O Quintino já tinha o cabelo branco antes de chegar a Revolução. Mas não era tão velho quanto parecia. O cabelo é que tinha embranquecido precocemente. Era um ónus hereditário, segundo ele, explicando que o mesmo tinha acontecido ao seu pai e seu avô. Além de branca, a cabeleira também era escassa. Todas as manhãs, num ritual que ia repetindo ao longo do dia, Quintino dedicava uns minutos vagarosos a acamar, pacientemente, os poucos cabelos brancos de um lado para o outro do crânio, de forma a melhorar, assim pensava ele, o seu visual capilar. Também não descurava outras vertentes quanto ao seu aspecto. Modesto escriturário, sonhando com uma carreira que lhe melhorasse o futuro, ele sabia que, para atingir os seus fins, a apresentação exterior era importante. Nunca chegaria a chefe de secção ou de departamento se causasse má impressão à observação atenta dos seus superiores. Assim, Quintino andava, por regra, vestido com fatos completos e claros e usava, sempre, um lenço de seda (oferta de Natal) a compor-lhe o pescoço. Achava que aquele adereço era preferível à banal gravata como sinal de aptidão para ser uma chefia potencial antes de chegar às vias de facto. A empresa onde trabalhava estava fortemente conotada com o antigo regime e os seus usos e costumes. Tanto, que guaritas da Legião vigiavam o perímetro das instalações industriais. Quintino não queria destoar e para o tornar evidente aos olhos dos chefes, tinha sempre exposto um enorme terço terminado num grosso crucifixo em plástico duro pendurado no vaso pintado (oferta de Natal) onde guardava as esferográficas e que se destacava na arrumação impecável da sua secretária.
Quando a Revolução chegou, Quintino percebeu, num ápice, para onde sopravam os ventos e que a sua empresa, tão conotada que estava com o anterior regime, só podia dar uma volta de cento e oitenta graus. Sendo estratégica, nada havia que saber. Ainda o Salgueiro Maia andava nos seus trabalhos frente ao quartel do Carmo, já o terço tinha desaparecido da secretária do Quintino e o aristocrático lenço de seda saído do pescoço. A ganga substituiu o fato claro e as camisas passaram a ser de flanela aos quadrados e desapertadas no colarinho (só num Natal, a mulher ofereceu-lhe três). No lugar antes ocupado pelo terço, passou a habitar um cravo vermelho feito em papel. Não tardou muito que o Quintino pedisse conselhos sobre como se poderia inscrever no PCP. Conseguida uma proposta e encontrado um avalista, a sua admissão como militante foi, no entanto, congelada pela forte resistência que provocou atendendo à sua devoção anterior. Quintino aguentou com paciência, muita paciência, as resistências que foi encontrando pela frente no caminho para se tornar comunista, num revolucionário de perfil bolchevique. Falava sempre nos Plenários, exaltando os novos ventos da democracia, da democracia, do MFA, do controlo operário e das nacionalizações. Ia, de t-shirt vermelha, às comemorações litúrgicas da memória comunista que se cumpriam no Barreiro, no Couço e em Baleizão, mais as excursões às UCP’s. Dessas peregrinações, trazia fotografias que mostrava aos seus colegas de trabalho, confiando que “o partido” se dispusesse a acolhê-lo no seu seio. Embora enfrentando opiniões muito divididas, Quintino conseguiu “entrar”. Tornou-se um militante cumpridor, concordando sempre com a linha do Partido. O seu apoio exprimia-se com redobrado vigor quando a reunião tinha a assistência e o aconselhamento político paternal de um camarada do Comité Central e que levava a beber aos camaradas submissos e reverentes a linha do partido, demonstrando, assim, a pujança exaltante do centralismo democrático. Na empresa, Quintino chegou a chefe de secção e depois a chefe de departamento. No Célula, foi até ao secretariado onde era o responsável pelos fundos, tarefa em que demonstrou zelo extremo na cobrança pontual das quotas.
