Um texto de Cecília Cunha (*)
Apresentam-se aqui uma série de testemunhos que a memória deixou intactos – são sobrevivências no sedimentar dos anos, já que é do início da década de oitenta que faremos extracções. Em mil novecentos e oitenta e dois, um pequeno grupo de estudantes finalistas de letras, Lisboa, decidiu desafiar o destino certo e começar a leccionar muito longe de casa. A proposta rodou e pegou. E numa primeira quinzena de Setembro, ainda sem o certificado de habilitações, o grupo partiu num avião para a Guiné-Bissau.
Hoje e aqui recorda-se o dia em que os cooperantes assinaram contrato válido para um ano lectivo: celebravam de alguma forma o fim da guerra colonial e de todos os sobressaltos que a geração enfrentara; havia também o sabor da experiência e o apelo do desconhecido.
Questionemos, como quem introduz: poderão meros episódios soltos ter um fio condutor? O que podem experiências singulares absorver no terreno dos factos? Lançamos os dados e sugerimos combinações possíveis. Seja o que os leitores quiserem.
Acreditamos que as vivências conduzem à possibilidade de reflectirmos sobre um tempo e a partir de um espaço pouco conhecidos entre nós: partilharemos incomodidades, que advêm de acontecimentos cruéis. E acrescentamos: que dizer das revelações duma cultura ancestral e de um novo regime, se o que sempre elegemos saber foi sobre a luta de um povo africano, vigorosa, justa e cheia de futuro?
Sabemos que pareciam esponjas, os(as) cooperantes, gente sedenta de um outro tipo de conhecimento, porém mal informada à hora dos preparativos e do embarque: em Lisboa, um representante do ministério da educação guineense tinha oferecido alojamento e um conjunto de bens essenciais disponíveis. Esse género de informação não correspondia à exacta realidade, coisa que os(as) cooperantes descobriram poucas horas depois da largada do aeroporto de Lisboa e à chegada a Bissau.
I.
Convocaremos África na qualidade de personagem primária, pré-revelada no momento em que um avião sobrevoava os braços de rios e pântanos. Antes da terra firme, as pequenas janelas do aparelho da tap mostravam aquilo a que queremos chamar o ventre do mundo, composto de entranhas escuras no corpo da natureza africana. À segunda vista saltavam as cores, num contraste de terra vermelha e de verde. As sensações começaram nesse momento e a partir dessa imagem, cenário que os soldados da guerra colonial haviam testado na dureza e doutro ângulo da História.
Quando a porta desse avião se abriu, foi como se uma panela de pressão derramasse o vapor quente que é imaginável: as coisas sofreram o molde do clima e o clima prolongou-se nos cheiros; era uma parceria que os(as) cooperantes desconheciam, suficiente para os(as) deixar atordoados(as).
Cada um(a) foi entregue a uma extensão de incidentes à chegada: estava-se num aeroporto sobrepovoado, porque o Ramadão ditava regras de viagem a Meca, num lugar em que agentes fardados não dispensavam os óculos escuros. A rapariga que ia com o bebé não vinha da faculdade de letras, mas ia, como os outros, para a cooperação – encostou-se à parede, enquanto um dos agentes rasgava, uma a uma, as fraldas descartáveis que transportara nas malas. As malas e os objectos foram espalhados sem cerimónias e nunca ninguém alcançou a verdade (?) encerrada nessa passagem.
Chegados a Bissau, os(as) cooperantes estacionaram toda a tarde rodeados(as) de bagagens, à espera: disseram-lhes que havia alojamento garantido, afinal não havia. Só à noite conseguiram quartos e em situação provisória. Ao longe, tão longe que se abonava uma sugestão de infinito, os relâmpagos sucediam-se – dir-se-ia que deus captava tudo e todos num disparo de flashes. Nessa matéria não havia dúvidas: os(as) cooperantes aprenderam depressa acerca do poder duma natureza gigante, monumental e esmagadora. Os(as) cooperantes apaixonaram-se irremediavelmente por África.
Nessa mesma noite, já tarde nas horas que os relógios declaravam, um cooperante que tinha «contactos» por já ter estado em Bissau, anunciou: havia um convite para uma festa numa casa, com uma série de altas patentes do Estado guineense, que davam assim boas vindas. Os(as) cooperantes foram.
Aliviados(as) por segundos e à custa da oferta do ar condicionado numa sala luxuosa, os(as) cooperantes esbarraram com o ambiente em que foram ganhando para o susto: os anfitriões eram uma espécie superior de agentes dum patamar que só o regime talhara e estavam prontos para escolher algumas das cooperantes – o cooperante experiente riu-se da cena e avisou que era assim, sempre assim. Naquele preciso contexto, as altas patentes constituíam um viveiro masculino, em busca de companhia feminina – tinham ensaiado uma montra, afinal. Havia uma mesa posta com bebidas europeias topo de gama e muito marisco.
