Decorria o primeiro ano da Revolução de Abril e as ruas enchiam-se de cartazes, de murais e de inscrições nas paredes – listagens de reivindicações veementes e cheias de pressa de um País oprimido durante décadas, à mistura com frases dos “anarcas” e dos fascistas.
A variedade era grande e colorida. Exigências para o logo logo, o imediato, o já já, tais como “Reforma agrária já!”, “Os directores fora das escolas já!”, “Independência das colónias, já!”, etc. Ou proclamações imbuídas de um espírito de salvação nacional com carácter de exclusividade – umas, acusatórias (mais ou menos ofensivas, mais ou menos liquidatárias de algumas personalidades políticas), outras contendo promessas (mais ou menos honestas, mais ou menos idealistas). O certo é que todas garantiam um futuro inigualável aos portugueses. Viviam-se os primeiros arrebatados tempos da Democracia. (Uma mudança menos agitada e com menos cravos poderia, provavelmente, ter-se traduzido em maiores avanços para a democracia económica e social – digo eu, que gostei demais desses anos de luta em constante frémito e festa – mas o estilo das revoluções não se encomenda a fornecedores ou se decide por votação de vontades, a nossa foi o que foi e, a meu ver, apesar de tudo deixou bons frutos).
A poluição propagandítistica e ideológica casava bem com o temperamento da generalidade do povo: as discussões de futebol ou nas famílias (por causa dos filhos, de dois palmos de terra arável ou de heranças) haviam dado lugar aos argumentos e contra argumentos sobre questões como o direito à habitação, o sexo antes do casamento, ou as últimas do Conselho da Revolução. No fundo, continuávamos iguais a nós próprios: românticos, generosos, gostando de festa e, sobretudo, opinativos e fervendo em pouca água. O desejo de convencermos cada português a ser um dos nossos tornava-nos, quase todos, intolerantes. A vontade de vencermos dava-nos persistência e levava-nos para a rua, em vagas de contínuas palavras de ordem, clamadas hora a hora. Ou escritas, de acesso fácil para todos. Assim sendo, o espaço público urbano tinha de ser disputado pelos diferentes partidos (umas dezenas). Em Lisboa parecia não restar a descoberto nem um milímetro quadrado e, como seria de esperar, a disputa acontecia corpo a corpo, em muitas ocasiões. Mesmo os mais calmos militantes defendiam por todos os meios a sua “dama”, isto é, a sua causa.
Naquela noite (outonal, suponho), assim que iniciei o turno de vigilância da sede do meu partido, cerca das 23 horas, reparei que estava prestes a sair um piquete de colagem de cartazes: os baldes, as trinchas e os rolos bloqueavam a ampla entrada do edifício. Eram uma meia dúzia de camaradas da cintura industrial: activistas abnegados, robustos, gente do melhor, mas que carecia de uma voz de contraponto à sua impetuosidade, uma presença calma e fria nas decisões. Surpresa? – Uma mulher.
– Lena Pato: estás destacada com o camarada X, que segue no carro com os materiais, para acompanhares esta equipa! Vão colar a partir do Marquês de Pombal, pela Avenida abaixo, e temos informação que há um grupo do MRPP que vem a subir dos Restauradores, colando do mesmo lado da Avenida. Prevêem-se provocações e queremos que ajudes a evitar confrontos. Vai a pé com eles, amiga, mantém-te sempre por perto, e modera os nossos, os mais exaltados.
Partimos. Começou a afixação. Tudo em ordem, tudo ok, o pessoal bem disposto e eu atenta à aproximação do grupo dos adversários.
Ei-los!
Estávamos a uns escassos metros: “eles” e “nós”. Olhei de relance, à procura de alguém conhecido no outro “team”. Até podia ser que “ele” o integrasse… Não conversaríamos, claro, seria pessimamente visto pelos nossos, mas, pelo menos, encontrava-o. Como estará? Irá falar-me? Vai tratar-me pelo nome, chamar-me Helena? Tinha saudades da nossa amizade, estupidamente interrompida (ainda antes do 25 de Abril) pelas divergências ideológicas.
Parecia que adivinhara: “ele” surgiu de entre a rapaziada do outro grupo, (certamente, em funções idênticas às minhas) e estava a meia dúzia de passos. Cruzámos o olhar: um olhar da lista dos que nos eram completamente interditos em semelhantes circunstâncias. Ele, gesticulando, as mãos a saírem-lhe das algibeiras de um blusão, gritou-me:
– Colem essa coisa bem distante! Para cima, para cima na parede! Ouviste ó menina?