Quando os computadores invadiram a empresa e revolucionaram o trabalho administrativo, Quintino achou que uma revolução lhe tinha bastado. Pré-reformou-se e foi fazer trabalho político na sua área de residência. Ali, tornou-se responsável por cobrar as quotas entre os militantes reformados, desempregados e as domésticas. Entretanto, Quintino voltou a usar um lenço de seda ao pescoço (prenda do último Natal). Metido na frente autárquica, ainda não perdeu a esperança de vir a ser Presidente da Junta da sua Freguesia.
(Texto revisto de um post publicado no “Água Lisa”)
Quinta-feira, 18.Mar.2010 at 10:03:38
Vá lá que este não passou de cobrador de quotas, apesar do seu trajecto ante-25 não ter sido o mais lamentável ou repugnante. Era apenas um “observante” aparentemente inócuo. Outros houve, que os sabemos, muito mais activos e empolgados no outro tempo e que acabaram, como grandes revolucionários e amigos do povo, a mexer cordelinhos que lhes permitiram moldar situações ou mexer com pessoas. E, aí, quanta miséria moral não transbordou para o esgoto da Revolução…
Quinta-feira, 18.Mar.2010 at 04:03:08
Sim, as velhas tretas do “vá lá” e “outros houve”. Na fórmula gasta do relativismo que, pelo lido, está para durar.
Quinta-feira, 18.Mar.2010 at 01:03:54
O que substancialmente se desprende de um post destes é que, sob a capa de uma pretensa heterodoxia, se encontra um visceral esquematismo, sectarismo e primarismo do seu autor.
Com efeito, o pobre do Quintino fica como um reles oportunista e arrivista por ter aderido à revolução e mais tarde ao PCP mas já ninguém se atreverá a dizer o mesmo de destacadas personalidades públicas que foram ou ministros e secretários de Estado, ou membros da Câmara Corporativa, ou Presidentes da CP, etc. (poupem-me, porque não quero, à divulgação dos nomes)no tempo do fascismo e depois aderiram à causa da democracia e da revolução de Abril.
E ponto final desta forma: o autor do post amarra para sempre o Quintino ao seu passado; eu nunca fiz isso com essas personalidades porque não é preciso ser excepcionalmente aberto para admitir que todos podemos aprender com a vida e mudar.
Quinta-feira, 18.Mar.2010 at 04:03:28
Atrevo-me a pedir a quem admite que “todos podemos aprender com a vida e mudar”, este desgraçado autor, a minha pessoa, em que “sob a capa de uma pretensa heterodoxia, se encontra um visceral esquematismo, sectarismo e primarismo” tenha oportunidade para ainda se regenerar. Se sim, mande a morada do purgatório para ir lá autocriticar-me.
Quinta-feira, 18.Mar.2010 at 09:03:53
E aos quesitos disse nada, zero, népia, nicles – é o debate de ideias e o contraditório em todo o seu esplendor.
Esquemáticos, sectários e primários são sempre os outros. Vou propor à segurança social quem passe a pagar espelhos a certos sujeitos.
Domingo, 21.Mar.2010 at 10:03:05
Não, o João Tunes não exagera, não é sectário, primário ou esquemático, como o Eduardo Reis Costa pretende. A estória ilustra bem muito do que se passou logo a seguir ao 25.04.74. Basta de maniqueismo, reconheça-se a verdade dos factos, condição ‘sine qua non’ da sobrevivência política. Aprenda-se alguma coisa, depois de tantos anos…
Assisti durante anos às carreiras venturosas e quiçá céleres de vários arrivistas e aventureiros tornados, “democratas do 27.04.74”, com espanto e indignação. Gente que contribuiu para o agudizar irrealista do PREC e do desastre que se lhe seguiu. Não é aliás este presente consequência daquele passado, das opções erradamente tomadas? E que presente vivemos…
Vindo da militância dos anos 62-63 nunca me senti bem junto dessas estranhas eminências que enxameavam não só e nomeadamente a célula dos bancários.
É preferível a solidão às más companhias, por uma questão de princípios, se a eles se aderiu e teimosamente se persiste em manter.
