É natural. Julgo que acontece o mesmo a todos. Perdemos a memória dos primeiros tempos da infância. Dessa fase, ficará um ou outro flash mas terá de ser algo muito marcante para resistir à erosão do tempo e à necessidade da nossa capacidade para memorizar expelir recordações e registos para receber outras, mais recentes. Qual a idade mais recuada em que nos recordamos de nós próprios? Exceptuando uma grande alegria ou um enorme desgosto de tempo mais infantil talvez seja a fase do início escolar e mesmo assim através de um ou outro breve episódio. O certo é que pouco me lembro dos meus primeiros anos de vida. Por isso, muitas vezes dei comigo a olhar as fotografias guardadas de quando era muito pequeno e perguntar-me: mas este sou (fui) eu? E nunca me conseguia rever na personagem retratada, ligando imagem e realidade vivida.
Entre as fotografias que guardaram de quando eu era criança, havia uma (não sei onde pára) que me despertava especial curiosidade. Teria os meus quatro anos. O ambiente do cenário era campestre, tinha uma flor na mão e usava um enorme chapéu de palha de adulto para me proteger do sol. O meu riso foi captado escancarado pelo fotógrafo e deve ter sido assim por cauda da novidade de ser retratado pois não me lembra outra qualquer fotografia minha em que estivesse tão risonho. Mirei e remirei essa fotografia vezes sem conta. Aquela foto era uma espécie de redenção da minha absoluta e persistente falta de fotogenia. Achei sempre que nela tinha ficado muito bem e que nunca tinha voltado a ser tão bonito. Melhor, ficou cá para mim a certeza de que, na altura da fotografia, foi a única vez em que a beleza foi generosa para com a minha figura tão vulgar quanto desinteressante. Mas havia mais, olhando-a, a minha atracção por aquela fotografia tinha ainda qualquer coisa de misterioso que me prendia a ela e que ia além do riso, da flor e do chapéu grande. Durante anos, volta e meia, vasculhava no álbum familiar à procura dela. Tornou-se uma obsessão. Havia algo que ou não batia certo ou então faltava ali.
Um dia, teria os meus catorze anos, percebi num instante o que me levava a perscrutar insistentemente o raio da foto. Desvendei o mistério num ápice. É que a fotografia estava excelente mas o fotógrafo tinha-me cortado os pés no enquadramento. Não entendi como é que estando eu tão bonito, o fotógrafo (o meu Tio Luís) tinha feito aquele enquadramento desajeitado e logo ele que se ufanava de ser mestre amador naquela arte. Resolvi exprimir a minha indignação e lavrei o meu protesto verbal. Mas o artista tinha as suas razões. O meu tio explicou-me que me enquadrara sem pés porque eu estava descalço por ainda não ter ganho estatuto social suficiente para calçar sapatos, sandálias ou chinelos que fosse e decidiu poupar-me a essa evidência da minha desqualificação social (só depois, arrancado aos meus pais e à minha aldeia de Trás-os-Montes, com a vinda para a cidade, onde se proibia circular-se descalço, entregue aos meus tios e pais substitutos, passei a ter direito a sapatos). Percebi a boa intenção mas achei mal que a vergonha (do fotógrafo, não a minha) tivesse impedido que a melhor de todas as minhas fotografias me mostrasse incompleto, sem direito aos meus pés.
(Texto revisto de um post publicado no blogue Água Lisa)
Terça-feira, 03.Nov.2009 at 01:11:19
Eu já li centenas de textos teus. Mas nunca me esquecerei deste.
Terça-feira, 03.Nov.2009 at 01:11:51
Que texto lindo. Apetece lê-lo e voltar a olhar para o sapato que o ilustra.
Terça-feira, 03.Nov.2009 at 01:11:08
Memorável. Em todos os sentidos.
Terça-feira, 03.Nov.2009 at 11:11:15
João Tunes,
este é daqueles que nos remetem para os joelhos esfolados a jogar à bola e as respectivas reprimendas da mãe. Para os mais sentimentais, como eu, lá tem que vir uma lágrima fugídia…
Obrigado.
Terça-feira, 03.Nov.2009 at 03:11:48
É,como diz o António Marques, só que, no meu caso, com menos bola. Todos temos um álbum de retratos numa gaveta e um outro na cabeça. Eu até tenho algumas memórias de infância. Serão verdadeiras? Já as repeti tanta vez! Serão apenas narrações? Não sei. Farão mais parte do retrato que venho fazendo de mim mesmo, retrato ainda inacabado, do que daquilo que se poderia ter passado? O eu das minhas memórias será um estranho, mas a sua criação não o é. Pela certa. E, apesar daquele eu das memórias poder ser um estranho, eu não deixo de o abraçar com o maior dos amores.
O que o João Tunes escreve parece-me ser a expressão dum “amor” semelhante. Gostei muito de ler o seu texto. E eu, que tenho a dificuldade do elogiar, contrario-me e digo-lhe: o seu, João Tunes, é um texto feliz, coisa tão rara, em que a alegria e o prazer são mais do que contagiosos. São impositivos. Obrigado.
Terça-feira, 03.Nov.2009 at 04:11:20
Obrigado pelo seu comentário cúmplice mas não seja tão jacobino, amigo Sousa. A um Marquês não se chama Marques. Assim está a desqualificar, avermelhando-o, o sangue que lhe corre nas veias.
Terça-feira, 03.Nov.2009 at 09:11:25
Não me parece que seja jacobino quem tira o chapéu (o do acento circunflexo) a um Marquês.
Terça-feira, 03.Nov.2009 at 08:11:25
Marquês apenas de nome, claro. Não haja confusões. Porque de origens e de vida sou laico e republicano. O sangue, que lhe vi a cor nos joelhos esfolados, é mesmo vermelhão.
Terça-feira, 03.Nov.2009 at 08:11:00
Que belo texto! Vivido e sentido. Aliás como têm sido as suas revivências da infância nos seus “posts”.
Aproveito para fazer aqui um comentário ao seu comentário no “entre as brumas…”. Eu durante a infância e primeitra parte da adolescência vivi em Santa Maria, nos Açores. Eu fui mais afortunado, pois nadava calçado. Mas o que quero referir é que os trabalhadores locais, que trabalhavam no campo ou como auxiliares nas várias tarefas do aeroporto (mas não como funcionários da Aeronáutica Civil) andavam sempre descalços. Mesmo os trabalhos de lavoura era descalços que os faziam. Não por gosto, evidentemente… E vi-os várias vezes a almoçar. O que comiam, em dias melhores, era pão com carapau frito (um, no máximo dois carapauzinhos), ou com um niquinho de queijo. Mas vi-os muitas vezes a comer apenas pão com malagueta para enganar a fome. Depois os que conseguiram emigraram para a “Amerca”, que era a designação geral para os Estados Unidos e para o Canadá. Isso só depois dos americanos por ali terem passado, que o Governo de Salazar nem tinha dado pela existência de tal polpulação…
Terça-feira, 03.Nov.2009 at 09:11:55
João:
Fico sempre maravilhada ao ler os teus textos e já o disse aqui. Desta vez, além de teres um fantástico desenho, escolheste um título em que deixas a nota de humor com que, muitas vezes, arrefeces o dramatismo de algumas das tuas memórias.
Um abraço
Segunda-feira, 09.Nov.2009 at 08:11:30
Belíssimo! É também assim que se vão
ao tecendo as memórias colectivas.