Desde a infância até à adolescência, ter-se um ídolo, ou vários, é uma âncora fundamental para a saúde do crescimento. Depois, em idade adulta, o culto dos ídolos já é mais discutível – pode dar para o torto quando deriva de infantilização tardia ou ser uma bengala útil que ora se usa e se vai metendo em repouso. O problema dos ídolos é que eles são fugidios, deixam marcas fortes pelo rasto de mimetização e depois seguem viagem para dar lugar a outros ou devolvendo-nos à orfandade de refúgio para darmos conta de nós. Por instinto, vamos lidando com as projecções nos nossos ídolos, gerindo a sua volatilidade entre presença e ausência e ainda, parte dura, a sua intangibilidade. Pelo meio, é a boa gestão desta relação com os ídolos que nos dá a paz do equilíbrio por não sermos forçados nunca a medirmos, taco a taco, a dimensão da nossa «pequenez» perante tanta «grandeza», a do ídolo, podendo viver, com autoestima, um talento ou fama emprestadas. Mas o problema original da lide com os ídolos surge em conseguir tê-los à mão de semear, mas que pode, por proximidade com o imaginário, matá-los ao abrir da redoma. Se a distância desaparece e eles passam do ideal para a realidade, ou caem com os seus pés de barro e adeus vindima, afinal são humanos como nós, ou então são mesmo grandes e supremos e sentimo-nos mal ao medirmos as alturas relativas. Assim, para poder ser fonte de saúde, o herói deve estar suficientemente longe mas em altar onde façamos as nossas missas.
Arrasto, na minha memória, a sombra dos meus ídolos passados. A mais forte é, como costume, a do primeiro na fila da lembrança. Que, para não fugir à regra dominante dos miúdos varões, foi um jogador de futebol. Era o José Augusto, famoso extremo direito, então ainda a jogar no Barreirense mas já a gozar de fama mais que merecida. Um dia, tinha para aí os meus onze anos, fui cumprir uma das obrigações terríveis que um miúdo tem de suportar devido à ditadura dos adultos, a de cortar o cabelo. Havia uma barbearia bem junto ao campo do Barreirense com quem estava ajustado o contrato de, todos os meses, me cortarem o cabelo. Aquilo era um tormento, o feitio do corte estava pré-escolhido pela autoridade familiar, tinha um remoinho capilar que era indomável, custava-me esperar ouvindo conversas intermináveis sobre assuntos de adultos que nada me diziam e parecia-me infindável aquele tanto tempo de tesouradas e aparadelas com uns toques agressivos na cabeça de cada vez que tendia a virá-la para o lado errado ou deixá-la descair. O barbeiro tinha já iniciado a sua sessão de tortura quando se senta na cadeira ao meu lado, ali mesmo ao pé de mim, o José Augusto, o craque. Ia dando, emocionado e intimidado, as minhas miradas de soslaio para o meu herói, subitamente ali à minha beira, na singela distância entre duas cadeiras numa barbearia. O tempo foi passando e, enquanto eu ia sendo tratado secamente pelo profissional que cuidava da minha rebeldia capilar num crescendo de irritação para com ela, o colega que tratava do José Augusto era só mesuras e deferências para com o cliente famoso, um orgulho da terra e do clube. E a minha tortura arrastou-se, nesse dia, muito mais que o normal pois quem cuidava de mim era todo vagares e paragens na função para poder beber os pormenores que o José Augusto, ali ao lado, confidenciava sobre peripécias de jogos e treinos. Não gostei da experiência daquela proximidade que, antes, daria tudo para a conseguir. Porque em vez de ganhar grandeza com a proximidade do meu herói, senti-me ainda mais desprezível e irrelevante. Em vez de crescer, eu fui ainda mais reduzido à condição de miúdo irrelevante. Nada passaria a ser melhor, para mim e para a minha fama, não aprendi sequer uma finta ou um remate imparável, por ter, naquele dia, cortado o cabelo com o José Augusto ao meu lado. E um craque que viria a espantar todo o mundo com o seu talento de exímio extremo direito, a quem prestara culto embevecido, apeou-se ali em mistura com o meu cabelo aparado por uma tesoura de barbeiro. De vez em quando, cruzo-me com ele quando vou ao Barreiro, ambos envergando os nossos cabelos brancos. Presto-lhe um cumprimento de anónimo com a deferência mínima devida para com um ídolo apeado numa sessão de barbearia.