Quinta-feira, 18.Mar.2010 at 02:03:08
A estória está bem escrita, não há dúvida, mas tirando isso confesso a minha desilusão com o desfecho.
É que eu ia a meio da prosa e já estava a pensar que o Quintino teria sido daqueles que, passada a brasa revolucionária, tinha ido tratar da vidinha ou rapidamente se reconvertera a tudo o que, a seguir ao 25 de Abril, tinha combatido.
Afinal não, manteve-se onde estava e foi, com assinalável humildade, assegurar a cobrança de quotas dos seus camaradas.
E, assim sendo, se fosse eu a contar esta estória, havia de a contar mas com o título «OBRIGADO QUINTINO».
Quinta-feira, 18.Mar.2010 at 10:03:38
Gostei, gosto habitualmente dos escritos do João Tunes. São muito bem esgalhados, português de primeira, e com um sentido de humor que aprecio muito. Quanto à espécie de polémica que anda ali para cima, creio que é do “indivíduo” que se fala neste texto – um indivíduo sem consciência social – e não de uma classe social, e muito menos de um partido. De resto, mesmo a consciência social que pode estar na base da organização de um (do) partido, em meu entender, não é nem a soma, nem a média das “consciências individuais”, do que os indivíduos que formam essa classe, tomados um por um, pensam e sentem. Logo, talvez não haja qualquer crítica ideológica implícita, mas apenas o registo de um olhar atento a certos aspectos da natureza humana – registo que nem considero pessimista. De onde vem a ofensa?
Sexta-feira, 19.Mar.2010 at 12:03:05
Tem razão, Helena. Não aprecio, e portanto não pratico, o neo-realismo redutor (o que existe no meio de tanto excelente neo-realismo), o das personagens “típicas”, arrastando aos ombros a figuração de uma classe, uma espécie, um género, um partido. Porque não acredito em grupos sociais homogéneos, só possíveis em escrita apologética e consequentemente desinteressante. Na enorme e rápida mutação política e partidária vinda na imensa cascata da revolução, a multidão das adesões que inundaram os partidos, umas como consequência de processos acelerados de consciencialização e desejo de participação mas outras por razões menos nobres, era inevitável e desejável. Nos partidos nascentes ou de passado fresco e frágil, obviamente que foram eles que marcaram a natureza social e política desses partidos e muita da sua trajectória a que emprestaram traços naif que ainda hoje perduram em aspectos peculiares dos congressos do PS, do PSD e do CDS. No caso do PCP, de forte identidade e história, com fortes disciplina e organização internas, o fenómeno foi mais complexo, pela coexistência de uma “velha guarda” cohabitando com adesões em massa de pessoas sem passado de luta, sem consciência social (quanto mais política), sem cultura marxista mínima. No meu ponto de vista, o balanço da forma como o PCP geriu estas diferenças e as suas contradições, é um caso de assinalável sucesso do ponto de vista partidário. Embora, não havendo bela sem senão, tenha plasmado uma certa hierarquia de estatuto e poderes relativos de voz que plasmaram as formas mais perversas do centralismo democrático, nomeadamente quanto ao papel da reverência e do acriticismo celebrante. Obviamente que o “quintino” foi (é) uma peça, apenas uma peça que tentei tratar como o máximo que sou capaz de exprimir uma certa nostalgia crítica temperada de condescendência e ternura de memória. Mas existiu, só lhe mudando o nome, e não foi caso único. E muitos como ele foi assim que chegaram ao “partido” no 25A e assim participaram na revolução que foi feita por muitos e … diferentes. Depois de tantas vezes ter tratado e enaltecido as figuras mais incensadas e mais heróicas, este textozinho despretensioso foi uma forma de lembrar os “quintinos” e enriquecer a paleta na análise mais aproximada à imensa riqueza sociológica inscrita na realidade mutante de um partido que foi determinante em haver revolução e na sua consumação. E que mesmo hoje não é entendível com eles fora do filme. Sem varrer tabus para baixo do tapete, em nome de hinos homogéneos de glória, mas tentando não julgar nem generalizar. O meu texo é suficientemente desinteressante para ter pensado que ia incomodar ou irritar quem quer que seja. Mas, permita-se a vaidadezinha, se é assim, então sempre tem alguma utilidade.
