A esta distância, pelas minhas contas, creio que corria o ano lectivo de 1957/58. Contas de um longo rosário (ver a nota informativa que junto a este testemunho).
O dia 16 de Janeiro de 58 iria ser um dia especial: aos meus olhos de jovem, acabadinha de sair de um liceu da Capital poucos meses antes, eram milhares os estudantes universitários que se encontravam na Assembleia Nacional, prontos a pressionarem o simulacro de debate que aí teria lugar. Estava em causa um decreto-lei que visava liquidar o movimento associativo estudantil, em crescente expansão nos anos lectivos anteriores. Na verdade, com o Dec-Lei 40900 o Governo propunha-se restringir a autonomia das Associações e Pró-Associações de Estudantes do Ensino Superior, limitando-lhes de tal modo as funções que, na prática, as encerrava através de legislação.
De uma coisa tenho a certeza: alguns estudantes nem conseguiram entrar e a maior parte ficou pelos corredores, enchendo-os, sem sequer aceder às galerias. Não havia lugares para tantos. Mas eu entrei e lembro-me, lembro-me desse dia muito bem – já vão ver porquê.
Em baixo, os deputados, vestidos de negro, pareciam-me semi-adormecidos, recostando-se nas cadeiras como se procurassem uma posição confortável para a sesta. Não seria exactamente assim, mas tantos anos depois ainda retenho a imagem de uma massa negra sonolenta, emitindo um estranho rumor, produto confuso de múltiplas exclamações de «Apoiado!» com algo que então se me afigurou ser o ressonar de uns quantos, já completamente caquécticos. Isto enquanto uma meia dúzia de oradores com maiores convicções, ou mais ambição política, discursaram, a tentar ser escutados por um mumificado presidente da Assembleia.
Duraram pouco esses momentos em que, cheios de bom humor, gracejávamos, observando tudo atentamente, registando inconscientemente para a História a nossa visão da Assembleia Nacional fascista em funções. Era facto que tínhamos ido ali com um objectivo preciso – acompanhar os dirigentes num gesto inequívoco de contestação – e só nos mantivemos em silêncio enquanto aguardámos a entrada do Dec-Lei na ordem do dia. Depois, aconteceu uma espontânea pateada geral, com a consequente expulsão de todos nós das galerias e do edifício. Em boa verdade, a minha história começa aí.
Nas escadarias da Assembleia começou a desenhar-se uma manifestação que, claro, foi prontamente reprimida pelas «forças da ordem». A polícia chegara às centenas antes do início da sessão, já tinha começado a bater nos que não chegaram a entrar no edifício e aguardava sofregamente a nossa saída. Eram dezenas e dezenas, de cassetete em punho, numa corrida louca, carregando forte e feio sobre todos os que conseguiam apanhar. Alguns de nós tentaram escapar-se, subindo as Escadinhas da Travessa da Arrochela, em frente do Palácio de São Bento, e muitos foram brutalmente espancados nesse lugar. Lugar de memória, esse.
Eu encontrava-me com a Elsa Anahory no grupo que fugira por aí. De repente, quando me apercebi de que ficara sozinha, quase encurralada entre uma porta e uns três agentes que se preparavam para me cair em cima, ouvi um colega gritar-me «Foge, foge!», ao mesmo tempo que me dava a mão e me puxava pelas escadas acima. Assim que nos achámos livres de perigo, parámos os dois. Ainda ofegante, olhei de frente para o meu salvador, o meu anjo da guarda. Era ele, quero dizer Ele: o meu príncipe, o Secretário-Geral da RIA (Reunião Inter-Associações), o meu ídolo. Meio Deus, aluno de Letras, um infindo charme, jornalista da República, quanta inteligência… – tudo aquilo com que, ultimamente, o meu romantismo adolescente se entretinha a sonhar. Não queria acreditar: estava, finalmente, diante, e próxima, literalmente colada à principal motivação para a minha desmesurada militância associativa. Eu não falhava assembleia-geral ou reunião plenária, eu frequentava todas as reuniões em que me davam entrada, eu estava em todas, eu aguentava horas de pé, eu vivia para isso, desde o dia em que – vinda das perseguições moralistas e fascizantes do Liceu Dona Filipa de Lencastre – desembarcara na Faculdade Ciências e topara com ele à porta da Associação. Depois, aconteceu a publicação do «40900», em Dezembro, e surgiram as múltiplas movimentações de protesto. Conhecia-o apenas daí, de o ver de longe, que a frequência era muita e espaços como o ginásio do IST ou salas de convívio das associações de estudantes enchiam rapidamente. O Alfredo Noales.
