Morreu ontem João Martins Pereira. Na Primavera de 1971 comprei um livro seu, Pensar Portugal hoje – publicado pela Dom Quixote em plena «abertura marcelista» -, no qual, entre outros temas urgentes, se abordava já, pela primeira vez de forma explícita e de um ponto de vista reflexivo, o carácter subversivo da mudança de costumes que Portugal se encontrava então aceleradamente a viver. Essa mesma que ainda hoje permanece algo subavaliada por alguns historiadores, em detrimento da ênfase dada a uma mudança política efectiva mas mais lenta e epidérmica. Recorro a um sublinhado meu datado daquele ano:
«A passagem da rigidez quase total à flexibilidade quase total (…), eis mais uma aprendizagem em que se inicia a classe dominante entre nós. Foi já duro o caminho que a levou dos tempos (não tão recuados) em que nas nossas praias não se podia ver um tronco masculino ao léu (…) até àqueles mais próximos em que os pacatos burgueses saborearam sem pestanejar a fustigação das costas de Romy no filme A Piscina. Aliás (…) no campo dos “costumes” terá tido uma influência decisiva a intensificação dos movimentos de pessoas nos dois sentidos: o turismo estrangeiro em Portugal e as deslocações cada vez mais frequentes de portugueses ao estrangeiro (bolsas, turismo universitário, turismo tout court, a própria emigração). Os portadores da “moral tradicional” viram-se totalmente ultrapassados, e terão talvez ficado surpreendidos que não tenham sido plateias uivantes e babando-se de lascívia as que assistiram aos primeiros nus nos nossos ecrãs. Nada disso: o melhor da nossa burguesia (e não só a intelectual) já estava muito mais «avançada» do que supunham – mesmo a que saía do Blow Up para se encafuar na missa das 7 mais próxima.»
João Martins Pereira viria anos depois a ser secretário de Estado da Indústria do 4º Governo provisório, acompanhando o ministro João Cravinho e colaborando na complexa gestão das nacionalizações. Viria a demitir-se em divergência com a política do governo e a incapacidade deste para responder a uma crise económica cujos resultados, nessa altura de grandes esperanças mas de vacas bem magras, a maioria dos portugueses sentia na pele.
Publicou também O socialismo, a transição e o caso português (ensaio sobre o capitalismo em Portugal), Indústria, ideologia e quotidiano, Para a História da indústria em Portugal, ou, em co-autoria, À esquerda do possível. Um tanto esquecido, por razões que não será demasiado difícil compreender, um outro título que constitui uma das mais corajosas, mas também mais solitárias, reflexões políticas a contracorrente produzidas nesses anos de chumbo que iriam desembocar no espectro messiânico do primeiro cavaquismo. Refiro-me a No reino dos falsos avestruzes (um olhar sobre a política), editado em 1983, um livro onde se procuram desmontar alguns mitos que estavam na época em pleno processo de fabrico: o da sacrossanta «iniciativa privada», o do diabólico «gonçalvismo», o da salvífica CEE ou o do «desejado» Ramalho Eanes. E onde se procurava também repensar o papel da esquerda no meio de tal selva pós-revolucionária. Volto a destacar um sublinhado já gasto pelo tempo mas que ainda poderá iluminar certas consciências desamparadas:
«A banalização do adjectivo “utópico” num sentido pejorativo não deveria impressionar nem complexar a Esquerda; foi a Direita que, ao pretender-se realista e pragmática, lhe lançou essa armadilha. (…) A Esquerda será sempre um “campo de tensão”, a tensão do inventor antes da invenção, do descobridor antes da descoberta, do poeta antes do poema – enfim, do criador antes da criação. É esse “antes” que necessariamente gera a tensão: a Esquerda sabe que nunca chegará à sociedade perfeita, um pouco como Zenão no paradoxo da tartaruga.»
Poucas pessoas terão produzido tantos, tão originais e tão anti-dogmáticos contributos para uma reflexão da esquerda portuguesa sobre o mundo e sobre si própria. A partir de Sartre, ponto de partida de tantos dos da sua geração, João Martins Pereira laborou, como lembra Francisco Louçã no combate.info, num «marxismo heterodoxo, culto, informado de toda a dissidência e da radicalidade revolucionária do pensamento socialista». Terá até, mais recentemente, ido bem para além deste. Foi ainda, como é de calcular, uma pessoa de causas, ainda que mal aclimatado a militâncias redutoras da liberdade do indivíduo e da capacidade para pensar sempre o impossível desejável. Quem o conheceu diz que era também um homem decente.
Um radical e um utopista, sem dúvida. Ouçamo-lo ainda no Reino: «Todos nós sonhámos com a bela noite em que partiríamos com a trupe do circo ambulante. On the road… Miúdos, vivíamos na pele dos pequenos acrobatas nos seus maillots luzidios. Adolescentes, imaginávamos a louca aventura com a bela trapezista (…). O circo deu-nos a primeira ideia de liberdade sem limites e por isso mesmo os ajuizados regressos a a casa em cada noite de circo terão sido das nossas primeiras sensações de derrota (…). O circo colocou-nos o primeiro desafio à ordem estabelecida». Defendendo, a partir daqui, uma dimensão criadora da marginalidade que não é recusa ou exclusão, mas atracção pelo lado lúdico da existência e de crítica ao sistema que a todo o instante procura cerceá-lo, concluirá que «os marginais são apenas uma minoria dos oprimidos – e só em conjunto todos se libertarão».
Viver pensando e aceitando esta magnífica possibilidade parece ser uma bela forma de ser-se solidário com os outros e de viver a própria vida. Uma lição de João.
