Um recorte de um velho Diário Popular fez-me recuar mais de quarenta anos, até 1969. Nele se lê que, nesse ano, as lojas passaram a vender um número absolutamente inusitado de calças a mulheres de todas as idades (Para ler, clicar na imagem.) Nesse fim de década, os costumes não eram o que até aí sempre tinham sido, Salazar já tinha caído da cadeira e, apesar das notícias filtradas, Paris e as barricadas do Maio de 68 não tinham estado tão longe como a Nova Zelândia.
Mas o que é mesmo curioso é a fotografia e respectiva legenda: «As alunas da Faculdade de Letras já ganharam a sua batalha». Não é dito qual era a batalha nem qual foi a vitória, talvez porque um lápis azul da censura tenha cortado a explicação ou porque esta foi evitada para escapar ao dito lápis. Mas eu explico.
Dava então aulas em Filosofia e a prática corrente quanto a indumentária feminina era a seguinte: só às estrangeiras, que frequentavam cursos de língua portuguesa, era permitido usar calças e a triagem era feita pela Sr.ª Clotilde. Várias gerações se lembrarão desta zelosa empregada, sempre presente pelos corredores, movendo-se lentamente dentro de uma bata preta acetinada. Quando avistava pernas femininas revestidas, aproximava- se e perguntava em voz muito baixa: «A menina é estrangeira?». Ausência de compreensão, e portanto de resposta, era interpretada como afirmativa e a autorização era tácita, mas tinha ordens para pedir às portuguesas que abandonassem as instalações da Faculdade.
Uma parte desse ano de 69 foi animadíssima na Cidade Universitária – como o foi (e de que maneira…) em Coimbra e nalgumas outras faculdades de Lisboa. Uma lista encabeçada por Arnaldo Matos ganhou a presidência da Associação de Direito (contra Alberto Costa, o ex-ministro da Justiça, então do PCP) e aqueles que viriam a fundar pouco depois o MRPP mantinham em agitação permanente, directa ou indirectamente, o conjunto das três faculdades vizinhas: Direito, Letras e Medicina. Multiplicavam-se os plenários e recordo-me especialmente de um que teve lugar no Hospital de Santa Maria, com milhares de estudantes e alguns (poucos) professores – tão poucos que, de Letras, apenas Lindley Cintra e eu nos pusemos a caminho, debaixo de um mesmo chapéu-de-chuva, insuficiente para impedir que chegássemos ao destino encharcados dos pés à cabeça. Aí foi decretada uma greve e, enquanto ela durou, é óbvio que a Srª Clotilde se recolheu atrás de uma secretária, num corredor longe do átrio, e que toda a gente fez assembleias por todos os cantos, com calças, saias e mini-saias. Não sei se os objectivos pela qual a greve foi convocada terão sido minimamente atingidos (para ser sincera, nem me lembro exactamente o que poderão ter sido…), mas ela teve, garantidamente, um benefício colateral: as calças entraram em Letras para sempre e ficaram como direito feminino adquirido. Ou seja, foi ganha a tal batalha que a fotografia refere sem explicar.
Mas a notícia do Diário Popular fala também de certas restrições em empresas e confirmo. Em fins de 1970, entrei a meio tempo para a IBM. Dava aulas de manhã em Letras e passava para o mundo da informática depois de almoço – de calças ou de saias. Alguns dias depois de ser admitida, o meu primeiro chefe perguntou-me timidamente se dava aulas na Faculdade «assim». Não percebi, ele lá se explicou e eu confirmei que sim, que vinha directamente da Lógica para os bytes. Verifiquei então que as poucas colegas que tinha nas redondezas andavam sempre de saias e disseram-me que se toleravam calças há pouco tempo, sendo recomendável que fizessem parte de fato completo… Não alterei nada e nem tive muito tempo para me preocupar, já que todas as mudanças se davam então a um ritmo tão vertiginoso que, pouco depois e sem qualquer tipo de greve pelo meio, toda a gente se vestia como entendia – no limite, até de hot pants.
Curiosamente, aos homens continuava a ser exigido a maior das formalidades: fato escuro, camisa de preferência branca, gravata (obviamente…) e cabelos curtos. Só o 25 de Abril viria a libertá-los desse dress code. A nós, poucas diferenças trouxe.
Surpresa provável para os mais novos que nos imaginam talvez sempre de saia e casaco cinzento e penteadas como a Simone de Oliveira e a Madalena Iglésias, revistas agora em velhos festivais da canção. Pois, mas não era assim.
Segunda-feira, 05.Abr.2010 at 12:04:01
Ora aqui está uma área, a dos costumes, que escapa à da “grande política”. Mas da mudança de práticas culturais, de posturas, de mentalidades apenas também se costuma falar no geral. Por isso, fico contente com este post: a aparição das calças apresenta-se com tantos dados concretos que, em torno delas, são muitas histórias que surgem, possibilitando uma leitura da época. Post que, para além do mais, mostra como os testemunhos, neste caso escritos, podem possibilitar o descodificar de fontes escritas, as mais tradicionais da História. Ora aqui está mais um exemplo de como os “Caminhos da memória” têm, também, contribuído para a produção de novas fontes históricas.
Segunda-feira, 05.Abr.2010 at 12:04:59
Olá, Luísa.
Achei graça porque a Diana me mandou este recorte de jornal há uns dias e «vi» logo a Srª Clotilde e o resto…
Quarta-feira, 07.Abr.2010 at 02:04:38
Para os jovens de hoje isto deve parecer absurdo. Basta contar quantas mulheres (de qualquer idade) trazem saia, se nos dermos a esse trabalho nos minutos de uma viagem de metro…
Nos anos 70 eu dava aulas na Escola Pedro de Santarém cujo director, um tal dr. Silva Marques, fazia discursos públicos, perante toda a escola, criticando o uso de calças pelas professoras.
Quarta-feira, 07.Abr.2010 at 03:04:44
Assumo, Graça, que só até ao 25 de Abril…
Quinta-feira, 08.Abr.2010 at 07:04:24
as mulheres muito antes de 69 já vestiam calças que em 69 eu já estava no brasil
Segunda-feira, 12.Abr.2010 at 12:04:23
Engraçado este post da Joana. Não fazia ideia que isto se passava ainda assim na Faculdade de Letras em 69, com essa extraordinária figura da D. Clotilde a zelar pelos bons costumes das meninas portuguesas…e as estrangeiras à solta! Recordo no entanto que, no início dos anos 60, levava às vezes calças por baixo da bata do liceu, numa atitude que eu sabia ser francamente provocatória.