As cooperantes fugiram dali assim que puderam e inauguraram laços de solidariedade pela denúncia de um registo a que não vinham. Aos cooperantes lançava-se o desafio dum capítulo de sobrevivência, por exploração de afinidades e de princípios.
II.
Na baixa de Bissau, já perto do porto, da marginal e do rio, estendia-se a fila de barracões do Pidjiguiti, que fora instalação do exército português e que os primeiros cooperantes haviam ocupado há anos: algumas famílias tinham ali montado morada, porém o bairro não perdia o aspecto sinistro por associação a um célebre massacre perpetrado por tropas a mando de Lisboa. Pairava a memória daquele dia três de Agosto de cinquenta e nove, culminar da revolta popular que o partido soubera inscrever na história de resistência ao colonialismo.
Depois de setenta e quatro, sobrevivia uma série baça de pequenas casernas, espaço animado por pessoas que teimavam em humanizá-lo. Alguns guineenses ocupavam uma parte dos pavilhões e havia um clima de bairro e de convívio, em alternativa à memória que o lugar sugeria.
Três cooperantes do grupo recém-chegado deslocaram-se aos barracões ocupados há anos por outros cooperantes. Uma das famílias de moradores tinha dois meninos e o pai prometera: havia quem capturasse macacos fora da cidade, algures, e um macaco haveria de ser deles para estimação e troféu.
Nesse dia, já preso a um poste por uma corda, o macaco disparava o horror da sua captura e do seu cativeiro com o olhar e gritava; já fraco, escapava com os dentes cerrados à comida do dono que nunca haveria de ser seu dono. Sem palavras, como tantas vezes em África, confirmava-se a verdade incontornável: impossível vencer a natureza e a força que dela emana, convertível na busca da liberdade. O macaco corporizava, naquele momento singular e isolável, a negação de ser doméstico, à mercê do homem.
As três cooperantes insistiram em acompanhar uma agonia não reportável à famosa aldeia de Sete-Rios, Lisboa: viram o animal cerrar os dentes e preferir assim morrer a ser cativo. Suicidou-se à frente de todos os que quiseram ver, magro e desidratado.
III.
O homem-grande costumava estender o tapete para as orações, virado para Meca. Era um ser genuíno, vivia no alpendre, junto às escadas da pensão da dona Berta, onde os(as) cooperantes comiam.
Setembro desenrolou-se na época das chuvas e vieram os mosquitos. O homem-grande passou a rezar doente, dias a fio. Exangue, irrigava a cabeça e o rosto num ritual com anúncio de morte. Os cooperantes viram-no morrer ali, ponto final que deus ignorara enquanto continuava a disparar flashes do céu africano sempre que a noite profunda caía.
IV.
A cooperante do grupo que chegara em Setembro sentou-se em frente aos médicos portugueses. Os médicos vinham do instituto de medicina tropical. Estavam numa sala da embaixada e enfrentavam um acontecimento trágico: um dos meninos, filho de casal de cooperantes portugueses, moradores do bairro junto ao porto; havia perdido a vida, numa luta contra a meningite fulminante; como ela, só alguns cooperantes tinham andado com o bebé ao colo e assim foi fácil saber que teria havido contacto de primeiro grau. Com a morgue do hospital central de Bissau sem gerador e, portanto, sem electricidade, não se sabia qual a estirpe que atingira o menino.
Tinham passado uns dias, a criança presa à cama de ferro e sem possibilidades de sobrevivência: depois do homem-grande, falecia uma criança à frente de todos, desgraça com a dor dos pais exposta. Em desespero, nada se pôde fazer.
Cumpridas as visitas ao hospital e à embaixada, a cooperante foi para o seu quarto, avisada pelos médicos acerca duma alternativa: passados três dias, se não adoecesse, era porque não se havia tratado de uma meningite epidémica – nesse caso, a cooperante escaparia com vida…
Ao lado do hospital, numa noite de espera e de aflição, todos(as) puderam ver o campo privativo em que Nino Vieira jogava ténis. Numa zona da cidade mergulhada na escuridão, sinalizava-se ali o único lugar iluminado, porém dentro de muros altos. Só ali havia gerador para esse efeito prático e cruel.
O hospital fazia paredes meias com o campo de ténis, mas à noite não passava de um edifício sinistro, à mercê do calor e do paludismo. Era aí que uma médica cubana picava com a mesma agulha os dedos dos que apresentavam sintomas – era possível encontrá-la naqueles corredores sujos, a arrastar os pés nuns chinelos de quarto e com rolos na cabeça. A médica derramava amostras de sangue em lamelas para a análise enquanto se esperava, e os doentes gemiam numa atmosfera carregada de febres.
V.
