Sou do tempo em que o pronto-a-vestir ainda não tinha aparecido e estava, portanto, longe de se ter apoderado do mercado das fatiotas. Quando se queria um fato, recorria-se a um dos alfaiates que eram, então, artesãos numerosos e respeitados. E a concorrência permitia uma escolha amadurecida. Quando se encontrava, por mestria ou simpatia, um alfaiate que nos apanhava bem os pormenores das linhas do corpo, então dava-se uma fidelização. Mas o normal é que os serviços de uma alfaiataria fossem prestados a todos os varões da família, dos mais velhos até os mais novos e por escolha do patriarca.
A construção da vestimenta tinha os seus preceitos e vagares. Havia, primeiro, a escolha do tecido, normalmente adquirido numa loja-armazem da baixa lisboeta, após demorada investigação das relações preço-qualidade e só depois, matéria-prima na mão, o artesão entrava em funções numa sucessão de cerimónias com várias fases e suas demoras. A abrir, a sessão de se tirarem as medidas que quase imitava uma investigação anatómica. Depois havia as tormentosas sessões de provas que se iam repetindo para ajeitar mangas, bandas, pregas na cintura, as alturas mais os comprimentos e mais as larguras. O alfaiate de giz branco empunhado, alfineteira no braço, dava-nos voltas e mais voltas, repetindo a verificação do efeito das correcções em novas sessões aprazadas e até que a obra fosse considerada acabada. Uma seca, que no caso dos juniores desafiava a sua atávica impaciência para com tão repetidos e enfadonhos rituais.
Por economia caseira, calhava-me herdar os fatos que o meu Tio Luís ia pondo de parte por terem atingido o prazo do uso. Porque o custo do tecido pesava, e muito, no orçamento. Então, o alfaiate desmanchava os fatos usados e ia dispondo as partes dos tecidos do avesso. Quando tudo estava revirado, eu lá ia às provas tirar medidas e ajustar os pedaços de pano até que, do fato usado do meu tio, virado do avesso e com ajuda do mérito da diligente tesoura, lá saía o meu fato «novo». «Está como novo», era o que me diziam. Mas havia sempre um problema insolúvel. Na altura, usava-se, na banda esquerda do casaco, uma ranhura (cuja designação técnica se me varreu da memória) que era o sítio onde se podiam colocar emblemas, cujo uso era corriqueiro na época. Da volta do tecido das bandas, resultava que a ranhura, que devia estar à esquerda, ia parar ao lado direito. Assim, os meus fatos só eram «como novos» na aparência distraída porque a malvada da ranhura ao lado direito estava lá, bem visível, a assinalar o ferrete de se tratar de um «fato revirado». E parecia-me que toda a gente que passava por mim olhava para a ranhura do meu casaco e me gozava por eu estar a usar os fatos do meu tio. Claro que, assim, só usava fato se a isso fosse obrigado. A certa altura, apareceu a moda de se usar uma ranhura em cada banda do casaco, o que prefigurava uma solução para a minha tormenta. Depois, veio rápido o uso e abuso do pronto-a-vestir. Finalmente, o abandono das ranhuras nas bandas dos casacos. Tudo mudanças demasiado tardias para mim. O «mal» estava feito e sem hipótese de reconciliação. Desde miúdo que só enfio um fato no corpo por estrita obrigação. Que tem de ser muito, mas mesmo muito, solene.
[Texto revisto de um post publicado no blogue Agua Lisa]
Biografia de João Tunes
Quinta-feira, 11.Jun.2009 at 09:06:09
Muito me divertiu o seu texto. Prosa de excelente humor.
E estarei consigo. Esta coisa do vestir não é de somenos importância. Longe disso. Podia-se escrever uma sociologia do traje, onde os fatos dos homens, por medida, mereceriam páginas honradas. Nada de blá-blá. Podia mesmo elaborar-se uma psicopatologia do vestir e, com investigação vasta e profunda, veríamos quanto as nossas trajes nos têm feito sofrer e alterado dramaticamente a personalidade .
João Tunes, se me permite acompanhá-lo, vou rememorar consigo duas ou três coisas. Não iremos longe.
Além do problema da botoeira, que refere e que era quase como um furúnculo no nariz, havia o do bolso do peito, onde se enfiava o lencinho. Era um caso bicudo quando se virava um fato. Ficava, no lado contrário, uma cesura que ia apregoando à Cidade que o fatinho tinha sido virado. Uma gritaria indecente. Tão indiscreto como uma botoeira à direita, era aquele traço dum bolso já não existente. Como já não existia o fato original.