– Livrem-se de tocar nos nossos cartazes! – disse-lhe eu, firme, com ele a um metro de distância.
Aproximámo-nos um pouco mais, um do outro, virando momentaneamente as costas aos nossos amigos (aos meus amigos e aos amigos dele, entenda-se!), enquanto, sem interrupções, as tarefas prosseguiam em movimentos rápidos e a parede se ia enchendo de cartazes dos dois partidos.
Seguiram-se 30 segundos de diálogo em surdina, entre dentes, ao arrepio dos “nossos”. A amizade de anos condensada em quatro ou cinco frases.
– Os teus pais? Estão bem? – disse ele
– Sim, estão bem. E a tua mãe? – disse eu
– Também – disse ele
– Dá-lhe um beijo meu – disse eu
– Um abraço aos teus pais – disse ele
Depois, quando nos afastávamos, já de regresso aos respectivos piquetes de colagem, falávamo-nos na qualidade de militantes inflexíveis (que podiam, eventualmente, conhecer-se):
– Tem juízo, miúda! E vejam lá se não arranjam sarilhos…
– Quem precisa de juízo és tu! Sarilhos? Vocês é que gostam de sarilhos…
Ali ao lado, os camaradas cumpriam a tarefa com afinco, a leste do que se passara sob as arcadas do prédio. Com pequenas provocações verbais, ora para cá, ora para lá, mas (mais ou menos) pacificamente. Em todo o caso, nessa noite, na Avenida da Liberdade, não houve tumultos.
Há pouco tempo, eu e ele, a sós – com as nossas (ainda diferentes?) opções políticas, a nossa amizade, e um bife do Café Império – recordámos episódios do passado e rimo-nos com os (mais ou menos) trinta segundos de tréguas no combate ideológico, junto ao Hotel Tivoli.
Quinta-feira, 18.Fev.2010 at 01:02:25
Texto fantástico, Lena! Todos nós vivemos situações dessas. Sublinho esta tua frase: “O desejo de convencermos cada português a ser um dos nossos tornava-nos, quase todos, intolerantes.”
Abraço,
Jorge Martins
Quinta-feira, 18.Fev.2010 at 02:02:06
O texto é extremamente interessante e eu também caibo na fotografia. Se a coisa se tivesse passado ali para os lados de Benfica, Bairro Padre Cruz, ou lá para os lados da Marinha Grande, onde também fiz algumas incursões, poderia ser um dos do “outro team”. Mas, pelo Marquês, não me lembro de ter andado.
Não sou contudo tão incondicional no meu elogio, quanto o Jorge Martins. A menos que tenha percebido mal – por vezes o leitor “escreve” no texto coisas que o escritor não escreveu – não me revejo no olhar distanciado, talvez algo sobranceiro até, com que a Helena se demarca e de alguma forma me parece desvalorizar o passado de que fala. Foi isto que percebi nalgumas passagens do seu texto.
Por mim, ainda sinto as mãos sujas de cola, não escondo as mãos atrás das costas, e não me sinto nada incomodado com isso.
nelson anjos
Quinta-feira, 18.Fev.2010 at 03:02:04
Percebo o que diz, nelson, mas, sobretudo conhecendo a Helena, julgo que está enganado – demarcação coisíssima nenhuma. Mas ela lhe responderá melhor do que eu.
Quinta-feira, 18.Fev.2010 at 04:02:57
Caro Nelson Anjos,
Na verdade, fiz coisas que hoje parecem absurdas (e sê-lo-iam, não fora a época…), mas ninguém me apaga a memória daqueles irrepetíveis tempos!
Quinta-feira, 18.Fev.2010 at 03:02:33
Faço minhas as palavras do Jorge: esses anos, ninguém nos tira! Todos temos histórias dessas e tenho pena de não me dar jeito contá-las. Mas talvez… Aproxima-se o 11 de Março, sobre o qual tenha experiências e recordações fabulosas.
Quinta-feira, 18.Fev.2010 at 06:02:00
Nelson:
Ai de nós, se não formos capazes de nos distanciarmos do que mais nos apaixona ou apaixonou. Difícil, é ir até à ironia.Creio que, às vezes, não me explicarei ou não serei entendida. É um risco que corro com prazer.