Empenhados em conhecer outros lugares fora de Bissau, os(as) cooperantes organizaram-se para uma visita a Bafatá. Faziam-se as honras de uma aldeia do interior, em festa por esses dias, já que se celebrava o fanado.
O grupo chegou para ser recebido e pôde assistir a uma cerimónia que se repetia todos os anos desde o início dos tempos. O ponto alto desenrolava-se quando meia dúzia de rapazes retornava à aldeia. Os rapazes eram muito poucos, traziam o rosto vendado com uma máscara e vinham às cavalitas dos homens mais velhos. Tinha sido assim também com estes: várias semanas no mato, depois da circuncisão, em luta contra infecções e tantos perigos. Os que sobreviviam voltavam e ganhavam estatuto de heróis na comunidade. Nem todos voltavam.
Os tambores acompanharam toda a procissão e convidaram à euforia. Havia alegria por mais um ciclo cumprido. Os(as) cooperantes sentiram a grande vibração dos tambores, enquanto toda a comunidade parecia convergir para o centro da terra: o ritmo atravessava todos os corpos e a aldeia transformava-se numa agremiação inabalável, dançante e afortunada. A aldeia era um corpo que digeria os seus filhos heróis e assim se alimentava, para prosseguir no desafio das idades.
Mais tarde, os portugueses foram convidados para a refeição e sentaram-se à volta do grande prato de comida. Aprenderam a comer sem talheres e entraram naquele ambiente acolhedor, rodeados de crianças que corriam e riam. Os(as) cooperantes encontraram um outro cadastro de vida, liberto das redes da política e da capital. Tinham alcançado uma nova expressão de amizade por um povo que nunca se deixara contaminar pelas campanhas de colonização e que nada tinha a ver com os procedimentos do novo regime.
Quando regressaram a Bissau, os(as) cooperantes confirmaram razões que os(as) mantinham em terras africanas. Tinham assimilado a mais genuína forma de celebração colectiva: apesar da memória da guerra, os povos sabiam quem lhes queria mal. Para os(as) cooperantes, Bafatá fora uma casa grande, indiferente a raças e a ressentimentos.
VI.
Corriam os dias de aulas no antigo liceu Kwame N’Krumah: gente comum era capaz de calcorrear trinta quilómetros (ida e volta) para ir à escola. Alguns alunos apresentavam marcas de ferimentos por causa das minas que explodiam nos caminhos das picadas, tinham estado na guerra ao lado dos guerrilheiros. Estavam na escola por direito e vontade e perguntavam: «professora, porque é que lá na Europa os reis têm números?», ou «porque é que o Luís XVI era XVI?». A cooperante professora respondeu: «porque era filho do Luís XV». Os rostos dos alunos iluminaram-se depois da resposta dada.
Na sala do curso nocturno estavam mais de cinquenta alunos e os da primeira fila acompanhavam os passos da professora. A professora sofria com a humidade que não despegava da pele branca. Havia que coabitar com algumas pragas de grilos e de baratas voadoras, que se lançavam em jacto para o quadro, seduzidas pela luz. Às vezes os insectos batiam-lhe na cara e entravam para o espaço das lentes e das armações dos óculos – era sempre possível contar com alguém, entre os da primeira fila, que se levantava para retirar o insecto da cara da professora. Ela agradecia sempre e prosseguia com a aula.
No termo das aulas e do turno nocturno, os(as) cooperantes que trabalhavam no antigo liceu voltavam para a escuridão da cidade, ainda sem electricidade. Souberam que o director Kumba Yalá providenciara uma reserva de gasolina para o gerador da escola, a fim de prosseguirem os estudos.
Quando a chamou à parte, o colega guineense da professora cooperante avisou: «camarada, aquela aluna tem de passar porque é prima do camarada Nino». Os dias corriam, depois da guerra em que o camarada Nino fora guerrilheiro com o nome de guerra Cabi.
(*) Biografia de Cecília Cunha
Segunda-feira, 12.Abr.2010 at 06:04:06
Ai se não fosse a pensão da Dª Berta!
Terça-feira, 13.Abr.2010 at 10:04:44
África é muito isso…
mas faz-me muita confusão que as pessoas que estão no poder, quase todas com principios marxistas-leninistas, procedam como os Ninos, os Eduardos dos Santos e companhia, com um completo desprezo pelo povo e pela dignidade humana…
ainda bem que a Cecilia não desistiu de ser professora.