Caído, assim dos Céus, o objecto da minha paixão, havia que receber o sucedido como uma coincidência que me era superiormente endereçada, agradecer a graça concedida aos deuses do amor, ao Movimento associativo e à polícia fascista, e passar imediatamente à acção. Foi o que fiz: «Não queres ir até à Cister tomar uma bica, para acalmarmos?» – disse eu, orando para que o feitiço se mantivesse e ele não me desse uma «tampa». A resposta veio pronta: «Tu és da Faculdade de Ciências, não és?» Aquele «Não és?» vinha assegurar-me que já andava de olho em mim, e dava àquela interrogação um sentido inequívoco de declaração de amor. Contida, mas óbvia. (Achava, na minha santa inocência…). Foi por isso que, no caminho a pé até à Escola Politécnica, pelas ruas que nos conduziram ao Príncipe Real, o meu coração batia tolamente, baralhando o esforço da subida com a emoção. Ia em ascensão aos Céus.
Já no Café, uma vez tomada a «bica», receando que ele se despedisse e me deixasse em estado emocional de perda, antecipei-me e dei por terminado o encontro acidental ou, melhor dito, o meu dia de glória. Em êxtase, orgulhosa da jornada de combate na Assembleia Nacional, com a certeza de que se avizinhava um futuro promissor para as Associações de Estudantes e, sobretudo, confiante na minha intuição, sussurrei-lhe, no espaço ruidoso e desconfortável da Cister, a frase com que desafiei o nosso destino: «Bom, tenho que ir, mas amanhã, quando saísses do jornal, podias passar por aqui…»
«Aqui» era a Cister, a pastelaria em frente à Faculdade: um hábito, um quase vício, um lugar inevitável, nesses nossos anos de contínua descoberta, quer do mundo concreto da Ciência – no dia-a-dia das aulas – quer da magia das artes e do cinema – nos fins de tarde associativos. A Cister era, principalmente, um ponto de encontro dos caminhos subterrâneos nas lutas pela Liberdade. Hoje, é pertença de uma memória colectiva.
(Quanto a nós, casámos três anos depois.)
Adaptação de um texto publicado in Saudação, Flausinas, Moedas e Simones, Campo das Letras, 2006
NOTA: Em 12 de Dezembro de 1956, o governo de Salazar publicou um decreto-lei que visava controlar a actividade das Associações de Estudantes, alterando-lhes o funcionamento e esvaziando-as de grande parte das suas funções. A resposta das Associações foi imediata e a luta desencadeada contra o decreto-lei obrigou a Assembleia Nacional a fazê-lo baixar à Câmara Corporativa. A pressão estudantil tinha levado 17 deputados a requerer a discussão do decreto-lei.
Na manhã de 16 de Janeiro de 1957 – dia da discussão do decreto na Assembleia Nacional – um grupo de universitários sobe as escadas de São Bento. Carregavam caixotes contendo um abaixo-assinado com 3 mil assinaturas, dirigido a Albino dos Reis, Presidente da A.N. – abaixo-assinado posto a circular poucos dias antes, nas Faculdades de Lisboa, Coimbra e Porto. A delegação integrava dirigentes de todas as Associações de Estudantes e das Pró-Associações (Medicina e Letras) e ia exigir a suspensão do Decreto-lei 40900 e a sua revogação. Alfredo Noales, Herberto Goulart, Carlos Portas, Prostes da Fonseca, João Cravinho, José Bernardino, Prazeres Ferreira e Pinho da Rocha são alguns dos universitários que lideravam este processo. Os estudantes afluíram em massa, ocupando inteiramente as galerias. Alguns viram dificultado o acesso, sendo de imediato agredidos pela PSP. Calcula-se que nesta concentração, dentro e fora da Assembleia Nacional, em São Bento, tenham estado mais de 2500 estudantes de todas as Faculdades de Lisboa, muitos outros de Coimbra e do Porto.