[Texto revisto de um post publicado no blogue Agua Lisa]
Biografia de João Tunes
Sábado, 20.Jun.2009 at 06:06:48
A minha história foi com o Mário Wilson. No ano que ele treinou o SLB consegui-me infiltrar nos estádio da luz mais um amigo, e nessa parte do estádio estava o Mário Wilson, eu e o meu amigo não sabíamos o nome de um jogador e vai daí eu perguntei Sr Mário Wilson que delicadamente fez a fineza de responder a dois putos quem era o jogador.
Domingo, 21.Jun.2009 at 02:06:37
Apesar de o José Augusto depois ter ido jogar para o Benfica e ter tido aí o culminar da sua carreira, enquanto jovem jogador do Barreirense ele já aí atingira a notoriedade, com chamadas a todas as selecções nacionais (júniores, selecção militar, selecção A). A minha referência de memória infantil, aqui posta, tem a ver com essa proximidade, só possível numa vila, enquanto José Augusto era craque do Barreirense. O Benfica era-me então, apesar de para esse clube também eu depois me ter transferido sem renegar o “primeiro amor”, algo grande, distante e rival. E recordo que das emoções mais fortes que senti enquanto jovem adepto foi uma vitória histórica do Barreirense sobre o Benfica por 3-0 (num ano da década de 50). Mas agradeço ter trazido o velho e afectivo Wilson para a conversa, eu vejo-o como conta, de uma profunda generosidade e disponibilidade, sobretudo com os mais pequenos.
PS – Como falei do Barreirense e me respondem com Benfica, tal faz-me lembrar um episódio preliminar deste post ocorrido com a “blog manager” Joana. Então não é que ela, relapsa ao bom domínio das coisas do futebol, insatisfeita com a fraca qualidade de uma foto do José Augusto equipado à Barreirense que lhe mandara para ilustrar o texto, me contrapôs uma outra foto do craque mas equipado à Benfica e da altura em que ele transpirava fama mundo fora como bi-campeão europeu? Foi uma zanga e peras entre nós, até que a “verdade desportiva” fosse respeitada.
Domingo, 21.Jun.2009 at 04:06:35
Então vamos lá contar toda a história da fotografia deste «post». O João começou por me enviar um J. Augusto, imberbe e barreirense, sem dúvida, mas numa espécie de cromo da farinha Amparo, que me mereceria raios e coriscos dos estetas que também andam pelos bastidores deste blogue. Contrapropus a tal outra, já de uma fase madura e benfiquista (a medo, devo dizer…) Indignação do autor que, finalmente, desenterrou a definitiva, adequada e cheia de patine. É também disto que é feita a vida de blogger…
Sábado, 20.Jun.2009 at 07:06:43
Nomeei o Caminhos da Memória para o Prémio mais conhecido na blogosfera… Podem ver no A Nossa Candeia… já agora, o Amigo João Tunes está duplamente de parabéns: recolheu 2 prémios: este e o do Água Lisa que já lhe fora atribuído…
Um Abraço.
Ana Paula Fitas
Domingo, 21.Jun.2009 at 02:06:19
Este, o prémio para os “Caminhos” vai para a sala de troféus à guarda da “blog manager” Joana Lopes. Sem as minhas escrevinhadelas, o blogue existia sem que a falta se notasse, sem o porfiado trabalho da Joana simplesmente não havia “caminhos” e a memória é que pagava.
Domingo, 21.Jun.2009 at 08:06:51
Muito Obrigada, Ana Paula Fitas, em nome dos «Caminhos».
Domingo, 21.Jun.2009 at 11:06:27
No meu blogue fiz uma remissão para este post. O José Eduardo Sousa, com a generosidade colaborante que lhe é própria, deixou lá um comentário-testemunho (delicioso)que julgo caiba melhor aqui. Aqui fica:
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Também eu ia ao barbeiro com claras indicações da autoridade paterna. Cabelo à inglesa curto. Não sei se essa determinação vinha de uma das suas pulsões de bom anglófilo, se de uma qualquer razão menos espiritual. Também eu tinha um remoinho indomável. Trazia uma alcachofra no cocuruto.
Lembrar, mostrar, descrever o que era o barbeiro, a sua cadeira, os seu utensílios, os seus materiais, nessa altura, naquela década de 30 em que era criança e no princípio da de 40 em que era adolescente, divertiriam, pela certa (?), os jovens de hoje.
Possivelmente, terão uma melhor ideia do que eram os barbeiros de província ou da figura de barbeiro de tempos mais antigos, do que os que, nessas décadas, estavam estabelecidos em Lisboa, com porta aberta para a rua. Pagando os seus impostos…
Os barbeiros tratavam-nos mal. Não cabia no ofício aturar os filhos dos outros. Os meninos e meninas, quando mais pequenos e agitados, sentavam-se ao colo das mães e aí ficavam mais ou menos manietados. Havia acrescentos próprios, para elevar o assento da cadeira. A cabeça tinha de ficar à altura da trepidante tesoura e dum pente, que corria como uma onda do mar, logo que o trabalho estava feito.
