário. O sapato direito no pé esquerdo e o contrário, naturalmente. Depois dizia-se que era assim porque a PIDE, na tortura de estátua e do sono, calçava assim os interrogados, para a fazer mais dolorosa e a tornar mais insuportável
Que alguém me corrija, mas nunca tive conhecimento, nem antes da morte do Almeida Santos, nem depois, que a PIDE fizesse tal. Se eu estou enganado, reconhecerei que me faltará muita coisa para ainda saber qualquer coisinha. Se não estou enganado, será para admirar a imaginação de quem criou aquela sobre a morte de Almeida Santos.
2) De Irene Pimentel a 25 de Março de 2009 às 11:06:
Pelo contrário, acho muito interessantes as achegas do José Eduardo de Sousa. Sobre o caso Almeida Santos, de facto, pensou-se na época, sobretudo no seio da oposição, que era um assassinato perpetrado pela PIDE. Tudo apontava para aí, sobretudo o facto de ele ter fugido da prisão de Elvas e ter participado no golpe da Sé. Também ouvi a questão da troca de sapatos, que, a ter existido, apenas atribuo à precipitação e confusão no acto do enterro nas areias da praia do Guincho. Como se sabe, o que aconteceu foi um crime passional, que não teve a autoria da PIDE. PIDE essa que, anos depois, foi a autora do assassinato de Humberto Delgado e Arajaryr Campos, em Espanha. Este caso apenas tem em comum com o de Almeida Santos o facto de a PIDE e o governo salazarista terem nas duas ocasiões tentado atribuir os assassinatos a ajustes de contas no seio da oposição, De qualquer forma, do que sei e penso ser verdade, a PIDE não necessitava de trocar os sapatos aos presos, na tortura da estátua e do sono, para que os pés e as pernas inchassem, como de facto acontecia. O problema, e o José Eduardo de Sousa aponta para aí, embora sem o afirmar, é que muitas vezes as afirmações exageradas levam à descredibilização dos acontecimentos verdadeiros por parte dos negacionistas. Dizer que a PIDE não matava a torto e a direito – e refiro-me à metrópole não aos campos de guerra colonial – não retira nada à sua brutalidade, que de facto existiu.
Evidentemente que a Censura e o facto de o regime abafar propositadamente a investigação dos crimes, mesmo quando não eram perpetrados por ele, proporcionava e potenciava os «boatos» e o «diz-se que», com prejuízo para a verdade.
3) De José Eduardo de Sousa a 26 de Março de 2009 às 17:10:
Obrigado, Irene Pimentel, pela forma como apreciou o que escrevi. E também por ter visto a minha pretensão de que se faça sempre uma narração verdadeira. Tanto quanto possível.
Claro que o caso dos sapatos trocados, a estarem-no, deveu-se a uma natural atrapalhação do momento.
No inverso, eu bem desejaria que não campeasse a invencionice, a fantasia, a difamação fácil. Em plena liberdade, claro. Isso tanto vale para o que se passou antes do 25 de Abril, como para o que se foi e vai passando depois.
Algumas vezes me encontro a pedir, quando dizem dislates incríveis sobre o regime anterior: por favor, não diga isso, aquilo era tão mau que basta dizer a verdade. Corro o risco de ser tomado por um fascista. O que a comunicação social faz circular, o que vozeia a generalidade das pessoas são, inúmeras vezes, “produtos tóxicos” de graves consequências. Em relação ao regime anterior, o que se ouve, o que se “sabe” acaba por parecer uma história de terror que, ao fim e ao cabo, conduz à desacreditação da História e da verdade daquele regime. Ora aquilo não foi uma narração, mais ou menos ficcionada e melhor ou pior protagonizada por quem a faz; foi uma realidade terrivelmente vivida durante meio século. E nem vale a pena acrescentar mais nada, apesar de, ainda hoje e por quanto tempo mais, a sofrermos tão pesadamente.
O que se diz sobre os tempos que correm, apropriando-se quase inteiramente da opinião pública, e, paralelamente, reduzindo cada vez mais o número dos incréus, parece-me que conduz a um empobrecimento da cidadania e até a uma sua maior ou menor alienação.
E, com a comunicação social, quanto maior for a sua toxicidade, maior é a avidez com que é lida ou ouvida. Pedindo, para ontem e para hoje, o mesmo sentido de responsabilidade, corto a conversa e, por me ter lido agora, agradeço-lhe ainda mais.
4) De João Tunes a 26 de Março de 2009 às 21:06:
Já agora, meto-me na conversa.
Gosto desse sentido ético pelo rigor (a maior aproximação possível à verdade e que é sempre um processo de tentativas). O que contará necessariamente com a antipatia dos mitómanos que usarão o cutelo do “branqueamento”. Paciência. Já bastam as “brancas” que os mitómanos conseguem impor por serem detentores únicos dos suportes documentais e testemunhais sobre etapas que não se consegue coser com o antes e o depois.