O recuo que então se verificou na ofensiva governamental veio possibilitar que, durante 5 anos, as Associações de Estudantes vivessem num período de vazio legislativo, permitindo-lhes consolidarem-se e alargarem o seu campo de acção. A sua actividade expandiu-se, diversificou-se e ultrapassou o âmbito de cada Escola, encontrando formas de coordenação inter-associativa permanente, em Lisboa (RIA: Reunião Inter-Associações) e de coordenação informal, mas mais ou menos regular, entre dirigentes das três Academias, Lisboa, Coimbra e Porto. Estabeleceram-se os primeiros contactos internacionais.
O carácter democrático do funcionamento dessas Associações – com a realização de assembleias-gerais, em que os problemas eram discutidos e os dirigentes eleitos, com programas analisados por todos, e com inúmeras iniciativas de carácter social e cultural (dando especial destaque às artes e ao cinema) – levou à sua expansão. Diversificando as propostas aos alunos universitários, criando comissões onde se aprendia a trabalhar em grupo e se levavam a cabo iniciativas em clima de abertura e de democraticidade, as Associações de Estudantes tornaram-se verdadeiras escolas de aprendizagem da Democracia. Espaços de Liberdade ímpares na Universidade de então. Por isso, nem a Mocidade Portuguesa, com o enorme apoio posto pelo poder à sua disposição, disputava às Associações de Estudantes a sua representatividade e o seu enraizamento na massa estudantil.
Foi um período que abalou a Universidade e que reforçou a politização dos dirigentes associativos, e de inúmeros estudantes que se batiam contra a origem politica dos obstáculos levantados aos seus programas académicos. A movimentação estudantil suscitada pelo “40900” alargou o campo da juventude universitária hostil ao regime (e mais tarde acentuou-se com as eleições presidenciais de 1958).
A questão do dec-lei 40900 veio a ser retomada pelo Movimento associativo em 1962.
(com elementos também recolhidos num artigo de Armando Myre Dores, num boletim da URAP, e num artigo de Rui Grilo, no Jornal da Universidade de Évora)
Segunda-feira, 22.Jun.2009 at 02:06:13
Dois em um: um testemunho importante sobre uma luta pouco lembrada (a do início da contestação ao famigerado 40900, cuja envergadura muitas vezes se apaga face à dimensão e impacto da posterior efervescência de 62) e uma bonita estória de amor “em tempo de guerra”. Melhor que isto? Em lado algum.
Segunda-feira, 22.Jun.2009 at 08:06:50
É a minha história preferida do teu “Saudações, etc.” O comentário anterior explica porquê…
Segunda-feira, 22.Jun.2009 at 09:06:17
Jorge:
Espero que tenhas voltado a lê-la…É que, aqui, tratando-se de um testemunho, ajustei-a mais à verdade dos factos e, ao mexer-lhe, ficou um bom bocado diferente da historinha com o mesmo nome do “Saudação, flausinas, etc”…
Segunda-feira, 22.Jun.2009 at 10:06:36
Eu não pertencia ao meio estudantil, mas o meu círculo de amigos andava pela Medicina e eu ia ouvindo falar desse decreto e do que se ia passando. Mas esse decreto, se não estou em erro, apareceu lá para o fim dos seus cursos, o que quer dizer que eu só teria seguido a sua ponta inicial.
Por ser tão pouco referido é que eu venho aqui dizer alguma, pouca, coisa e provavelmente incerta. Com todas as reservas o faço.
