Uma das cidades que me ficou gravada na memória foi Bagdad. Não a cidade mutilada de hoje mas a que conheci há trinta anos atrás. Lembro-me de uma cidade plana, com ruas e avenidas largas, desenhadas em geometrias perfeitas. E, entrando para o casco da cidade, pisar o chão da velha Bagdad desenhada em círculos concêntricos pontuados por mesquitas decoradas por arabescos fascinantes e bazares onde tudo se vendia, que exalavam todos os cheiros das especiarias e ofereciam negócios de panos, cobres e pratas de todas as formas e feitios. As casas ricas apalaçadas lembravam que estávamos na cidade das mil e uma noites. E, depois, tinha um rio bem torneado que dava mais beleza ao conjunto. Então, em 1978, o nível de vida era muito razoável (vivia-se na euforia dos petrodólares e da subida do preço do crude), sentia-se segurança, movimento, cor, pujança e optimismo. O vestuário era variado, sentia-se desenvoltura, modernidade e sem os atavismos dos exageros islâmicos. Na altura, o parque automóvel envergonhava Lisboa, Madrid ou Paris. Todos de boas marcas ocidentais, potentes e quase todos novinhos em folha. O problema eram os cruzamentos, pois os citadinos, eufóricos e competitivos, aceleravam nas aproximações, tentando sempre passar primeiro que o parceiro, o qual, por sua vez, tentava não ser desfeiteado.
Ia em missão sindical, não conhecia a língua árabe e brindaram-se com um guia (um moreno baixo e com o típico bigode iraquiano) que só falava árabe. Assim, imagina-se que a nossa comunicação se reduzia a sorrisos, gestos e salamaleques. Mas, tudo bem. O homem não largava os hóspedes que tinha de guiar como sua função e, assim, era divertido fazer-lhe fintas em escapadelas do hotel, galgar uma avenida em passo largo para acabar de o ver chegar junto de nós, ofegante da corrida de recuperação da companhia. Todos os dias, de manhã cedo, quando descia para o pequeno-almoço, lá tinha o porfiado guia sentado e atento à minha chegada. Fazíamos uns salamaleques efusivos como cumprimentos e eu lá ia matar o jejum sem que o guia me incomodasse o sossego. É que, enquanto eu trincava as torradas e comia os ovos mexidos e a salada de frutas, o meu estimado guia subia ao meu quarto para revistar malas e armários. Rápido, porque o homem já estava no seu posto quando eu saía da sala de refeições. Chamavam-lhe guia mas é claro que não passava de um polícia zeloso. Tão zeloso que, depois das suas revistas, ficava tudo como se o chui por lá não tivesse passado e eu só confirmava a busca, porque tinha os meus truques para detectar mexidas mesmo que feitas por profissionais. Todo o dia era passado em companhia do prestimoso guia que, coitado, passava a vida a rir-se para ser agradável. Suponho que, após o meu regresso, o homem tenha tirado férias para estar, uns dias, sem se rir.