Um texto de Luísa Tiago de Oliveira (*)
A propósito de um artigo de El País: “Querido abuelo, vamos a enterrarte con la abuela, tu esposa”
Em 2010, um ancião alto e magro entrega as urnas com o que ficou dos corpos dos companheiros, mortos de fome, nos cárceres franquistas. Recebem estes despojos, recuperados, os familiares, procurando uns conter as lágrimas enquanto outros as abrem. Abraçam-se. Nas fotografias, distinguem-se bem os netos, que são também aqueles que erguem os punhos quando vão receber os restos dos avós. Em 2010, com este gesto de outrora, reactiva-se a simbólica dos anos 1930 em que à saudação fascista se opuseram os punhos cerrados.
Ao ver o artigo de El Pais e as fotografias anexas, percorremos também décadas de silêncio e emoções abafadas, gestos lacónicos para sentimentos de força calada.
Perguntamo-nos de onde terão vindo aquelas bandeiras tricolores da República, que não são a actual bandeira de Espanha. Interrogamo-nos se serão antigas, se terão estado escondidas, o que sentiram e como viveram os derrotados que as tiveram, o que lhes foi necessário calar, disfarçar, negar. Porém, fixamos mais atentamente as bandeiras, que de início nos tinham feito sonhar, e vemos que afinal parecem novas e podem ter sido feitas nas oficinas e ateliers que trabalham para qualquer loja, para qualquer mercado.
Mas, ao envolverem e embalarem pequenas urnas, estas bandeiras novas duma República passada falam. De quem as empunha, de quem as manuseia, de quem nem delas se abeira, de quem delas não gosta, das convicções de todos esses homens e mulheres.
E eu já ouvi uma enorme bandeira da República a falar.
Foi, em 2007, numa ceia comemorativa da implantação da República de 1931, em Ourense, organizada pela Associação dos Amigos da República. Naquela noite, corria dum lado ao outro do palco, onde se sucederam os oradores e as canções entoadas. Em longos anos anteriores, tinha estado enterrada num quintal, de onde fora resgatada há pouco, por um filho, já de certa idade. E, do seu novo lugar, a bandeira, comovida, ouviu o nosso Grândola e o Hino de Riego.
Aquilo que a terra escondeu, como terá ido lá parar? Terá sido a vontade de que não caísse nas mãos do inimigo? Terá sido a urgência de esconder algo que podia incriminar quem o tinha? Porque foi o seu local ensinado? O terror e o medo impostos, de sangue ou pedra fria, não teriam abrandado para permitir destruí-la sem levantar suspeitas, em 70 anos, incluindo 30 de pós-franquismo? Já não terá sido a força bruta mas, sim, o medo entranhado a obrigá-la a permanecer soterrada. Contudo, ao salvá-la, aqueles que deste modo agiram tiveram decerto, e também, a esperança de que um dia a bandeira pudesse ser desenterrada, utilizada, libertada. E, significativamente, só o foi muitos anos após o fim da ditadura franquista. E desde aí, num tempo em que as Associações dos Amigos da República e as Associações de Memória Histórica batalham, a bandeira surge, novamente.
Por trás de cada gesto épico, há muitos outros que o possibilitam, bem mais anónimos e invisíveis, de resistência continuada. A radical vontade de mudança está também na determinação quotidiana de, com os pés na terra, assegurar a vida das ideias. Através de palavras e silêncios, de gestos, de objectos simbolicamente investidos.
Que sucessivas histórias contarão estas bandeiras?
Que histórias contarão estes punhos erguidos, por netos, que não conheceram os avós?
