Aqui Posto de Comando das Forças Armadas! – Era o que o meu coração de 35 anos voltara a ouvir. Como se tivéssemos rebobinado o filme da Revolução, um ano para trás. A festa regressava. Lisboa matava saudades do primeiro de Maio de 74.
As rádios e a televisão engalanavam-se com músicas a condizer e reportagens sobre o acontecimento, melhor dito, sobre os acontecimentos. As pessoas ainda se comoviam quando falavam do 25 de Abril, para as câmaras. E, contudo, nada de palavras alusivas aos partidos, que toda a gente cuidava de respeitar a nova lei eleitoral. Nesse dia, íamos votar. Todos ou quase todos, e muitos pela primeira vez.
Vinte e cinco de Abril de 75: o voto em liberdade!
No teu voto a força do povo – tinha sido um slogan nosso, da oposição, nas eleições fascistas de 1969.
Para muitos, uma vida e, para mim, anos e anos à espera daquele dia. Eu tinha sido nomeada presidente de uma mesa de voto e, por isso, quase não dormira. Com a preocupação de que algo não corresse bem, com um sentido de responsabilidade infantil, à medida da novíssima democracia. (Voltei a lembrar-me dessa sensação quando vi, pela televisão, a transmissão da votação do referendo em Timor, e me comovi com as filas de timorenses, a aguardarem a sua vez, desde a madrugada. Um povo quando acredita na força do seu voto, vai, não desespera, aguenta, festeja).
Antes das 7 horas saí de casa, com o meu fato de eventos – já batido, mas cerimonioso – e com um sorriso para o mundo, pronta para eternizar, na minha memória, as horas que iria viver. Sentia-me como se estivesse apaixonada: tudo me parecia irreal, a cidade branca, a luz rósea-doce, as pessoas encantadoras. Os lisboetas eram novamente a melhor gente do mundo e, a cada virar de esquina, em cada paragem de autocarro, voltavam a oferecer-nos a generosidade e a ternura com que nos tinham surpreendido na primeira semana da Revolução, um ano antes. A magia voltara.
Mal fecho a porta de casa, começo uma caminhada a pé, sempre à procura nos olhos dos vizinhos de encontros com os meus, de uma cúmplice alegria silenciosa. «Que contente que estou! Será que eles, os madrugadores da Penha de França e da Graça que se cruzam comigo, me compreenderiam se, neste momento, lhes garantisse que nunca irei esquecer o dia de hoje? Que, tal como na canção do Sérgio Godinho, este dia me parece ser, outra vez, o primeiro do resto das nossas vidas?» – pensava, contendo-me no impulso de os beijar, em lugar de lhes fazer um aceno cordial.
Rua abaixo, instante após instante, não paro de me emocionar com os cravos vermelhos, orgulhosamente exibidos, na mão ou na lapela, por quem se dirige, já, para os locais de votação. Mas, interiormente, sorrio ao ver as velhinhas, umas atrás de outras, correndo para a missa da Igreja dos Anjos. «Vão decididas a pedir uma intervenção divina que tire a força na mão direita a quem queira pôr a cruz no quadrado do diabo – o homem dos cabelos brancos!»
Umas horas mais tarde, de pé, atrás da mesa de votação, volto a comover-me com o espantoso civismo dos milhares de criaturas que avançam e param, avançam e esperam. Esperam pelo gesto que lhes permite exercer, finalmente, o seu direito de voto. Dentro da sala, há quem se cumprimente efusivamente, amigos, uns e vizinhos, outros: são os que se conhecem dos tempos em que se bateram, anos a fio, por aquele momento. Por verem um povo inteiro nas filas de votação. «Exactamente assim!» – penso eu, fixando com o mais confiante dos meus olhares todos aqueles que me entregam o boletim de voto que meto na urna. Percebe-se que não podem deixar de se abraçar. Vejo-lhes os olhos rasos de lágrimas e compreendo. Homens a chorar – porventura, o primeiro choro em público nas suas vidas – homens velhos a partilharem, ali mesmo, essa intimidade com todo o bairro.
À noite, com a missão cumprida na minha secção de voto, e esgotada por ter procurado seguir com rigor as orientações da Comissão Eleitoral, fui dali directamente para uma festa, em casa de amigos. Vitoriava-se a Democracia. Misturavam-se resultados que iam chegando a conta-gotas, muitos gritos de alegria, e desabafos de descontentamento e de decepção, mais ou menos amargos (ou mesmo enraivecidos).
Quando chego, o jantar estava no fim.