Ora, se a memória não tropeça, eu cheguei a pagar, por um corte de cabelo, 2$00, mais ou menos. Isto é, um cêntimo de euro, € 0.01. Mas aquele preço foi subindo com rapidez.
Seguramente, esta será uma surpresa para os jovens de hoje. Melhor, talvez seja. Eu mesmo, nos meus primeiros anos, olhava para um prédio da Trafaria, com algum volume, e ia ouvindo que aquilo tinha sido vendido por 800 mil reis. Quatro euros. Nos tempos em que os meus pais começavam, também, a sua vida.
Esta conversa de preços é entediante e própria de velhos. É hoje e já o era, naqueles tempos em que toda a gente era mais velha do que eu.
Ora, mais ou menos por esses tempos, que me lembre, só um barbeiro foi amigável e paciente comigo. Bem sei que já ia nos meus 15 ou 16 anos.
Estava doente. Coisa séria. Em casa, na cama durante meses. Não saía, não andava, ali na caminha imenso tempo. A higiene, doméstica e inábil, não seria, pela certa, a recomendada, nos tempos de hoje.
O meu pai entendeu, às tantas, chamar um barbeiro a casa. Bem precisava. E lá apareceu ele, com a sua tesoura, perante aquele ser definhado, com todas as molas quebradas e como um mau anúncio de coisa decomposta.
O barbeiro mostrou-se satisfeitíssimo porque eu não estava morto. Eu falava. Com o ar grave que a circunstância impunha, lá se informou dos meus males.
O homem falou por sua vez. Eu, uma vez que não estava morto, ouvia-o Que era chamado muitas vezes para escanhoar cadáveres, que era um trabalho muito melindroso, porque corte que se fizesse não se compunha e ficava vertendo uma aguadilha amarelada e o morto não ficava apresentável para ir ao seu enterro. Que era preciso ter ofício… não era assim trabalho para qualquer…
Enfim, naquele tampo a morte era doméstica, muito caseirinha e, às vezes, até dava um certo jeito. Um quartinho vago, umas economias deixadas, uma leira algures.
As veladas, na maior parte, faziam-se em casa e, lá para as tantas da noite, comia-se qualquer coisa, em mesa aberta aos presentes. Uma hospitalidade para gente sempre sem “nenhum apetite”. Ficávamos então esperando pela alvorada.
Depois, era um espectáculo, uma animação com a descida do caixão. Quando chegava a carreta, com os seus cavalos e panejamentos. Tive um primo que desceu na vertical. Sempre teve mau feitio. Era gordo e vivia num terceiro andar.
Seguíamos a pé para o cemitério e se o morto desaparecia na cova… lá ficavam as viuvas, por vezes as mães, pelas ruas, com negros e pesados véus, vestes pretas, carregando na cor, escondendo na cara, o seu eterno desgosto.
Pois, João Tunes, aquele meu barbeiro foi bem gentil. E compreende-se, eu não lhe tinha feito a desfeita de estar morto. Era um barbeiro agradecido.
José de Sousa
Segunda-feira, 22.Jun.2009 at 05:06:14
Obrigado pelo que diz, aqui e em Caminhos da Memória, a respeito do meu texto e da minha colaboração. Exagero. Desacerto em relação mim, como em relação a si. Foi, dos seus textos biográficos, um dos que mais gostei.
Um abraço
Terça-feira, 23.Jun.2009 at 12:06:51
texto delicioso…
curiosamente conheci o José Augusto numa situação completamente estranha. cumpria o serviço militar em Vale de Zebro (escola de fuzileiros) na primeira metade da década de oitenta e aquilo ficava quase no “deserto”. uma das formas de sairmos dali, era à boleia…
estava eu à boleia quando um peugeut grande parou e vejo que o condutor era o José Augusto, na época tecnico das selecções jovens (o Queirós era o seu adjunto…).
foi uma viagem extremamente agradável onde falámos de tudo, de futebol, da juventude, da vida militar, e claro, do Barreiro…
fiquei com a sensação que este “idolo” não tinha pés de barro.
Terça-feira, 23.Jun.2009 at 02:06:34
Sim e ele é muito estimado no Barreiro. É apaixonado por basquetebol e é aí que costumo encontrá-lo quando o Benfica vai jogar ao Barreiro. Reparo que nos Barreirense-Benfica ele mantem-se mudo e quedo, sem exteriorizar preferências nem festejos. Provavavelmente, como eu, entre os dois o coração dele balança.