(*) Biografia de Luísa Tiago de Oliveira
Quarta-feira, 17.Mar.2010 at 12:03:06
Há bandeiras que nos interpelam com grande intensidade, como sucede com a tricolor republicana espanhola que os Amigos da República de Ourense expõem todos os anos. Trata-se, como escreveste de forma emotiva, da bandeira desenterrada por alguém a quem o seu pai, comerciante em Vilardevós – na fronteira entre a Galiza e o município de Chaves, do lado português – inteirara do sítio exacto onde fora enterrada. Há fotos dessa bandeira gigantesca, colocada ao longo da parede exterior da loja, nos dias de festa, nos anos ’30.Há uns anos, o filho idoso desse velho republicano resolveu contactar os “Amigos da República”, ao saber que também eles andavam empenhados nas exumações das valas comuns, nas identificações das ossadas e nas segundas inumações destes vencidos, para os quais a Transición reservou um lugar no esquecimento. Como escreve Mário Benedetti, o olvido está cheio de memória. É essa mesma memória que é resgatada agora nos republicanos assassinados, identificados e de novo enterrados com um nome e uma dignidade qu lhes foi tirada e, paralelamente nestas bandeiras que falam, como a de Ourense, sempre presente nos diversos actos públicos da Associación.
Sábado, 20.Mar.2010 at 05:03:14
Este belíssimo texto de Luísa Tiago de Oliveira ilustra os processos rituais de recuperação da memória de milhares de republicanos assassinados, desaparecidos, silenciados e condenados ao exílio, em muitos casos no seu próprio país. Quem testemunhou estas cerimónias, legitimando a memória dos “vencidos”, não pode esquecer a peso emocional da presença da bandeira. No cemitério de Oliva de la Frontera também ouvi “a voz dessa bandeira”, desfraldada por um neto, ritualmente colocada sobre a sepultura onde jazem as ossadas de dezassete fuzilados em 1936. Junto ao neto estava o avô, sobrevivente da matança por ter encontrado refúgio no campo de refugiados da Coitadinha, em Barrancos. Todos os anos, a 21 de Setembro, a bandeira tricolor ganha vida em Oliva de la Frontera, inscrevendo a memória dos avôs no presente/futuro dos netos.
Sábado, 20.Mar.2010 at 09:03:18
Obrigada por partilhar connosco este texto, que com tantas perguntas nos obriga a pensar nas respostas.
Já tinha lido o texto do El País, quando saiu, e emocionou-me profundamente.
Olhando para a sociedade actual, em especial para a juventude, nomeadamente no nosso país – quase completamente alheada das grandes questões da actualidade e, muito mais, das do passado -, surpreendeu-me a atitude dos netos espanhóis, ao fim de tanto tempo. Sorte dos avós que têm netos que os honram desta forma!
Sábado, 20.Mar.2010 at 11:03:24
Gracias, amiga Luisa, por el envío de este texto tan emocionante, tan bien escrito, pero sobre todo tan lleno de sentimiento y de defensa de la dignidad humana, la libertad y el rechazo a toda dictadura y más a las que de tal modo asesinaron. Como bien dices, en España han reverdecido asociaciones y grupos de gentes (muchas veces los nietos de los muertos así) que reivindican ya tan sólo la memoria, el entierro de quienes fueron dejados en las carreteras, en pozos o fosas comunes. Hace mucho que sé cuántos fraternos amigos tenemos los españoles en Portugal. Mil gracias.
Domingo, 21.Mar.2010 at 12:03:41
este texto também foi publicado no novo blog da ARMHEx
http://armhex.blogspot.com/
Quarta-feira, 24.Mar.2010 at 11:03:14
Obrigado Luisa Tiago de Oliveira por nos questionar sobre “as bandeiras que falam” mas igualmente sobre os gestos que falam. Complementa de forma muito feliz o artigo do El País.
Todas as memórias (e mais ainda aquelas que não se conseguem – conseguiram – exprimir nos tempos próprios) têm uma dimensão simbólica e afectiva que não pode nem deve ser esquecida.
O texto (e o comentário da Paula Godinho) deixaram-me curioso sobre a bandeira do Amigos da república de Ourense. Será que existe um sítio (livro, documentário, etc) onde se possam ver as fotografias da bandeira nos anos 30 e tentar conhecer um pouco mais sobre a sua história? EXistirão outras histórias semelhantes de outros objectos que tragam memórias de gente anónima?