– Já não há bacalhau para mim? – Pergunto, sem ser ouvida. (Ninguém tira os olhos da RTP. É a primeira vez que Portugal vê resultados eleitorais). Insisto no bacalhau. Nada. Não tenho resposta. Quase não comi e tombei de sono, de cansaço e de copos, num sofá da sala. Contente e exausta. Ouvindo ao longe, nas ruas, o som das buzinas e os gritos de «Vitória, vitória!», adormeci. «O Partido ficou tão aquém do que eu esperava! Paciência… Até à próxima, fantástica gente do meu País! No teu voto a força do Povo…No teu voto a força do Povo…No teu voto a força do povo. Conseguimos.»
– Acorda, Lena! Vamos para casa, que amanhã é dia de trabalho! – …E a luta continua! – Acrescentou ele, sorrindo.
Os nosso meninos, àquela hora, dormiam, inocentes, ignorando que as suas vidas já estavam a ser decididas em Democracia.
Sei que ninguém acreditará nesta minha confissão, mas ainda agora me emociono quando, em votações nacionais, me aproximo da mesa e coloco o meu boletim de voto na urna eleitoral. Trinta e tal anos depois, admito que seja uma pieguice. Talvez por isso, mantenho o ritual de ir sozinha votar. Desse modo, escondo intimidades.
Adaptação de um texto publicado in Saudações, Flausinas, Moedas e Simones, Campo das Letras, 2006
Sexta-feira, 05.Jun.2009 at 08:06:15
Helena
Belíssimo texto. Engraçado como eu senti (e sinto) exactamente o mesmo. E não representei na mesa de voto o mesmo partido,nem votei no mesmo da Helena (imagino). Adora eleições, adoro votar e também continuo a ir sózinha, para «esconder intimidades» e também emoção. Claro que não é a mesma, nem o é o entusiasmo de 1975 e dos anos imediatos. Mas a memória desses tempos eleitorais ainda perdura. Voto sempre e gosto muito de o fazer. Sinto mesmo uma certa solenidade (!), quem diria. E não gosto nada quando oiço crescentemente pessoas a gabar-se de não rem votar.
Obrigada, Helena
Sábado, 06.Jun.2009 at 12:06:25
Cá estamos falando do voto, no período de reflexão!
Creio que, de ano para ano, elejo com mais consciência e de forma mais livre. Voto a voto, agora pondero de cada vez o voto. Embora acabe por não divergir muito na escolha partidária, o meu voto é, em cada eleição, um novo voto: uma espécie de “confirmação de votos”.
Amanhã, lá teremos o nosso instante de solenidade e de contentamento…
Um abraço, Irene.
Sábado, 06.Jun.2009 at 01:06:15
Os sentimentos magnificamente expostos por Helena Pato e secundados por Irene Pimentel são, ouso dizê-lo, comuns a muitos de nós, mulheres e homens. E não por causa de um partido bem determinado, mas pela assunção de um acto de cidadania: sentir que queremos ser e somos parte dos destinos deste povo, desta sociedade, deste mundo em que vivemos e com os quais nos sentimos corresponsáveis.
A primeira vez que participei activamente numas eleições, quer na sua preparação, quer durante o acto eleitoral em mesas de apoio aos eleitores (na altura a oposição não participava nas mesas de voto, tanto quanto me recordo, mas tinha mesas periféricas às assembleias de voto onde entregava boletins de voto a quem os solicitasse) foi em 1969. E ainda me recordo da alegria e da excitação que me enchiam e aos meus companheiros de então. E até da cumplicidade que existia entre os representantes das diversas candidaturas da oposição: a nossa, mais participada e mais dinâmica, a da CDE e as da CEUD e dos monárquicos. (Bem e até houve uma curiosidade: o posto de entrega de votos da “situação” era vizinho do nosso e apenas ocupado por uma pessoa, desconfio que “voluntário-à-força”; em determinado momento por necessidades pessoais fisiológicas esse nosso vizinho veio-me dizer que se tinha de ausentar por momentos e se eu não me importava de tomar também conta da banca dele; claro que lhe disse que não estava nada interessado em distribuir os seus boletins de voto; pediu-me então que, ao menos, fosse olhando para que ninguém lhos roubasse; depois, durante a sua ausência, veio ter comigo uma professora do secundário perguntando se os votos que eu tinha eram os “votos bons”; respondi-lhe que eram os óptimos; mas a resposta fê-la desconfiar e pediu-me expressamente os votos da lista da “situação”; disse-lhe que o responsável “tinha ido ali e já vinha” e que eu não mexeria nos seus boletins…).
