Um texto de Miguel Teotónio Pereira (*)
Há quase cento e cinco anos que José repousa naquela cripta. Tempo de mais para uma vida, quase chegaria para duas. A esse repouso, imposto pela tirania da mãe de todas as mães – a Natureza -, ficava todavia José em débito por lhe ter poupado a excitação dos seus nervos, já de seu natural basto inflamáveis, que certamente o fluir dos acontecimentos não deixaria de provocar. A morte é dual – uma condenação original, e uma libertação prometida.
Ficou José a cinco anos de viver o triunfo do que fora a mola, e a seiva, da sua existência. Não conheceria o sobressalto da monarquia do Norte, não assistiria à degradação dos alicerces morais e sociais daquele triunfo, e à sua implosão na revanche reaccionária do 28 de Maio. Já nada poderia fazer para contrariar, com o seu ânimo poderoso e exaltado, o rumo da Revolução Nacional, a implementação de uma ditadura de inspiração fascista, a consolidação de um regime policial de partido único, que os desfechos da Guerra Mundial não puderam quebrar. E nem em sonhos – que não parecem ser plausíveis em meio do gelo do Sono eterno – lhe chegariam o viço libertador e os aromas redentores da flor de Abril.
Mas, estou em crer, se os mortos falassem – para os vivos, já se vê, que lá entre eles ninguém sabe de que conversam – não se queixaria José; quero dizer, queixas teria, e não poucas seriam – de adversários mas também de correligionários -, mas não da ausência de protagonismo nos acontecimentos do seu tempo; quando digo protagonismo, não estou pensando na acepção vulgar que hoje, e infelizmente, essa palavra carrega, mais aparentada com vaidade, mas naquela que verdadeiramente significa – a de alguém que protagoniza, que está por dentro, em três palavras – que é sujeito.
E que sujeito era José! Errático, instável, mas voluntarioso e de ideias assentes! O destino que o berço lhe proporcionou, sendo o pai um abastado proprietário agrícola, rejeitou-o ele, preferindo a vida tumultuosa das escolas e das academias citadinas (Portalegre, Coimbra, Porto, Lisboa), cursando sem concluir, e sempre escrevendo, em gazetas várias, assumindo diversas correspondências, até achar o leito do rio da sua vida: seria editor e livreiro, e para começar, fundou, em 1871, na alfacinha e proletária Rua do Arsenal, a Nova Livraria Internacional.
Se vivos fossem, a José Falcão, Elias Garcia, Rodrigues de Freitas, Gomes Leal, Silva Pinto, Eduardo Maia, Magalhães Lima, Teófilo Braga, e a tantos outros, poder-se-ia perguntar que importância teve a livraria de José na concentração e no desenvolvimento das ideias do século, dos sonhos do sufrágio universal, da melhoria das condições de vida das “classes laboriosas”, do federalismo com a Espanha republicana – mas não faltam os testemunhos escritos; e podemos imaginar a efervescência da sua acção doutrinária e prática recordando o nome de algumas associações a cuja fundação e actividade ligou o seu: o Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, a Internacional Operária, o Centro Republicano Federal de Lisboa, o Clube Mundo Novo. Fundou jornais, aos quais emprestaram a sua pena as mais proeminentes figuras intelectuais e políticas da época, publicou folhetos e almanaques, assumiu-se como figura central do Partido Republicano (integrou o primeiro Directório), envolveu-se nas suas disputas internas, colaborou em jornais da província (Portalegre, Tomar, Chaves, Elvas, São Miguel). Assinou livros e opúsculos: Liberdade de consciência e juramento católico (em 1878 foi levado a juízo por se recusar a jurar sobre a Bíblia), A questão social, as bodas reais e o Congresso Republicano, o Catecismo republicano para uso do povo. Emigrou para o Brasil, e nele encontraram apoio e auxílio os refugiados do 31 de Janeiro; por lá adoeceu, e regressou a Portugal para morrer.