Sexta-feira, 19.Mar.2010 at 01:03:19
Eu, Quintino, posso falar?
Mesmo sem me expressar tão bem, venho só humildemente dizer que o João, naquilo que conhece, tem razão (até rima, é verdade). Mas fiz bem o meu papel. Quintino era meu nome de clandestinidade. Trajava como ele disse, usava o tal lenço (mesmo mascarando a minha identidade, não conseguia usar a gravata) e não passava de um simples escriturário. Com a revolução, não mudei. Apenas abandonei o disfarce, deitei para trás as reservas e medos e até consegui ser promovido. Não dei ares do quer que fosse e continuei a minha militância. Hoje, reformado, faço a cobrança de quotas lá do pessoal da minha zona. Claro que o meu nome verdadeiro é outro, mas o João insiste em chamar-me como eu era conhecido naquele tempo. Aguardo, ainda com esperança, ser eleito Presidente da Junta.
PS – Claro que esta história não é verdadeira, mas a do João também não
Sábado, 20.Mar.2010 at 02:03:51
Mas tudo isto é um falatório sem sentido porque ninguém se veio aqui queixar de singularidades (respeitáveis e óbvias) ou de falta de homogeneidade.
O J. Tunes agora dá a volta ao prego e quase parece que qui homenagear os Quintinos como componente dos muitos afluentes individuais da revolução de Abril.
Mas é uma tarefa ciclópica esconder a postura mesquinha e sem grandeza humana da apresentação por Tunes do Quintino como via para caricaturar e desumanizar os afluentes que então engrossaram o PCP.
Como já aqui foi sublinhado, meu Deus, o Quintino não se bandeou, não era nenhum oportunista duradouro.
O palavreado pseudo-sociológico não esconde a matriz altaneira e esquemática do texto de Tunes, que diz por linhas envergonhadas que, ao contrário dele próprio, o Quintino não vinha das antigas e consequentes fileiras antifascistas.
Sábado, 20.Mar.2010 at 05:03:14
Tanta coisa, tanto indíduo versus colectivo, tanta conversa…para quê? O texto é de facto desinteressante, como reconhece o autor, mas não, pelos vistos, quem admira o estilo. A passagem :”Tornou-se um militante cumpridor, concordando sempre com a linha do Partido (…) Um camarada do Comité Central e que levava a beber aos camaradas submissos e reverentes a linha do partido, demonstrando, assim, a pujança exaltante do centralismo democrático(…)” é para quê? Quando é que esta gente acaba de ajustar contas consigo própria e com o passado? Quando aprenderão a escolher o inimigo principal? Ou será precisamente esta mais uma evidência de que já o escolheram há que tempos? Mas que falta de paciência…
Segunda-feira, 22.Mar.2010 at 01:03:40
Ó João Tunes, sejamos realistas, desrespeitemos o ‘Olimpo’… Nem só os/as Quintinos/as aderiram ao partido de paredes de vidro fosco. Também a linhagem dos/as Quintilianos/as, que sendo democratas antes de 24.04.74 eram igualmente menos corajosos/as e mais oportunistas/carreiristas. Se prescrutar cuidadosamente descobrirá que em algumas oasiões após-25.04.74 conseguiram ‘ascender’ ao comité central ou à comissão de controlo de quadros. Não, não é exagero. Sei os nomes.
Continue a sua análise crítica João, não respeite os tabus que alguns lhe querem impor, a sua análise deve efectuar-se sobre todos os objectos da realidade e não apenas sobre os que lhe/nos querem impor. Por isso lutámos desde 1962.
Há porém quem persista em querer impor aos outros “a verdade a que temos direito”, visão unilateral e amputada da realidade…
Saudações
Armando Cerqueira