Era ministro o Leite Pinto. Que era um personagem diferenciado. Lembro-me de descrições de reuniões de estudantes com tal ministro que eram divertidas, animadas e informais. Dizia-se que era o único ministro que tinha a coragem de fumar nos Conselho de Ministros. E havia outras histórias que ilustravam tal cavalheiro.
Julgo que, na altura, havia a percepção da sensibilidade que tinha a promulgação de tal decreto-lei. Era alguma coisa que afectava gravemente as Associações Académicas, mas que interessava, ao mesmo tempo, os filhos daqueles que estavam no poder ou na sua esfera. Aquilo também respeitava os seus, os rapazes de quantos tinham peso na “situação”.
Havia, neste caso, uma certa dimensão caseira de uns quantos (bastantes). Sentida como tal, respeitada como tal, o que não impedia a violência, como mais tarde se veria a repetir.
À época, o movimento associativo tinha uma certa força e parece-me bem que o 40.900 fazia parte duma política de contenção. Mais resposta ao que estava dado, do que um propósito de desejado e estrito controlo futuros.
Pelo que julgo poder apreciar, foi uma luta que não se pode considerar fracassada. Arrastada, diferida, dividindo aquele pessoal sénior do regime e unindo os estudantes. Julgo que o Movimento Associativo continuou e, algum tempo depois, até se revestiu de maior força. Com a história que já se conhece melhor.
O testemunho de Helena Pato era necessário. E seria bom que outros viessem a falar deste 40.900, já longínquo, mas que terá tido maior importância do que a correntemente admitida.
Senti uma boa alegria por saber que o Noales tinha tido assim uma namorada – e mulher – tão fascinada por ele, tão por ele enamorada. Gostei.
E só mais uma coisa. A referência ao Herberto Goulart. Ele pertenceu comigo à Comissão Executiva da CDE de Lisboa, em 1971, parte de 1972 talvez; tivemos pois actividade política como camaradas nessa e noutras circunstancias, e nele sempre vi, no seu relacionamento político com os outros, uns bons atributos de lealdade, de lisura e de correcção.
Obrigado, Helena Pato
Segunda-feira, 22.Jun.2009 at 10:06:00
“Mas que interessava, ao mesmo tempo, os filhos daqueles que estavam no poder ou na sua esfera” – diz José de Sousa e, quanto a mim, bem. Como se vê por um excerto do artigo de Armando Myre Dores (acima citado): “Dos sete deputados que intervieram no debate do decreto, só um – Daniel Barbosa que seria aplaudido pelos estudantes, da galeria – faz a sua análise (…) dizendo aguardar confiadamente a publicação de uma lei que “bem merece o interesse de procuradores e deputados, até porque todos, ou quase todos, temos filhos ou parentes próximos a estudar na universidade, e por isso mesmo lhe devemos a carinhosa atenção de cuidar dos seus direitos, no desejo de melhor contribuir para o seu futuro”. Segundo Rui Grácio, esta nota (…) testemunha a pressão a que estava sujeita a classe dirigente pela movimentação dos estudantes.
Sábado, 18.Jul.2009 at 07:07:07
Aproveito para felicitar Helena Pato pelo prazer que me deu através da leitura dos seus textos nos quais também me revejo.
Aqui vai um abraço para o João Tunes.
Domingo, 19.Jul.2009 at 12:07:56
Olá Tito! Abraço retribuído com toda a força e alguma nostalgia.
Domingo, 19.Jul.2009 at 09:07:59
Gostei imenso do texto, porque bem escrito e por relelbrar um momento histórico do movimento associativo
universitário (que não vivi). Fiquei com curiosidade em saber o que aconteceu a Alfredo Noales.
Domingo, 19.Jul.2009 at 10:07:06
Caro Manuel Godinho,
Encontrará aqui a resposta
https://caminhosdamemoria.wordpress.com/2009/05/04/para-umas-formalidades-no-paco-do-duque/
Cumprimentos