Depois, o que está no cerne desta questão é polémico, eu sei. Sobretudo porque falar de tolerância, em política, pode confundir-se com cedência (ou ausência) de princípios. Ao deixar este testemunho, quis de facto demarcar-me de algumas atitudes de intolerância que atravessaram (atravessam) connosco, militantes a tempo inteiro, a nossa história de resistência ao fascismo e de participação na construção da democracia. Muitos de nós sabemos de amizades que foram abaladas, quebradas ou mesmo destruídas pela intransigência, pelo sectarismo ou pelo fanatismo. Desde a juventude até aos dias de hoje, vigio-me na minha tendência (às vezes) para não aceitar as diferenças de opinião, de crença ou de conduta. Porque é de liberdade individual que se trata e que gosto de cultivar.
Quanto à leitura que faz do meu distanciamento, relativamente ao passado, só duas coisas (informalmente e à pressa, como pertence neste caso dos comentários):
Do meu passado – todo!- tenho um orgulho que apenas o pudor me impede de exibir (ainda mais). Provavelmente, porque a capacidade de autocrítica não foi suficientemente desenvolvida…
Quanto ao que respeita ao PCP – um dos dois partidos envolvidos nesta “historinha” – não me canso de enaltecer o seu passado, sobretudo pelo papel de vanguarda nos combates contra o fascismo ( Por mais do que uma vez,tenho lamentado publicamente que os seus actuais dirigentes não valorizem condignamente esse papel).
Da Revoluçao, caro amigo Nelson, os meus amigos, a minha família e quem me conhece, todos sabem quanto sentida é a frase que extraio do texto: ” gostei demais desses anos de luta, em constante frémito e festa”. Falta apenas esclarecer quem não me conhece tão bem que, para mim, o sentido de (e para a) festa é também o do vibrar com as convicções e do regozijo com as vitórias.
Um abraço
Helena Pato
Sexta-feira, 19.Fev.2010 at 02:02:04
Gostei muito do teu testemunho, Lena. Também me revejo no que contas, incluindo alguma (ou bastante) intolerância devido às nossas profundas convicções. Éramos novos(as), e a tolerância aprende-se ao longo da vida. Mesmo assim, não rejeito nada desse tempo inesquecível, de tanto entusiasmo e também de tanta dádiva – a minha não como a tua, que começou bem mais cedo e com mais custos para ti, mas que não deixou de sacrificar algum do tempo para as minhas filhotas porque era por um novo país para elas que eu me empenhei. Hoje só tenho pena que os frutos não sejam tão bons como aqueles que esperava.
Sexta-feira, 19.Fev.2010 at 06:02:53
Claro que eu não esperava da Helena outra coisa, que não fosse uma réplica inteligente e esclarecedora de quaisquer equívocos; – neste caso, do leitor. Assim como o foi a dos demais.
A Helena assume também que, ainda hoje, o tema que aborda no seu texto pode carregar algum risco de má interpretação, ou até – acrescento eu – de provocação (para mim no melhor sentido. O meu comentário também não pretendeu mais do que isso.
Um abraço
nelson anjos
Sexta-feira, 19.Fev.2010 at 06:02:44
Relendo hoje o meu escrito, e já com maior distância relativamente ao que na altura me saíu (foi um post esgalhado a pedido da “redacção”,num simpático quase “para já” da Joana…), dou alguma razão ao Nelson Anjos na impressão que posso ter deixado de “superioridade” ou “sobranceria”, como disse. Não me resta mais do que reconhecer. Mas não deixo de reafirmar tudo o que escrevi no meu comentário.
Aproveito para dar um abraço aos que andarem por aqui, persistindo em trazer memórias do passado e em reflecti-las,qualquer que tenha sido a barricada em que se encontravam na luta contra a ditadura e, depois – até aos dias de hoje – num combate teimoso pelos seus ideais, na construção de um país realmente democrático (politicamente, socialmente, economicamente). Receio que para recordar de viva voz o fascismo e a Revolução comecemos já a ser poucos…
Domingo, 21.Fev.2010 at 11:02:36
Lena, minha amiga de longa data, esta tua experiência revela, para além de outras coisas, que é sempre possível o diálogo entre duas pessoas mesmo quando militam em diferentes partidos, desde que ambas tenham memória da sua amizade e dos princípios que ambas partilham. Os partidos são meros meios, não um fim em si mesmos.