Sábado, 15.Nov.2008 at 11:11:42
Como agora aconteceu com João Martins Pereira, só a morte volta a trazer para a luz do dia muitas pessoas que não passaram pela vida de uma forma banal. José Vítor Malheiros frisa-o bem neste artigo em que resume todo o percurso de JMP.
Ainda não vi ninguém referir o seu sentido de humor especialíssimo, ácido e acutilante. É uma das suas características que nunca esquecerei.
Sábado, 15.Nov.2008 at 04:11:12
Houve uma época em que lia tudo o que João Martins Pereira escrevia, mas não creio que tenha lido o último. Era um pensador que nos obrigava a pensar fora dos trilhos dos lugares comuns ou daqueles a que nos obrigava qualquer militância enquadrada.
Desejaria referir um semanário a “Gazeta da Semana”. E muito apreciaria que alguém republicasse alguns dos seus textos. Eu perdi a minha colecção e não o poderei fazer.
Esse semanário sempre me pareceu uma das publicações e ainda uma forma de intervenção, mais conseguida daqueles tempos. Transcrevo parte de um texto que encontrei no “Coiso”, muito agradecendo deste já, para o fazer, a autorização que considerei “tácita” do seu autor.
(http://216.239.59.104/search?q=cache:UtgvpSbr4RYJ:www.coiso.net/velhocoiso/memorias12.html+jornal+%22Jorge+Almeida+Fernandes%22+-P%C3%BAblico&hl=pt-PT&ct=clnk&cd=7&gl=fr&lr=lang_pt)
““Gazeta da Semana” foi outro projecto em que estive envolvido durante 1976 – o primeiro projecto sério, quero dizer, sem gracinhas. Era um semanário, que começou a publicar-se em Abril e que se aguentou até Janeiro de 1977. Era de esquerda, claro! Tão de esquerda, que não havia chefe de redacção, era o “colectivo de redacção”! O director (interino) era o João Martins Pereira, o director-adjunto (interino) era o Jorge Almeida Fernandes, dos redactores e colaboradores faziam parte, entre outros, o Adelino Gomes, o José António Salvador (que agora faz roteiros de vinhos, acho eu…) e o Joaquim Furtado. Denso que se fartava, o semanário tinha vinte páginas, sem publicidade e apenas dedicava duas páginas à actualidade internacional, a maior parte das vezes com artigos sacados ao Libération.”
O semanário acabou num exemplo, não sei se único, de honestidade e de lisura. Devolveram, por cheque e pelo correio, o excedente do preço das assinaturas que correspondia aos números que faltavam. Inexcedíveis estes João Martins Pereira e Jorge de Almeida Fernandes. O Jorge ainda pode ser lido no Público e aí encontrar a exigência, a seriedade, a objectividade que sempre foram as suas em quanto escrevia. O João Martins Pereira, esse, o que pensaria nestes nossos tempos, em que depois de decénios, tudo nos aparece posto em causa. Suspiraria: enfim!… com o exagero de quem muito deseja? Perfilharia apenas aquele dilema de outros tempos, e duma outra revista com tal nome, o de “Socialisme ou Barbarie”.?
Sábado, 15.Nov.2008 at 05:11:15
Curiosamente, enquanto acabava o pequeno texto que escrevi para completar este post e que se pode ler como adenda, chegou-me o seu importante testemunho. Só posso agradecer tê-lo enviado, ampliando uma evocação mais que merecida e dando a conhecer outro lado da actividade e da vida de João Martins Pereira.
Domingo, 16.Nov.2008 at 10:11:48
“Apelo”
Durante bastante tempo, tempos do antes do 25 de Abril e ainda algum tempo depois, fui assinante do semi-clandestino “JORNAL DA PAMPILHOSA”, que era produzido na Pampilhosa do Botão, Mealhada.
Foi um autêntico Panfleto Político.Ainda haverá por aqui,aí, alguêm que possa ter guardado algum nº. desta publicação? Acaso haja, gostaria do contacto e poder revêr um pouco do que eram as entrelinhas do publicado, possível, mas ao tempo sempre arriscado e comvia directa aos calabouços da polícia política.
pires da silva
Segunda-feira, 17.Nov.2008 at 01:11:42
Não estará a referir-se ao “Jornal do Centro”, publicado na Pampilhosa nos inícios da década de 1970? Tinha alguns números que não sei onde param. Talvez no Centro de Documentação 25 de Abril, em Coimbra, possa encontrar alguns exemplares. Tanto quanto me lembro era um jornal impresso e legal, ainda que de oposição.
Mais dados [via blogue Almocreve das Petas]: Jornal do Centro [nº 1, 1970 – ?] – Jornal mensal “por um homem novo numa sociedade nova”, com apartado na Pampilhosa (perto da Mealhada), director Ângelo J. A. Campos e redactores Rui Carvalho, Augusto Oliveira e Carlos Cabral. Colaboração de António J. Fonseca, Carlos Marinheiro, Cipriano Pires, Joaquim A. Leal, Jorge Cardoso, L. H. Afonso Manta, Manuela Neves, … Esteve ligado a grupos de tendência maoista, tendo apoiado a FEC-ML nas primeiras eleições a seguir ao 25 de Abril.
Terça-feira, 18.Nov.2008 at 11:11:02
Agradecido a Rui Bebiano.
É de facto esta a publicação.Era o Jornal do Centro e teve um razoável impacto nos tempos do antes de Abril.”Viu” o seu caminho para o desaparecimento quando se revelou de tendência dfícil de ser acompanhada, por aqueles que eram seus leitores e assinantes.
Teve o seu tempo de “farol” e apagou-se…
De qualquer modo, ainda vou tentar um ou outro nº. como regressando ao tempo, mesmo não sendo um saudosista.