Ora os pobres homens, que eram precavidos, remédio tinham, mandavam que fosse simulado aquele bolso de peito. Parecia que existia, mas não existia. E assim, em fato revirado, se apagava aquela asquerosa denúncia. Continuava, pois, a parecer que não se estava mal na vida.
Depois havia o problema do colete. Leva colete ou não leva colete? Aquela era uma peça prodigiosa. No Inverno, aquecia e atenuava um pouco o frio por que passávamos. Que era muito. E aquelas cavas ainda davam muito jeito para enfiar os polegares. E os polegares são, na mão, o nosso orgulho, são dedos de confiança. Gordinhos e alegres.
Haveria um caso particular. O dos obesos. O colete, sobre a sua barriga, comportava um espaço de grande utilidade. Nas algibeiras situadas em baixo, na área onde o ventre entra no seu declive descendente, havia lugar para grandes arrumações. Tão grandes, que um obeso comerciante poderia arrumar ali a mercadoria da sua loja. Com dispensa de qualquer outro armazém.
E, João Tunes lembra-se, a pergunta esotérica do alfaiate: para que lado veste? Tratava-se de saber se nós deixávamos descair as partes para dentro da calça do lado direito ou, ao contrário, da calça do lado esquerdo. O corte das calças era diferente. Depois, o alfaiate pedia para abrirmos as pernas e –“com licença”–levava a fita métrica ao ponto onde as nossas pernas se juntam, uma situação sentida como melindrosa, segurava-a aí e esticava-a para baixo até à altura da canela onde se desejaria a bainha das calças.
Com bainha ou sem bainha, vamos lá ver a largura que quer, a que altura ficam as calças, usa-se agora… etc. etc.
E deixo para outros comentadores os seus próprios etcs. Que o assunto é sério!
Quinta-feira, 11.Jun.2009 at 11:06:21
Duas peças de humor, corte (muito corte)e costura! De antologia…
Obrigada, João Tunes (e Franco de Sousa) por estes pedaços de escrita deliciosa que me proporcionaram un bons momentos de riso.
Sexta-feira, 12.Jun.2009 at 09:06:55
Obrigado aos dois. Ainda bem que fiz rir a Helena Pato e que, ao fazer também rir o Carlos Freitas, lhe disse alguma coisa de novo. Eu, às vezes, vou aprendendo, mas com muito mau humor.
Não é por falsa modéstia, mas acho que o João Tunes é quem aqui conta. Ele é quase perfeito no que escreve, e neste texto também o é. Esperando não o encolerizar – aqui, na sua prosa irada, não será tão apreciável para quem é visado – eu dava-lhe um cognome.
Há muito tempo, quando os animais não falavam e havia homens que tudo ainda esperavam, os imigrados russos, na Suíça, chamavam La Plume ao Trotsky. Isso, pela sua capacidade de expressão escrita, diferente da sensaboria, não reconhecida pelos próprios, com que outros diziam da sua justiça.
Pois eu, pela qualidade do que escreve, também lhe daria tal cognome. João Tunes, La Plume.
Helena, envio-lhe um grande abraço. E um beijo para todos aqueles, da família do Noales, que o lembram. A mãe do Noales já morreu, certamente.
Franco de Sousa (o irmão)
Segunda-feira, 29.Jun.2009 at 06:06:28
Foi através da minha querida cunhada Helena, que recebi o beijo dirigido a “todos aqueles da família do Noales, que o lembram” e acrescento, com muito carinho e muitas saudades. Sim a nossa mãe já morreu ha mais de 40 anos e ficamos eu e os meus filhos, netos e bisnetos, que vivemos todos no Brasil.
Sexta-feira, 12.Jun.2009 at 11:06:40
Aprender, mesmo em pormenores aparentemente, só aparentemente dispiciendos, é algo de reconfortante. E o que eu aqui aprendi sobre uma época, usos e costumes, coisas aparentemente corriqueiras, para alguns, mas que são factos. E eu vivo, de facto, aprendendo, rindo.
Sexta-feira, 12.Jun.2009 at 10:06:10
Não estranhem o silêncio do João Tunes. Julgo saber que está em férias e sem acesso à net. Mas julgo que não perderão pela demora!
Sexta-feira, 12.Jun.2009 at 10:06:41
Eu calculava isso, Joana. Tremo ao pensar que ele não gostará de ser apelidade de La Plume.
Domingo, 14.Jun.2009 at 01:06:21
Agradeço as achegas e as simpatias. Quanto a cognomes, estejam á vontade, tanto mais que não me lembro de alguma vez na vida ter tido direito a uma alcunha. Mas se Trotski não desmerece e atendendo às tecnologias da voga de que o computador é o centro, proponho o sucedâneo de “O rato”.