Com atraso, verifiquei só agora que em Julho passado fez dez anos que faleceu o António Graça, funcionário clandestino do PCP durante muitos anos, torturado e preso durante seis anos pela PIDE, dirigente daquele partido e depois impulsionador de uma das mais importantes dissidências no PCP no final da década de 80.
Sobre António Graça, transcrevem-se duas evocações. A primeira é da autoria de Raimundo Narciso:
«O António Graça era um dos quatro ou cinco membros do Comité Central que em 1987 e 1988 desenvolveu, naquele órgão do PCP, uma assinalável actividade crítica à linha política da direcção de Cunhal. Demitiu-se em 1991. Foi desde muito novo um destemido lutador contra a ditadura fascista e militante do PCP. Desenvolveu nos anos cinquenta e sessenta, como quadro clandestino do PCP, importante actividade política que o levou à prisão durante seis anos a partir de 1964. Submetido a torturas pela PIDE para denunciar companheiros, resistiu a tudo. Por isso, no PCP, pertencia à galeria dos heróis, até ao momento em que contestou as orientações e as práticas da direcção do partido. Foi um dos iniciadores do INES e da Plataforma de Esquerda. Não aderiu ao PS nem foi para a Política XXI. Defendia que os ex-comunistas deviam, com outros, criar um partido próprio. António Graça, foi membro do CC do PCP de 1979 a 1988, participou nos trabalhos da Comissão de Extinção da PIDE/DGS em 1974 e 75. Nos anos seguintes, foi responsável pelos serviços de informação do PCP. Era um quadro político com grande experiência, argúcia e uma prodigiosa memória. Faleceu com 60 anos, em 1 de Julho 1999. Era muito respeitado e estimado pelos seus companheiros políticos. Era meu amigo. Era teu amigo.»
(depoimento incluído numa entrevista que Raimundo Narciso concedeu em Abril de 2004 ao blogue «Água Lisa».
A segunda evocação é da minha autoria e foi publicada em Outubro de 2003 no blogue de José Pacheco Pereira – «Estudos sobre o Comunismo»:
«Estatura baixa, aspecto frágil, cabelos muito encaracolados e completamente brancos, lentes muito grossas por trás dos óculos que dominavam o rosto. Carregou, no corpo e na alma, os traços de muitos anos de clandestinidade, porrada brava dada pela Pide em inumeráveis sessões de tortura sem o conseguirem rachar e muito tempo de cativeiro em Caxias e em Peniche. A dureza da vida de clandestino e de preso político não lhe tiraram a curiosidade pela vida, a frescura e a ânsia dos afectos. Amou as mulheres que foi tendo e as filhas que foi fazendo. Adorava ter amigos à sua volta, com comes e bebes para alimentarem a fraternidade e as rodas intermináveis de cavaqueiras e de procuras incessante dos caminhos que evitassem os becos sem saída. No meio de tudo e de tanto que o que o António era, até nos esquecíamos que ela era um Dirigente. Porque o António Graça era membro do Comité Central.
A vizinhança e a empatia permitiram o convívio a miúdo e o melhor conhecimento, cruzando famílias, amigos e cumplicidades. Muitas foram as noites desfiadas até perto da alvorada a ouvir o António. Com uma memória prodigiosa e uma experiência riquíssima, ouvi-lo era como que ouvir uma parte importante da história da resistência à ditadura. Desfiava factos e pessoas mas só referia aspectos precisos, tudo aquilo que tivesse sido confirmado, provado e fosse inquestionável. Para mais, o António parecia que conhecia toda a gente. Em grande parte, aqueles ficheiros imensos e armazenados tinham a ver com a sua tarefa de responsável pelos serviços de informação do PCP.
Foi clandestino antes do 25 de Abril, depois, pela natureza da sua missão partidária, o António foi uma espécie de “semi-clandestino”. Reconduzido como membro do Comité Central após vários congressos, para o retirar da ribalta pública e não se assumir que o Partido tinha um serviço de informações, o António nunca era eleito durante os congressos, era sempre cooptado segundo uma quota criada internamente para o efeito. Estratagema criado para ele e para outros (aqueles que controlavam os militares, dirigentes da CGTP e alguns outros). Foi através do caso dele que soube que nem os militantes nem o povo conheciam a composição total do Comité Central. Os cooptados, durante as reuniões oficiais, eram mantidos à parte noutra sala durante o tempo em que os jornalistas entravam no consistório para olharem os dirigentes e lhes tirarem as fotografias da praxe. E os membros cooptados nunca eram referidos publicamente como dirigentes do Partido. Fazia parte das regras conspiratórias cumpridas mesmo em democracia.
Durante a clandestinidade, tinha sido responsável pela margem sul. Quantas vezes, o António não me apontava para este ou aquele prédio surgido na febre do betão e me dizia: olha, aqui havia um pinheiro onde eu costumava pregar um aviso para a confirmação da realização de um encontro clandestino. A seguir a 1962, teve problemas pois advogou a passagem a formas superiores de luta contra o fascismo (luta armada) e foi integrado no rol dos que se tiveram de se autocriticar por desvio de esquerda. E foi, por um triz, que a Pide não o apanhou numa casa cheia, até ao teto, com rolos de dinamite.