Em 2010 cumpre-se o centenário da instauração da república em Portugal. Foi instituída, faz já tempo, uma Comissão Nacional, encarregue de elaborar um programa de actividades. Esta Comissão estabeleceu vários contactos, de modo a facilitar o desdobramento sectorial e territorial dessas actividades. Os municípios surgem, naturalmente, como parceiros privilegiados, e parece ser indiscutível a oportunidade que se lhes depara de, independentemente dos juízos de cada um acerca do regime republicano, promoverem, com apoios vários, e com uma visibilidade acrescida, iniciativas de carácter histórico, cultural e patrimonial que valorizem os seus acervos, as suas diferenças, a sua história. As marcas não se resumem a operações de marketing. Carecem de substância.
O protocolo assinado, em Março de 2009, entre aquela Comissão e a Associação Nacional de Municípios Portugueses prevê, entre muitas outras possibilidades, a publicação, este ano, de Roteiros Republicanos dos municípios (cronologias, toponímia, urbanismo, património, biografias, etc.). Quem estiver interessado, pode consultar centenariorepublica.pt.
Tal, porém, não acontecerá em Marvão, a mui nobre e sempre leal vila da corrente liberal e progressiva da luta civil, e no município de que é cabeça. Numa das primeiras reuniões de câmara do presente mandato, questionado por um munícipe, o presidente da câmara, aparentando desconhecer as iniciativas que, a propósito, por todo o lado irrompiam, afirmou não considerar relevante “festejar” o centenário; na reunião seguinte, novamente questionado, optou pelo silêncio; finalmente, e porque à terceira é de vez, mais recentemente, tendo o referido munícipe insistido nesta questão, arrumou-a em definitivo, proclamando, ex cathedra, que “Marvão não tem tradição republicana”!
José Carrilho Videira nasceu em Marvão em 1845, e faleceu em Marvão em 1905. Só lhe podemos desejar que à sua derradeira Morada não tenham chegado os ecos da imponderada sentença de quem conjunturalmente se senta na cadeira principal da antiga casa dos Homens-Bons da sua terra.
(*) Biografia de Miguel Teotónio Pereira
Quinta-feira, 25.Fev.2010 at 06:02:46
Suspeito do que se tenha passado: será que a placa que ilustra o post não se encontrará também em local com visibilidade semelhante ao daquele em que se encontra a do pidocondomínio da António Maria Cardoso?
Ora, se assim for, existem afinal antecedentes de peso que justificam a irredutibilidade (?) da administração da imobiliária responsável. E fica também demonstrado, pela veemente declaração do respeitável autarca de Marvão, o princípio, caro a várias correntes da ontologia, segundo o qual aquilo que se desconhece nunca existiu.
nelson anjos
Quinta-feira, 25.Fev.2010 at 11:02:25
Não terei propensão a comentar os comentários. Todavia, este do Nelson Anjos, que não tenho o prazer de conhecer (e a quem aproveito para agradecer o comentário), carece de esclarecimento; e é este: a sua suposição, que parte de um raciocínio lógico – como poderia um autarca “desconhecer” um facto de forma tão sólida publicitado? – não é acertada. Não saberei dizer a data em que foi aquela placa colocada na fachada de uma casa (de habitação, ainda hoje, e bem conservada) situada na principal rua da vila (a do “Castelo”, que de porta-a-porta, isto é, de ponta-a-ponta, atravessa toda a urbe), mas posso afiançar que lá se encontra há décadas; no que me diz respeito, habituei-me a apreciá-la desde que conheço Marvão, a saber, desde 1966; mas seguramente que já lá repousava há bastante tempo.
A foto é nesse aspecto infeliz, houve a preocupação de “retratar” o seu “conteúdo”, mas, não parecendo, a “moldura” azulada (mistérios da tecnologia digital) que a enquadra não é senão porção da fachada caiada da casa.
Resta-me acrescentar que essa fachada, com aquela placa, é bastas vezes fotografada por turistas e curiosos, não sendo crível que o respeitável autarca de Marvão nunca nela tenha atentado.
Quinta-feira, 25.Fev.2010 at 12:02:52
Bem vindo Miguel a estas esferas e um abraço
Quinta-feira, 25.Fev.2010 at 12:02:29
Miguel,
Vieste recordar-me que os teus pais alugaram a casa de Marvão em 1966. Cheguei lá pela primeira vez com o teu pai, no Verão de 68, depois de um não grave mas aparatoso acidente de automóvel em que chocámos com uma carroça… Tenho ainda uma cicatriz.
Um abraço e, tal como diz o António P., bem vindo…