Àquilo que o José Eduardo de Sousa caracterizou das incompreensões acerca da não ficção (inútil e contraproducente, cujo efeito de boomerang é o negacionismo) da realidade da ditadura, Gostaria de, se me derem licença, acrescentar um outro efeito preverso da banalização estereotipada e empobrecida da realidade da ditadura: a forma fácil como hoje, por dá cá aquela palha, se acusam de “fascistas”, “ditatoriais”, “censórias” e “pidescas” actos de entorses democráticos, condenáveis enquanto tal, mas que se sabe que a denúncia democrática e o combate (usando a liberdade de expressão e os recursos institucionais) tem capacidade de corrigir e superar. Para quem viveu a ditadura, dá vontade (a mim dá-me vontade) de propor a troca desses “anos vividos em ditadura” pelos “anos de democracia” dessas pessoas que vivem em permanente e eterna “democracia fascista”.
Sexta-feira, 27.Mar.2009 at 11:03:31
Meteu-se na conversa e muito bem. Pela minha parte o digo e, pela certa, a Irene Pimentel o aceita. com gosto, também. Aqui na sua casa.
Agradeço que goste do “meu” cuidado de rigor e de verdade. A questão, além de ética, é política. De resto. o João Tunes aborda esse lado político.
O discurso que ouvimos constantemente, não sendo, nem mais ou menos, as coisas de que se fala, delas se alheia, passa-lhes longe e, muitas vezes, até por feios lugares. E facilita, proporciona mesmo, a donos da palavra publica, os branqueamentos, os apagamentos, o não reparo de hiatos.
Porque o faz, obstinadamente, uma parte deste patronato da palavra? Porque as circunstâncias nos levam a uma cegueira, que é propícia a esse patronato, uma vez que com ela, naturalmente, não vemos a realidade presente e recente e podem então recreá-la? Porque nós continuamos a ser aquele povo que aguentou a ditadura e a guerra colonial? E porque, hoje, a população parece estar mais farto de 35 anos de democracia do que esteve dos 45 de ditadura (bem sei que, nessa altura, as coisas estavam escondidas e agora são histericamente exibidas, por motivos que, esses sim, não o são)?
Não sei, mas parece que têm um público alvo, não só para a compra dos “activos tóxicos” comunicação social, como para afeiçoar, criar, animar uma ideia, um conhecimento determinados com exclusão dos seus contrários, claro. E isto de forma que leve as gentes a não perturbarem a não chatearem. Sossego e respeito.
Dizia Bordiga que o pior do fascismo era o antifascismo. Nós somos vítimas do antifascismo e somo-lo, talvez, no mesmo passo em que somos vítimas do fascismo. Por muitos e maus anos. Leia-se ditadura em vez de fascismo.
Antes do 25 de Abril, a falta de participação cívica e política dobrava-se com a incultura, a ignorância e o atraso. A ditadura, dura e aparentemente monolítica, tendo “apenas” o catolicismo existente como uma possível forma de totalitarismo, conduzia a um processo de simplificação, em que esses, os do regime, eram os fascistas e os outros não o eram e talvez até fossem antifascistas. Esta distinção, este preto e branco, estava inserida, como uma necessidade, na relação entre as populações amorfas e indiferentes e a luta política, sindical, etc. do PC e de todos os maoísmos. Até aos próprios PCs cabia a honra de serem tratados, pelos maoístas, como social-fascistas, designação antiga vindo doutro contexto, mas onde, claro, aparecia o termo “fascismo”.
Eu não quero alargar-me mais. Podia falar do que se seguiu ao 25 de Abril, a todo o complexo processo que vivemos, à baralhada dos tempos actuais, da expectativa em que estamos. A crise, o desemprego…
A mim parece-me ver, nos tempos actuais, aquela nuvem, a do Jaurés, que trazia obrigatoriamente a tempestade.
O “fascista” à força de tanto circular perdeu valor real, mas mantém uma espécie de valor facial. Tem razão o João Tunes, parece-me, nas suas observações sobre a “eterna” “democracia fascista”. Esquecendo as minhas nuvens que só lá mais diante veremos se existem e o que descarregam, aceito que o apropriado funcionamento das instituições pode corrigir os entorses, as censuras e o mais de que todos nos vamos queixando.
O comunismo, os comunistas deixaram de ser palavras de arrepiar.
E aqui parece-me que é justamente na medida em que tudo é vertiginosamente mutável e que dificilmente compreendemos o que se vai passando, que terão de ser, imaginadas e fantasiadas as narrações feitas. Assim surge facilmente, quase como apoio, o uso daquelas palavras. Fascistas, pidescas e mais outras lindezas. O velho outro que não é o “nós” leva com essa carga de epítetos em cima. Em vez de boca teremos nós um bico de papagaio?