Tornou-se crítico da direcção e sobretudo do despotismo magestático e estalinista de Cunhal. Foi a alma inspiradora da “Terceira Via” que agregou muita gente, o máximo de gente que uma dissidência no PCP jamais aglutinou. Teve os seus passos e a sua casa vigiados por fiéis da direcção. Outros vigilantes tinham sucedido aos pides para vigiarem os movimentos e as relações do António. Acompanhei-o nesse projecto. Criticou-me quando abandonei as hostes partidárias por não estar para aturar insultos e suspeições sempre que defendia a liberdade de se apresentarem teses alternativas ao Congresso ou o voto secreto contra o sagrado voto de mão levantada, sobretudo não aguentei mais a companhia de dirigentes que me convocavam à Sede para inquéritos policiais sobre as minhas relações e informações. Ele achava que o património do PCP não podia ficar entregue aos estalinistas, eu entendia que aquele estalinismo era congénito. Mas, embora mais tarde que eu, também acabou por lhe chegar a hora de dizer basta e bater com a porta.
Não quis acompanhar a caminhada da maior parte dos “terceiras vias” que foram até ao PS. Idem quanto aos grupos que levaram até ao Bloco de Esquerda. Nisso, mantivemo-nos sempre no mesmo barco. Fora do PCP, recusando apoios de novos mandarins no PS, aos 55 anos de idade, o António meteu-se no mercado de trabalho para sobreviver. Passei a vê-lo menos vezes. Trabalhava que nem desalmado numa agência de composição gráfica para ganhar a bucha. As vezes que o via, perguntava-lhe quando passava a escrito o muito que aquela memória tinha armazenado. Ria-se e dizia que não tinha tempo.
Um lamentável equívoco não me permitiu acompanhar o António à sua última morada. Uma notícia de jornal dizia que o corpo sairia de Benfica e afinal o funeral partiu de Belém. Resta-me a memória do António Graça e a saudade de o ouvir e de lhe dar um abraço.»
Terça-feira, 27.Out.2009 at 10:10:30
João Tunes,
aproveito para dois agradecimentos de uma vez só. Por esta e pela outra relembrança dos 40 anos das “eleições” de 69.
Apesar de estas “pieguices” serem mal vistas ou incompreendidas por muitos dos portugueses que, felizmente, não passaram por estas situações, é indispensável, até como catarse para aqueles que as viveram, deitar cá para fora estas memórias que a vida nos pôs ao caminho. A todos vocês que deitaram mãos a esta obra, muito obrigado.
Terça-feira, 27.Out.2009 at 12:10:26
Ainda bem que publicaste este «post», João. Embora me considere relativamente bem informada sobre estes passados, verifico todos os dias que o sou muito menos do que devia: nunca tinha ouvido falar de António Graça, até o referires há uns dias em conversa com o Raimundo!
Terça-feira, 27.Out.2009 at 08:10:24
É bom, salutar, recordar certas memórias quase esquecidas, João.E somos nós, os mais velhos a dever lembrar às novas gerações o que e como se viveu, antes de 1974.
ABRAÇO DE LUSIBERO( MªELISA)
Quarta-feira, 28.Out.2009 at 12:10:40
Um beijo à minha amiga Judite que era, então, a sua companheira.
Graça
Segunda-feira, 02.Nov.2009 at 01:11:41
Aos que não conheceram o António Graça: se o tivessem conhecido não suspeitariam que o Graça tinha dentro de si tanta História e tantas estórias de corajosas lutas e vivencias, que foram submersas pela sua imensa modéstia, como se a sua coragem tivesse de sêr assim apenas porque sim. Obreiro destacado dessa imensa luta pela liberdade e contra o fascismo, é com emoção que o recordamos aqui através destes depoimentos de companheiros de caminhada. Lamentávelmente outros camaradas insistem em esquecê-lo: fazem mal porque a injustiça só desqualifica quem a pratica.
Segunda-feira, 02.Nov.2009 at 08:11:56
Se és quem eu penso, com um conhecimento e estima à beira do 40º aniversário, e não um homónimo, então bem que nos poderias ajudar a retratar mais completamente a figura do António Graça. Eu só o conheci em meados da década de 80 quando me tornei seu vizinho. Conheço mal (ele não era muito inclinado a falar de si) o seu passado de revolucionário clandestino (sei de algumas coisas mas muito aquém da sua real dimensão de funcionário clandestino, torturado e preso) começado desde muito jovem bem como da sua actividade destacada na Comissão de Extinção da PIDE/DGS e depois nos serviços de informação do PCP. E como ele ficou mais conhecido pela sua dissidência da “terceira via” (fase que acompanhei de perto e para a qual ele me “recrutou”), as suas fases anteriores ao serviço do PCP ficaram obscurecidas até, sobretudo, pelo ostracismo com que as “folhas secas” são tratadas naquele partido. Sei no entanto que, além do seu comportamento sofrido e exemplar quando preso e torturado, ele prestou serviços importantes e qualificados no combate ao fascismo e na afirmação do PCP. Não duvido que tu, se não estou a confundir, o tenhas conhecido muito melhor que eu e disso possas dar testemunho. Este blogue pretende ser, e é, uma tentativa de impedir que a amnésia domine sobre a memória. O ostracismo lançado por um partido sobre os seus membros destacados e dedicados porque divergiram é uma canalhice pior que a amnésia provocada pela ignorância, pois é uma demonstração velhaca de poder sobre os passados de pessoas que deram o melhor das suas vidas a esse partido e suas causas. No melhor dos casos, seguem Iejov como mestre de inspiração leninista. Fica o apelo (podes mandar por mail para publicação).