Numa vila de forte concentração fabril assente em três pólos (CUF, oficinas ferroviárias, corticeiros) onde as colectividades proliferavam como cogumelos, agregando afinidades e gerando rivalidades, era nesses locais que se concentrava o grosso do convívio e a partilha das paixões menores, onde a distensão pós-laboral encontrava o seu espaço de catarse. O primeiro passo para a inserção era escolher e escolher pressupunha optar entre grandes ou médios amores e pequenos ódios, depois havia que fazer o itinerário da iniciação, a que se sucedia a fusão cultural com os rituais e os símbolos até se atingir o estágio identitário. O operariado dominante, em termos demográficos e sinaléticos sócio-políticos, transpunha para a colmeia associativa do Barreiro reproduções possíveis, aquelas que eram passíveis de romperem a malha da vigilância repressiva, das suas organizações produtivas, incluindo as respectivas hierarquias (os empregados e a aristocracia operária dominavam os órgãos dirigentes), formas culturais próprias, os seus mitos e as aproximações às camadas urbanas estabelecidas fora dos muros das fábricas. Nesta rede social de convívios compensadores de realidades laborais, com códigos sucedâneos vincados, as maiores dificuldades de escolha e inserção estavam, naturalmente, reservadas aos jovens, particularmente aos que estudavam e que tinham adquirido afinidades que extravasavam a fixação paranóica na urbe onde as fábricas eram pólos de dominação e opressão, em que uma «cultura fabril» prolongava a sua centralidade económica. De tal forma o conseguia, misturando tradição, reconhecimento, consciência e insubmissão, traços muito próprios e genuínos nos barreirenses, que os grandes mitos humanos circulantes, enquanto referências exaltadas, caminhando a par e em espantosa conciliação, eram Cunhal (o herói-mártir da resistência) e Alfredo da Silva (o super-patrão da CUF e adepto da gestão paternalista-assistencialista). O que representava um milagre cultural e político pela completa ausência de antinomia com que a maioria dos barreirenses fazia a gestão harmoniosa destes dois símbolos afectivos, tão opostos na luta de classes, mas tão próximos no afecto da admiração dos gratos.
No início da década de sessenta, o Café Tico-Tico, colocado bem no centro do Barreiro, na avenida mais nobre, junto ao mercado e ao jardim do núcleo urbano (o Parque), assume uma dimensão convivial excêntrica relativamente às colectividades, operando uma espécie de importação dos espaços gregários e lúdicos homólogos que vincavam Lisboa, ali tão perto e tão longe. Rapidamente, o Café Tico-Tico transformou-se no pólo de encontro da pequena e média intelectualidade do Barreiro. Com um piso térreo onde abancavam os clientes mais maduros e onde pontificava o Mestre Cabanas, um idoso combatente antifascista, artista autodidacta em gravura sobre madeira, e que ali montara a sua banca de realização estética. O piso mais alto, em forma de varandim, com vista para o movimento em baixo, era o poiso preferido de estudantes que liam ou descansavam os livros e cadernos de estudo, galhofavam e ensaiavam namoros, enquanto os mais dados às aventuras intelectuais, cruzavam apreciações definitivas sobre os últimos livros publicados ou jogavam xadrez.
Coube-me em sorte de idade e condição ter pertencido à «primeira geração» dos frequentadores do Tico-Tico e no seu habitat juvenil do piso-galeria. Ali conheci e discuti Sartre, Camus e Vaillant, sobretudo estes. Ali recebi os ecos da revolta estudantil que estalara do outro lado do rio. Ali me prestei a considerar que, para mim, o Barreiro começava e acabava no Tico-Tico. O resto, fábricas, colectividades, começaram a ficar-me longe.