Ora isso parece-me pernicioso porque, passe a imagem, estamos a oferecer umas rédeas para que nos conduzam como cidadãos votantes e não incomodantes, para que nos façamos elementos úteis à reprodução, a apenas necessária, daquilo que existe, para que cumpramos bem as nossas funções sociais, no trabalho, na família… E até é por isso, por me parecer “útil” o uso daqueles termos, hoje peles secas sem corpos dentro, que não chego a perceber bem essa preocupação em branqueamentos ou apagamentos.
Sexta-feira, 27.Mar.2009 at 11:03:29
continuação…
Merecia algum comentário a actual linha do PC, linha em que aqueles termos, que não sossegam apenas no dicionário, ainda cumprem um papel importante. Mais até, essa linha mereceria atentas análises. Eu vejo ali como que o slogan: “Fascismo sempre, 25s de Novembro, nunca mais”
Imensas desculpas por tanta conversa e aos dois por me ter afastado dos vossos registos, a que me devia obrigar.
Sábado, 01.Ago.2009 at 01:08:24
A relação de amizade, entre Padre José Coreia da Cunha e João Perestrelo de Vasconcelos, era tão forte que lhes permitia entre ambos a revelação de encapelados segredos, de receios profundos assim como de pensamentos mais íntimos e reservados. Ambos se conheciam profundamente e se apoiavam nas missões de guias espirituais e conselheiros para as grandes decisões que ambos tiveram de tomar ao longo das suas vidas veneráveis. Como referi no post ‘’ Padre Correia da Cunha, o renovador’’, era muito autónomo no seu múnus sacerdotal. Apenas lhe conheci dois padres com quem privava mais profundamente: Pe. José Maria de Freitas, pároco da freguesia do Beato e o Pe. João Perestrelo de Vasconcelos.
O blogue Padre Jose Correia da Cunha, pretende homenagear em Setembro próximo, este seu grande amigo.
Não dispondo de um foto de João Perestrelo de Vasconcelos, rogo a quem a possa disponibilizar que o faça por favor para o meu email. Muito grato desde já. JPD
Sexta-feira, 21.Ago.2009 at 02:08:41
Prezada Dra. Irene:
Tanto quanto me é possível, acompanho o que se vai escrevendo sobre a luta contra a ditadura encerrada em 1974.
A propósito do seu texto de 23 de Março último, a que só agora tive acesso, gostaria de (sem prejuízo de uma volta ao assunto) deixar duas breves correções:
1)- Da corrida a Lanceiros 2 para deter o Oneto, há 2 testemuhas vivas: Manuel Serra e Francisco Mateus (este, poprietário do automóvel – Fiat 500 ou 600, creio – usado no trajeto desde a Sé e há muitos ano residente no Brasil). Nunca os ouvi falar que qualquer dos oficiais implicados tivesse participado dessa diligência.
Por curiosidade: Mateus dirigiu um bom trecho – na Av. 24 de Julho – em contra mão e foi nesse automóvel que, às últimas horas de 12 de Março, fomos (Mateus, Oneto, Serra e eu, já que o Amândio Silva desembarcara junto IST) detidos na Av Almirante Reis (altura da igreja dos Anjos) por uma patrulha da PVT que, segundo um dos seus agentes, retornava de V. F. de Xira em busca do auto, já referenciado pela PIDE. Talvez pelo trajeto Sé-Lanceiros 2, talvez por uma reunião na Leitaria Tá-Tá (av. I. Santo) na tarde de 12, talvez …. . Sabe-e lá ….
2)- O Amândio e o Mateus sentaram-se nO banco dos réus do Tribunal Militar, em Santa Clara. O J. J. Valente (estava na Sé, na noite de 11) também. O Serra e o Calafate foram julgados à revelia mais tarde.
3)- Além de Pastor Fernandes e Vasco Belmarço da Costa Santos também o Mj. Alvarenga foi à Sé desmobilizr os civis (já em ação, como está evidenciado), cerca da meia noite de 11/12. Foi em resposta ao primeiro – que dizia que a PIDE pouco sabia, sendo possível “sair” dentro de uma semana – que eu disse “dentro de 24 horas estamos todos presos” e escutei em resposta “… eu tenho quatro filhos).
Melhores saudações
Jaime Conde
Sexta-feira, 21.Ago.2009 at 03:08:15
Prezada Dra. Irene:
Em aditamento ao meu mail de há pouco, acrescento que também o Raul Marques esteve presente em Santa Clara e que o J. J. Valente estava detido na Penitenciáría de Lisboa.
O asilo do Amãndio, do Mateus e do Raul Marques teve lugar logo após a tomada do “Santa Maria”, no início de 1961. O Raúl voltou a asilar-se na sequência do sequestro do voo Casablanca/Lisboa (11/1961), durante a preparação da revolta de Beja que teve lugar no último dia de 1961.
Saudações
Jaime Conde