Claro que, depois, as eleições de 1975 foram especiais, mas todos os actos eleitorais continuaram e continuam a ser algo de muito importante e sempre emocionante para mim, vote eu em que partido ou formação política vote, ou mesmo, como aconteceu pontualmente uma ou duas vezes, anulando o voto.
Domingo, 07.Jun.2009 at 11:06:34
Eu, que nessas não podia votar, acompanhei a minha mãe a muitas outras, e ainda fico nervosa, de um nervoso bom, quando voto. Saudação, Joana! E agora vou lá, e levo a minha filha – só para ver, como a minha mãe me levava a mim.
Domingo, 07.Jun.2009 at 11:06:18
Embora ainda tenha nascido antes de 1975, era muito pequena (minúscula) para ir votar. Talvez por isso não sinta a mesma solenidade de que falam acima. Mas nunca deixei de ir votar e sinto que esse é o meu dever cívico.
O meu pai conta-me uma história engraçada (para mim, bem sei): só quando passou a ser funcionário público pode ir votar. Contudo, parece que os boletins de voto da União Nacional e os da oposição tinham cores diferentes, o que, digamos, era assim como que fácil de distinguir quem votava no quê.
Por isso, mesmo sem solenidade, hoje já fui lá deitar o meu boletim branco (não em branco) na urna.
Domingo, 07.Jun.2009 at 11:06:55
Obrigada pela saudação, Inês, mas não fui eu que escrevi o post! Abraço
Domingo, 07.Jun.2009 at 11:06:21
ups, é o que dá visitar os posts a correr. Mas as saudações mantém-se para todos os colaboradores deste blog, que sem memória não há democracia.
Domingo, 07.Jun.2009 at 11:06:28
Lena,
Nem tudo vem parar à C. de Comentários. Gostarás de ver isto que foi post no Facebook, com link para este teu texto. (Para tua informação, a Sarah fez agora 18 anos e o João Gaspar tem 26…)
1 – Shyz Nogud Para a Sarah que amanhã vai votar pela primeira vez (…)Um dia inesquecível « Caminhos da Memória
Source: caminhosdamemoria.wordpress.com
2 – João Gaspar
belo texto. devidamente reencaminhado para a minha irmã que amanhã também vota pela primeira vez. confesso que a memória de quem nem sempre pôde votar é das poucas coisas que me pode levar a afastar da abstenção.
Domingo, 07.Jun.2009 at 12:06:27
Ler hoje isto – sobretudo o comentário do João Gaspar -sensibiliza-me muito.Mesmo que soubesse de um só jovem para quem o nosso testemunho tem algum eco, prosseguiria a dar o meu,na convicção de que valia a pena. Escrevi o livrito referido no fim do texto a pensar nos jovens da minha escola e, depois, ouvi com muita satisfação os comentários deles. Todos os testemunhos de quem lutou contra o fascismo são mais formadores de uma consciência democrática anti fascista do que os estudos que eles fazem em História. Não há motivo de preocupação com os filhos destes jovens, nascidos e educados em democracia. Nada me convencerá do contrário, nem õs resultados eleitorais desta semana na Holanda!
Forte abraço aos jovens que escreveram os comentários e, também aos outros, que como a Joana V.C. me enviaram comovedores mails.
Domingo, 07.Jun.2009 at 06:06:20
Olá Helena! Olá Irene! Olá Amigos de Todos os Quadrantes!
Olá Irene! A última vez que nos vimos foi no Funeral da Milena! Lembras-te? Beijos para ti!
Olá Lena! A última vez que nos vimos foi em casa dos meus Pais! Tenho Saudades tuas! Beijos!
Mas, peço-vos desculpa, não estou de acordo convosco! Pelo menos na totalidade! A saber!
Nasci em 1958, num contexto de uma família conservadora, filha mais velha entre 4 irmãos!
Sei o que era não poder usar calças; não usar fato de banho (tinha que ser com sainha!); biquini nem pensar; mini-saia “Deus te livre!”
O meu “1º Acto Político Público” ocorreu durante as Comemorações do Dia Internacional da Paz, Capela do Rato, 01/01/1973. Tive um “parco” interrogatório na Pide (eu e outra amiga (Fátima Nery! Não sei o que é feito dela mas gostava imenso de saber! Foi para o estrangeiro, julgo que para a Alemanha. Faz anos a 31 de Janeiro! Comemoro Sempre!)