Um dia, o meu amigo Jorge chama-me à parte, «Tenho uma coisa importante para te dizer». E olha à volta como a querer conferir as caras de todos os clientes do Tico-Tico. Vamos para uma mesa isolada, o Jorge passa-me para a mão um jornal O Século dobrado. Diz-me baixo: «não é para abrires nem leres aqui, quando estiveres sozinho e à vontade, então lê, não é para devolveres, passa a outro, depois falamos». Meti o embrulho no bolso, chegado a casa enfiei-me na casa de banho, tranquei bem a porta e abri-o. Dentro do Século amarrotado havia uma colecção de pequenos e leves jornais, todos feitos em finíssimo papel bíblia: o Avante, O Corticeiro, O Têxtil e O Camponês. Parecia que os meus dezassete anos tinham apanhado uma descarga eléctrica. Devorei os textos e pareceu-me entrar noutro mundo. Havia outro mundo para além do que era visto e representado no Tico-Tico. Greves, lutas, prisões, fascismo, Pide, Partido, capitalismo, comunismo, União Soviética, proletariado, burguesia, foices e martelos. Não tinha nada a ver com as discussões eternas à volta da «Náusea» do Sartre. Aquilo vinha a ecoar desde os lados sujos da vila vestidos de fato-macaco para me cair em cima da cabeça e com toda a força. Depois de passar o atordoamento, veio o medo sobre o que ia fazer àquela papelada. E uma enorme inveja do Jorge que, com a mesma idade que eu, já era um distribuidor de papéis clandestinos. Deu-me vontade de não ser menos que ele. Na saída nocturna, tremendo com medo que alguém entrasse de rompante pela porta da rua, meti toda a papelada clandestina, mais o Século amarrotado de embrulho, na caixa de correio do vizinho de baixo. Eu também distribuía o Avante. E o Tico-Tico não era nem fortaleza nem redoma. Quando menos se esperava, o Barreiro entrava-lhe portas dentro.
[Texto revisto de um post publicado no blogue Agua Lisa]
Biografia de João Tunes
Terça-feira, 07.Jul.2009 at 10:07:57
Eu gosto do Barreiro uma terra onde leccionei durante um ano e onde aprendi muito.
Quarta-feira, 08.Jul.2009 at 11:07:42
João Tunes, se não fossem “as discussões eternas à volta da «Náusea» do Sartre”, e o Camus e o Vailland, terias reagido da mesma forma aos papéis que te deu o Jorge? Por mim, devo muitíssimo a esses três. Relembro muitas vezes o Vailland de “Cabra-Cega”, “Um homem do povo na revolução” e, nos “Écrits Intimes”, aquele espantoso e comovente “je suis ce soir triste à mourir”, após o XX Congresso do PCUS. Já agora, acrescento outro escritor que alguns não liam pelo seu passado de admiração por Mussolini, o Curzio Malaparte de “Kaputt” e “A pele”. E o Malraux de “A condição humana”. E o Semprun. E, e, e… Nenhum deles menos importante para a minha formação do que o convívio com as lutas, as greves, as prisões ou os panfletos por cuja distribuição se arriscava a liberdade. Por alguma razão as ditaduras impõem a Censura, não só dos jornais, mas do Teatro, dos livros e dos filmes…
Quarta-feira, 08.Jul.2009 at 01:07:15
Diana Andringa, mas eu não reneguei nem apouquei os meus primeiros “santos literários” (de Sartre saturei-me um pouco mais tarde, a Camus mantenho-me muito ligado, a Vaillant ainda hoje o releio com todo o prazer e até alguma nostalgia). E outros vieram, alguns dos referidos por si. Mas com muitos acrescentos, em que brilha, no meio das estrelas, o José Cardoso Pires. O que eu disse – se calhar, e mais uma vez, exprimindo-me muito mal -, mas disse, é que, sendo um adolescente (fora do meio operário) a viver numa então vila fortemente politizada (a politização, até para os vindos de fora, dava-se logo à saída do barco perante o aparato ostensivo da GNR nos rituais da ocupação militar; incluindo os que iam ao Barreiro aos magotes só em dia de bola acompanhar as suas equipas que iam jogar com o Barreirense ou a CUF, pois os gnrs de Mauser a tiracolo de dez em metros virados para a multidão nas bancadas durante o jogo eram um sinal de que estavam num “local perigoso para o regime”), o momento da “passagem” (mas sendo uma viagem com regresso) da tertúlia literária do “Tico-Tico” para a descoberta da literatura clandestina foi um choque e um fascínio. E, em muita medida, uma ponte entre o casco urbano da vida (onde imperava uma quietude tipicamente pequeno-burguesa, em que a transgressão era conviver, ler e tertuliar à volta dos autores de “moda”, então em nítida influência francesa) e a realidade operária fortemente oprimida mas resistente. Ou seja, uma ponte entre pensamento e acção, não assimetria entre verso e reverso (como, pelos vistos, e canhestramente como é meu costume, terei dado a entender). Aliás, este momento de contacto-choque acontecido na minha adolescência veio decifrar os sinais que havia recebido