Terça-feira, 13.Abr.2010 at 12:04:07
Agradeço à Cecília Cunha ter proporcionado, com este excelente texto, uma “revisita” da Guiné. Sobretudo, e infelizmente, por confirmar as minhas razões para, na oscilação dos impulsos contraditórios, lá nunca ter voltado após a independência. Preferi, sempre, conservar “limpa” a ferida da memória de um espaço de muitos povos onde participei numa guerra a acreditar que a razão e o futuro estava do lado daqueles que combati, convicção que mantenho inalterada. Até ver, prefiro assim. Tanto mais que a Guiné, entre tantos e tão graves problemas, tem um que se pode situar no reino do absurdo: mesmo no extremo da pobreza e das mais gritantes carências, corroída pela corrupção e pelo desmando, ali morre-se de quase tudo e pela causa mais banal, mas não se morre de fome (a natureza não deixa). O que torna paradoxalmente infinito o caminho para o abuso, a desproporção e a rapina.
Quanto à perplexidade inscrita no comentário do Luís Eme, ela suscita o retomar de uma discussão antiga mas sempre actual e incompleta. Embora duvide da abrangência com que situa os dirigentes (passados e actuais) das guerrilhas e independências africanas das antigas colónias portuguesas na quadrícula ideológica do marxismo-leninismo, não há aqui suficiente espaço de debate para apurar a justeza da etiqueta (mas diga-me: acredita mesmo que Nino Vieira foi algum dia um “marxista-leninista”?). Mas com os exemplos dados ao mundo, os falidos e os sobreviventes, como pode fazer confusão que um poder assente nos “princípios marxistas-leninistas” descambe para o “completo desprezo pelo povo e pela dignidade humana”? Tem alguma excepção para apresentar? O que tivemos nas antigas colónias portuguesas (com a honrosa e específica excepção de Cabo Verde) foi, julgo eu, uma má cópia de um marxismo guerrilheiro (a isso empurrou a cegueira colonialista do fascismo português) que, sobre sociedades pobres, tribalizadas e carentes de exercício de soberania, se fundiu com exercícios de tiranias locais. Como podia ser diferente?
Terça-feira, 13.Abr.2010 at 04:04:13
Todo o desastre que o povo da Guiné sofreu (ex. fome, com todas as letras e em todos os sentidos que se queiram atribuir) com toda a comunidade internacional (cooperantes) a assistir, não é nada comparado com o que se passou no Congo (RDC) Ruanda e Burundi desde 1960 até recentemente.
Provavelmente ainda se vive mais tranquilamente em Bissau, que em Luanda.
Embora Bissau, pudesse servir de “biopsia” para analizar África sub-sariana, há outros paises mais explosivos.
Quarta-feira, 14.Abr.2010 at 11:04:21
Olá Cecilia.
Quanto á forma, Muito BOM. Já tinha saudades de ver a tua escrita, de cheirar a tua narrativa e me deixar levar pelo ritmo das histórias entrecruzadas, cheias de côr, mesmo quando quando são histórias a preto e branco …. MUITO BOM !!!!!!!!!!!!!!
Quanto aos comentários sobre o conteúdo, penso á várias reflexões a fazer:
1. A Guiné, ou outras colónias, ou outros lideres serão (ou foram) marxistas ou leninistas, apenas porque o dizem que são ? Saberão o que é o M-L ? E se sabem a sua praxis alguma vez foi M-L ? Ou será que a luta de guerrilha tudo legitima, como estes pretenderam (seja para benefícios e regalias, seja para dizerem que são M-L, como se não se pudesse lutar pela independência sem ser M-L) ?
2. Será que alguma vez a Guiné e os outros países tiveram uma politica M-L ? Até na famosa “ditadura do proletariado” era do proletariado ou era apenas a ditadura (sobre o proletariado) ?
3. Será que o M-L é “praticável” ? Ou é incompleto, mesmo para a sua época ? Ou mais ainda para sociedades diferentes ? E mais ainda para sociedades diferentes e de é poças diferentes ? Ou pode-se considerar como uma teoria “completa” que abrange toda a diversidade social, de todas as sociedades, com todos os diferentes níveis de desenvolvimento ? E em todas as épocas ?
O que a Guiné precisa e o que o Mundo precisa é de Homens de Boa Vontade que queiram fazer bem ao próximo , á comunidade onde estão inseridos, á sua sociedade e á Humanidade.
Claro com Povos esclarecidos e determinados a não deixar manter os Filisteus do Poder.
Pois a Guiné para quem a conhece, tem muitos mais recursos que Cabo Verde, no entanto tem uma organização muitíssimo pior. E a desorganização e divisão permite a manutenção dos mentecaptos do Poder.
Saravah Cecilia,
Foi uma experiência inesquecível
Quarta-feira, 14.Abr.2010 at 12:04:30
One se lê no ponto 3 “E mais ainda para sociedades diferentes e de é poças diferentes ?” deverá ler-se “E mais ainda para sociedades diferentes e de épocas diferentes ?”
Domingo, 18.Abr.2010 at 09:04:56
Amei a imagem da porta do avião a abrir-se como a tampa de uma panela de pressão. Grande Cila.