Para um adepto irremediável do futebol e com dois (!) clubes no peito como eu sou, olhar a capa de um livro de um académico sobre as coisas da bola (*), natural seria que me levantasse, em simultâneo, uma tosse seguida de espirro. Mas foi só quase. A consagrada tese dos “3 Fs” que um antifascismo primário colou à relação entre a ditadura e o futebol, acompanhando-o de um fenómeno tão distinto como o fado mas tão similar como foi e é Fátima, é bem conhecida, tarde ou cedo este estereótipo salta, servindo o verniz da alergia a muita gente em bicos de pés no status cultural, e por isso merece ser estudado e verificado. Assim, foi de uma forma dócil que meti o livro de Ricardo Serrado (**), uma reprodução da sua tese de mestrado, na minha alcofa das compras. E, diga-se, sem lamentos vulgares e próprios de tempo de poupanças.
Parece-me que Ricardo Serrado (RS), na sua tese esforçada de desligar o futebol do fascismo, é mais veemente que convincente. Embora equilibre o efeito distorcido do estereótipo difundido e aceite pelo politicamente correcto na preguiça corrente com que se interpreta o fascismo português, o dos “3 Fs”, RS parte de um lugar comum académico e só triunfante porque insuficientemente contraditado: o de que o salazarismo-marcelismo não foi um fascismo (o que leva muito boa gente a adoptar o termo “Estado Novo” com que Salazar baptizou o seu regime ditatorial, e normalmente sem o pudor mínimo de lhe meter aspas). Sendo uma das comprovações deste “aligeiramento” na categorização (sugerido com resultando do amor ao rigor) a ausência (ou reduzido a esporádicas erupções), na longa ditadura portuguesa, do “fenómeno de massas” e levantando, para abono da tese, o carácter de homem solitário que habitava o Botas, o seminarista adverso às multidões. Obviamente que Salazar odiava as multidões quando não as controlava e odiava os ajuntamentos e o povo, por desconfiança atávica, quando este não se reduzia a suar a cavar batatas. E, assim sendo, um eremita bêbado de poder, Salazar não podia entender e muito menos gostar de futebol, espectáculo e paixão de multidões. Mas, ao mesmo tempo, nunca permitindo intimidades ou proximidades que o seu nojo pelo povo não permitia, Salazar sempre encenou ou mandou encenar celebrações de multidões, até para legitimar a ditadura, sobretudo nos momentos críticos para o regime. E comparecia nelas, muitas vezes. O Jamor aí está como demonstração, esse estádio que é a última grande perpetuação (continua a ser o palco exclusivo das finais da Taça de Portugal) da ligação profunda (propagandística, estética) entre o fascismo português e o futebol. Julgo também como certeira a defesa de RS de que foi mais o futebol (e os clubes) que se impôs à ditadura que o inverso. Embora, como não nega, a ditadura tenha aproveitado sempre e ao máximo todo o desvio de motivações e exaltação nacionalista que o futebol português proporcionou aos ditadores. E esse mesmo aproveitamento foi o mais significante em termos de ligação entre política e futebol de que o regime beneficiou mais que o próprio futebol (o qual, sintomaticamente, se consolidou muito mais em tempos de democracia, “fogachos” do Benfica e da selecção no Mundial de 66 à parte).
O capítulo mais interessante do livro de RS é o dedicado à final de 69 da Taça de Portugal em que os estudantes de Coimbra, em luta cerrada e valente contra o fascismo, transformou a “festa do Jamor” numa jornada política de luta (a que aderiu, maioritariamente, a massa de adeptos do Benfica ali presente). Trata-se de um capítulo bem documentado e o melhor tratado. Mas não serve, como parece ser destinado, como prova válida de que, como fenómeno, o futebol não só não foi amado pelo fascismo como enfrentou ou corroeu o regime. Foi um acto isolado, mesmo que dos mais vivos em termos de reversão dos rituais do fascismo português. Nunca aconteceu nada igual nem parecido, antes ou depois. Aliás, a invasão coimbrã do Jamor, essa grande jornada de vergonha para a ditadura, está, na memória colectiva, se esta pretender ser justa, “empatada” pela monumental ovação que Marcello Caetano recebeu em Alvalade pouco antes do 25 de Abril e já dada a tentativa do 16 de Março vinda do quartel das Caldas.
Um historiador ter-se dedicado ao estudo e história do futebol, é uma novidade e excelente notícia. Para além das repulsas, o futebol é o futebol. Se a história o desprezasse, seria a história que perderia, passando ao lado do maior e mais importante espectáculo de massas de todos os tempos.
(*) – “O Jogo de Salazar – a política e o futebol no Estado Novo”, Ricardo Serrado, Edição Casa das Letras.
(**) – Ricardo Serrado é licenciado e mestre em História (Universidade Nova de Lisboa), ainda investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH e do Centro de História da FLUL, bem como director do Centro Histórico do Futebol e Desporto.
(Publicado originalmente no blogue Água Lisa)
Terça-feira, 02.Fev.2010 at 02:02:27
Quanto ao que escreveu Ricardo Serrado no seu livro o Jogo de Salazar-A Política e o Futebol no Estado Novo, tenho a dizer e rebater o seguinte:
Não entendo como alguém pode querer historiar algo e escrever à posteridade, tentando impor a sua opinião, como se a História fosse um mero exercício sugestivo, de dedução pessoal, qual artigo de opinião. Então, como pode alguém que não deve ter vivido durante a maior parte desse período em apreço (ou apenas deve ter vivido na era da democracia e as alterações levaram a saudosismos em certas franjas), dizia, como pode querer impingir suas convicções, quando as pessoas desse tempo sabem bem o que se passou e não ocorreu nada como pretende fazer passar?! Todas as pessoas honestas sabem que durante o Salazarismo o futebol foi o que foi, que Salazar tinha seu clube, ao qual até conseguiu o que toda a gente sabe, inclusive com a mais que conhecida história da vinda do Eusébio e impedimento de saída para um clube estrangeiro do referido pantera negra… como também se conhece a história de um presidente de certo clube que, sendo ao tempo deputado nacional, teve de acatar as ordens do ditador e sua rectaguarda para se calar, apesar do seu clube ter sido espoliado diante da equipa do regime, inclusive com suspensão de seu mandato no dirigismo desportivo… entre tantos e tantos casos, sobretudo de arbitragens e normas federativas. Como é então possível haver quem se ache mais esperto e tente enganar os incautos, na vã tentativa de branquear o passado? Eu sou desse tempo… OK. ?!!!
Não vale a pena gastar mais cera… Mas não venham mais agora procurar passar esponjas sobre o que foi e é a verdade. A História tem de ser a vera narração dos acontecimentos e não um estudo de mentiras… ou meras suposições.
Depois ainda há quem se queixe que certos livros passam depressa de moda e não vendem em determinados públicos…
Respeitosamente:
Armando Pinto