na minha infância barreirense (de que aqui partilhei alguns episódios) perante os absurdos e paradoxos com que o salazarismo havia pintado a paisagem humana e social do Barreiro sob ocupação permanente do fascismo belicista. Que me lembre, a maioria desses adolescentes literatos da “primeira vaga” do “Tico-Tico” terá, cada um à sua maneira e no seu grau, feito idêntico percurso em que, sem perder o gosto literário e artístico, se juntou ao activismo antifascista. E aquele “café novo” plantado no coração da vila desempenhou um importante papel de aglutinação para os jovens (além do seu espaço térreo ocupado pelos barreirenses mais maduros, donde lembro bem a presença da Isabel do Carmo e do primeiro marido também de Medicina), o que se percebe se se tiver em conta que coincide com um boom de jovens a estudarem nos ensinos médio e superior em Lisboa (o Barreiro, apesar de já muito populoso, não tinha liceu (apenas um pequeno colégio particular com ensino liceal, mas esse só era acessível aos filhos dos mais “ricos”, também uma pequena minoria ia ao liceu para Setúbal ou Lisboa). Esse aumento súbito de estudantes (fora ou além da gigantesca escola industrial destinada a prover a CUF de operários especializados), com a politização do movimento estudantil em Lisboa, criou uma nova camada que buliu na vila e irradiou em novas formas de associativismo e activismo cultural (na Associação Académica do Barreiro, no Cine-Clube, no Teatro 22 de Novembro, em espaços culturais criados nas velhas colectividades) e que representaram um rejuvenescimento e alargamento da velha rede da colmeia associativa que, no Barreiro, sempre foi muito numerosa (só clubes de chinquilho, eram mais de uma dúzia), mas muito presa a infra-rivalidades e micro-símbolos de cariz conservador (os muitos bailes “vigiados pela família”, eram praticamente as únicas formas de contacto para os e as jovens “apresentáveis” e em que se tinha de se ter boa figura para não se “levar tampa”), colmeia essa que, muito ligada aos rituais lúdicos da população fabril, controlada pelo aparelho repressivo com especial atenção, não respondia aos anseios e costumes de uma nova população estudantil arejada e politizada pelas lutas estudantis em Lisboa com formas mais irreverentes de “se ser jovem”. Aí, o “Tico-Tico” representou um papel importante de encontro, gregarização, desenvolvimento do gosto cultural, entre esses estudantes naturais ou vivendo no Barreiro e estudando, de mistura com empregados de escritório e bancários, na Lisboa dos anos sessenta. E na junção dessas duplas condições de activista e literato, de barreirense e lisboeta, da realidade operária e da realidade estudantil, aquele Café teve um papel que tentei sublinhar e homenagear. Foi lá que descobri a literatura “da moda e do inconformismo, interrogativa” e o mundo clandestino do activismo político de raiz operária. Comigo, muitos outros, alguns dos quais com muito maior coragem, generosidade, talento e capacidade de síntese e acção. Eu nem aprender a escrever consegui pois que, por muito que o faça e nisso me esforce, não consigo pôr uma ideia clara no papel e arrisco-me, permanentemente, a que leiam o que não escrevi.
Quarta-feira, 08.Jul.2009 at 03:07:27
Deixa-te disso. Pões ideias claríssimas no papel. Nem eu disse que tinhas renegado ou apoucado os “santos literários”. Pretendi foi sublinhar a importância que eles tiveram na nossa (ou, pelo menos, na minha) maneira de ver o Mundo e de lhe reagir. Talvez por ter sido muitas vezes acusada de ser muito “literata” – mesmo no “meu” Tico-Tico, que foi o Nova-Iorque, na Av. dos Estados Unidos.
Quarta-feira, 08.Jul.2009 at 12:07:52
Deixa-me que te conte uma história da Outra Banda. De um operário, militante do PCP, preso, torturado, que fui visitar pouco depois de ele ter saído de Caxias, perturbado ainda pelas torturas que sofrera. Lembro-me de me ter contado que, levado ao cinema como forma de distracção, não suportou o ambiente fechado, escuro, as imagens ameaçadoras. Falou-me do que a PIDE o fizera passar e, juntos, imaginámos um futuro em que os pides seriam julgados pelas torturas inflingidas. Julgados, mas não torturados, esclareceu logo, “que nós não somos como eles”. Disse-o com a maior convicção. Essa era, afinal, a nossa superioridade. E depois, hesitando um pouco, acrescentou, como se falasse consigo mesmo: “Torturá-los, torturá-los, não. Mas se lhes caísse um toro de madeira em cima daquelas mãos, não tinha pena nenhuma!” Poder-se-lhe-ia levar mal?
Quarta-feira, 08.Jul.2009 at 03:07:27
Boa história da “Minha Banda” (só era e é “Outra” para os nortistas, incluindo os alfacinhas). Que, aqui, deu na impunidade absurda que se viu.