Havia (e haverá, pois julgo que ainda estará vivo,) no Barreiro, uma pessoa chamada Estaline de Jesus (julgo que Estaline por parte do pai e Jesus por parte da mãe) o que era uma prova viva que as religiões sempre se encontram. Nunca o conheci pessoalmente apesar de ele ser, pelo impacto do nome, uma referência da terra, mas será de uma geração mais nova que a minha, o que explica que dele só fale por eco. Não tenho, assim, testemunho a dar sobre este famoso barreirense.
Mas tenho um sucedâneo que, sobre esse, posso prestar testemunho directo e vivo na memória. Continuando no mesmo Barreiro que gerou o Estaline de Jesus, nos anos 50 do século ido, tive um colega de escola e turma, que se chamava, por nome próprio, Lenine (este sem santidade cristã acopolada). E ainda hoje re-oiço os ecos dos gritos das nossas futeboladas de recreio em que nós, os outros putos (reles mencheviques por falta de brasão revolucionário no apelido), desesperados pelo egoísmo de posse de bola do craque que era bolchevique por vontade parental, lhe gritávamos a pulmões cheios: “foda-se, passa a bola, ó Lenine!”, o que, em tresleitura, até parece um slogan de dissidentes. O que é uma falsa aparência pois aquele Lenine era catita, questão de fome de posse de bola à parte, e sobre bolchevismo, a malta, naquela idade, sabia menos que nada. Mas este Lenine, enquanto Lenine no nominativo, não durou muito (o titular do nome, esse, deve ser um reformado sobrevivo e cheio de genica, pelo menos são estes os meus votos). É que, como se compreende para a época, o nome deste meu estimado colega de meninice não era bem visto pelas autoridades, tanto mais que, no Barreiro da época, reinava uma repressão de chumbo, estando sob ocupação militar da GNR que acolitava os olhos e as matracas da PIDE.
Entre os vigilantes mores da situação estabelecida e dos bons costumes, contava-se, como quase sempre esteve no fascismo, a Santa Madre Igreja. E o padreca, nosso professor de Religião e Moral, tirou a peito aliviar o bom do Lenine daquele nome ímpio que lhe constava no Registo. E conseguiu-o, após pressões e chantagens várias, exercidas sobre a família. Não me recordo qual o nome substituto pelo qual, numa qualquer operação manhosa de crisma, o Lenine passou a chamar-se à luz da Igreja e do Registo. Mas o que garanto é que, para nós, os inconscientes mencheviques seus camaradas em escola e recreio, ele continuou a ser “o Lenine“, sobretudo quando das nossas futeboladas acesas. Falando só por mim, mas não duvidando que não terei sido caso único, cresceu, deste modo, uma imensa curiosidade em saber quem era esse tal Lenine, não aquele puto egoísta de posse de bola mas o inspirador baptismal, que tinha um nome proibido de se chamar. Este é um dos paradoxos da minha educação política e ideológica, obtida no santo mistério da contradição, que ainda hoje não renego como dívida eterna à Santa Madre Igreja dirigida por Cerejeira.
Biografia de João Tunes
Quarta-feira, 24.Jun.2009 at 12:06:20
curioso, por causa do “passa a bola”, o primeiro Lenine de que ouvi falar jogava futebol no Caldas, nos anos cinquenta, quando este andou pela primeira divisão…
Quarta-feira, 24.Jun.2009 at 11:06:53
Confirma-se então que, antes, Lenine chegava até nós a dar toques na bola. Numa espécie peculiar entre a “doença infantil” e o “estádio supremo”…
Quarta-feira, 24.Jun.2009 at 10:06:03
Ao excelente post de João Tunes, apenas algumas informações adicionais: o “Staline de Jesus Rodrigues”, consoante a grafia que consta na ficha da PIDE, é natural da Moita, embora seja de facto conhecido no Barreiro, preso a 3 de Maio de 70, com mais 7 democratas do distrito de Setúbal, entre os quais constava o candidato da Oposição Democrática, Álvaro Monteiro.
Lenines no Barreiro, segundo o meu conhecimento, são 2: de um não me recordo o apelido, o outro é Sobreiro, Lenine Sobreiro, também ele antigo preso político, militante (ainda hoje) do PCP, que teve de passar à clandestinidade.
O Barreiro, tem uma história imensa, até nos nomes: e os 2 Rodas Nepervil, um da CP, outro da CUF, cujo nome, ao contrário se lê Livre-Pensador? De sublinhar, e isso é que é curioso, é que são nomes de registo, e não alcunhas ou pseudónimos conquistados à posteriori.
Quarta-feira, 24.Jun.2009 at 11:06:11
Obrigado, Vanessa de Almeida, pelos seus esclarecimentos. Como entenderá, o meu texto não teve pretensões historicistas mas apenas recolocar, partilhando, memórias de infância. Tendo em conta o que diz, tivemos então, pelo menos, 3 Lenines no Barreiro: os 2 que referiu mais um outro, meu camarada de infância, que acabou por ter de mudar de nome, como contei (e só desse falei) e não fora o episódio da alergia e perseguição ao nome ele não ficaria como vinco na minha memória (muito miúdo, não fazia ideia da associação problemática com o revolucionário russo). Mas, já agora e sobre estes episódios, o que julgo que merece realce é, na situação do Barreiro do salazarismo, haverem funcionários do Registo que aceitavam esses nomes.
Cumprimento-a e renovo o agradecimento pela sua entrada aqui com achegas bem interessantes. Entretanto, e a talhe de foice, digo-lhe que estou a ler com muito interesse o seu livro sobre Alfredo da Silva. Quando terminar a leitura, talvez tenhamos oportunidade de voltarmos a conversar, dando uma volta ao mundo, indo de Lenine para Alfredo da Silva.