Mas também sei que tive imensa sorte! Por ter estudado no Colégio do Sagrado Coração de Maria. Tive a oportunidade de conhecer, privar, e serem meus “Pais”, pessoas como o Frei Bento Domingos; Helena Neto; Ermelinda Ramilda (Freira na altura que não sei o que é feito dela neste momento, algures nos Açores!); Nuno Teotónio Pereira; Zeca Afonso; Francisco Fanhais; Luís de França; Fernando Rosas; Arnaldo Matos; Adriano Correia de Oliveira… Sei lá mais quantos!
E mais! Ter como parceiros, apesar de um pouco mais velhos!: Abel Pena (hoje meu marido e Pai do meu filho mais novo); Madalena Barbosa (infelizmente já não entre NÓS!); Irene Pimentel; Madalena; Frei José Nunes; Miguel Portas; Francisco Louçã; Demétrio Alves; Luís Guerra; João Garcia; Garcia Pereira; ;Ana Gomes; Saldanha Sanches; Maria José Morgado; Alexandrino de Sousa (meu grande Amigo que morreu no dia dos meus anos, numa “guerra de cartazes”. A minha “prenda de anos” foi ir reconhecer-lhe o corpo à morgue!) e tantos outros, conhecidos e desconhecidos do “grande público”! Estou mesmo muito emocionada e, de certeza, estou a esquecer imensos! Perdoem-me!
Mas tenho que dizer que, a História tem que se Fazer e, sobretudo, tem que se ir Fazendo!
Não estou de acordo que as Primeiras Eleições Livres tenham ocorrido em 1975! O MRPP foi impedido de concorrer! Ocorreu o disparate do encerramento das Sedes do “dito” e a prisão dos seus dirigentes e não só! O Fernando Rosas,o Saldanha Sanches, a Maria José Morgado; a Guida Uva (Mulher do Durão Barroso!); uma imensa quantidade de amigos e conhecidos foram presos(alguns ainda vivos, outros nem por isso!). Não por serem fachistas mas por estarem “ligeiramente ao lado”! Hoje, na maior parte dos casos, estamos Quase Todos de Acordo! Ainda Bem!
Julgo que para podermos “Fazer História” temos que nos começarmos a destanciar de algumas “Emoções”!
Eu não podia votar em 1975 (tinha apenas 16 anos!) mas se desse para votar não teria votado ou teria votado nulo! Não foram as 1ªs Eleições Livres!
De qualquer forma, continuo a acreditar que a Democracia é o melhor dos Regimes e que o Voto do Povo deve ser Soberano!
Claro que, por vezes, me assusta o facto de o Povo poder votar contra a própria Democracia! O que aconteceu com o Hitler e poderá acontecer na Europa! Preocupa-me o caso da Holanda nestas Europeias!
Já viram o filme “A Onda”? É alemão e foi o meu filho que mo apresentou! Vale a pena!
Beijinhos
Ana Isabel Baião Sá Gomes Pena
Domingo, 07.Jun.2009 at 06:06:28
Subscrevo o que a Ana Isabel Pena anota: estas eleições não foram livres, já que dois partidos foram impedidos de concorrer (além do MRPP também o PDC, neste caso fazendo um favorzinho ao CDS). E como temos a mesma idade, sempre acrescento que também não tinha idade para votar, mas para ir para Caxias já tinha. Não aconteceu, por mero acaso, mas não gostei da experiência de entrar na clandestinidade em Maio desse ano: 15/16 anos é um bocado extemporâneo para esse género de emoções fortes.
Segunda-feira, 08.Jun.2009 at 01:06:07
Ana Pena:
Escrevi um testemunho. Apenas um testemunho. Foi daquele modo que vi e que vivi essas primeiras eleições. Quanto ao fazer História, remeto-te para as tuas próprias palavras:
“Julgo que para podermos “Fazer História” temos que nos começarmos a distanciar de algumas “Emoções”!” – dizes tu a meio do teu muito emocionado testemunho.
Mas como nenhuma de nós é historiadora…
Um abraço, Ana
Quinta-feira, 11.Jun.2009 at 04:06:58
Eu quase tenho vergonha de dizer que não me lembro do meu primeiro voto, sei que foi em 1985, apenas. E não me lembro em que partido votei. Penso que é o preço a pagar pela liberdade, o direito à banalidade. E não deixar esta banalidade transformar-se em indiferença, em recusa ou em dado adquirido é, hoje, um desafio colectivo que, sinceramente, não estou certo que seja ganho.
Quinta-feira, 11.Jun.2009 at 05:06:53
Deixa lá, Paulo, eu que votei desde 75 também seria incapaz de reconstituir a lista das minhas escolhas. Não creio que isso seja sinal de banalização, mas temo, como tu, que desilusões várias criem indiferença, sobretudo nos que começaram a votar em 95 ou 2005…