Passaram ontem trinta e nove anos sobre um dos episódios mais traumáticos da guerra colonial. Às 16 horas do dia 20 de Abril de 1970, no norte da Guiné (na estrada entre Pelundo e Jolmete, na região de Teixeira Pinto/Canchungo de etnia manjaca), três oficiais superiores e um alferes miliciano do exército colonial português mais três guineenses colaboracionistas (*) foram mortos por forças do PAIGC. O episódio teve um efeito psicológico assinalável entre os militares envolvidos na guerra colonial não pelo número de baixas mas pela natureza do acontecimento e pelas pessoas envolvidas. Desde logo, porque perderam simultaneamente a vida três oficiais superiores portugueses considerados como pertencendo à nata do corpo de oficias profissionais nos teatros de operações. Depois, porque o alvo da missão dos quatro militares e dos três colaboracionistas guineenses era exactamente o oposto do que aconteceu – concretizar a rendição e passagem para o lado colonial das forças do PAIGC que operavam na região, após aparentemente bem sucedidas negociações de aliciamento realizadas antes. Finalmente, com enorme carga simbólica, pelas circunstâncias em que as liquidações se concretizaram (assassinatos a sangue frio e com requintes de crueldade de pessoas que se encontravam desarmadas). O certo é que o que se previa ser um momento alto da contra-guerrilha, a desarticulação operacional da intervenção do PAIGC no norte da Guiné e com efeitos devastadores na moral e na operacionalidade dos guerrilheiros anticoloniais, transformou-se num dos mais desmoralizadores insucessos do exército colonial português, com enorme impacto psicológico negativo na convicção de combate do exército colonial.
Por razões diversas mas confluentes, este episódio marcante da guerra colonial e as suas sequelas, do ponto de vista psicológico e simbólico, nunca teve tratamento adequado quer da parte da literatura portuguesa sobre a guerra colonial (nomeadamente na componente historiográfica) como da bibliografia do PAIGC ou a ele afecta. Do lado português, entende-se que uma derrota com aquela dimensão e aqueles contornos seja difícil de digerir, embora as vitórias e as derrotas devessem ter o mesmo peso analítico e factual no tratamento histórico do passado colonial feito guerra de conservação do império. O silêncio e pudor do PAIGC perante os acontecimentos é mais difícil de entender, a não ser pela dificuldade de admissão das divisões internas que o precederam e pela forma bárbara como as execuções dos militares portugueses e dos seus colaboradores guineenses, para mais desarmados, tiveram lugar.
Entre a pouca bibliografia disponível sobre o episódio, conta-se o relatório militar (classificado, na altura, como “secreto”) feito pelo oficial que comandou a operação de recuperação dos corpos (aqui editado) e de que se transcreve uma parte:
«Como se verifica pelo croqui do local (…) os corpos foram encontrados em dois grupos distintos. Num, os Excelentíssimos Majores Passos Ramos, Osório e os nativos Aliu Sissé e Patrão da Costa. No outro, o Excelentíssimo Major Pereira da Silva e o Senhor Alferes Mosca. O nativo Lamine parece não fazer parte de nenhum dos grupos.
Todos os corpos se encontravam de costas (face voltada para o céu) e estendidos, com excepção do nativo Lamine que se encontrava de bruços e enrolado sobre ele mesmo. Os Excelentíssimos Majores Passos Ramos, Osório e Pereira da Silva, Sr Alferes Mosca e o nativo Patrão da Costa apresentavam o aspecto de não se terem apercebido de nada de anormal até ao momento de serem assassinados. O nativo Aliu Sissé apresentava um aspecto misto de terror e assombro, como se uns momentos antes de ser assassinado tivesse visto alguém que era seu inimigo e perigoso.
O nativo Lamine deve ter-se apercebido de que algo de anormal se ia passar pois deve ter fugido para debaixo de uma viatura, onde foi morto. A viatura apresenta diversos impactos. Nesse lugar foi depois mutilado.
As viaturas já se encontravam na posição em que foram encontradas pois uma delas (dois pneus furados) dificilmente se deslocaria sem deixar qualquer marca e estas não existiam.
Não foram vistos sinais de luta. Com excepção do nativo Lamine e do Excelentíssimo Major Passos Ramos, desconhece-se como foi morto, se com um tiro que lhe arrancou a parte posterior do crânio, se com uma catanada que lhe separaria a mesma região. Neste caso, a sua morte levaria mais tempo e o seu aspecto seria de mais sofrimento.
Julga-se também que todos foram assassinados no local em que se encontravam devido ao sangue existente no chão.A não existência de sinais de luta e de nenhum, com excepção do nativo Lamine, ter tentado fugir leva a supor que não teriam sido mortos pelas pessoas com quem possivelmente conversavam.
O grupo assassino deve ter surgido de repente e assim se explicaria o aspecto do Aliu Sissé e a fuga do Lamine. Provavelmente retirou na direcção ESE.
Desconhece-se se houve outros mortos. A havê-los foram levados do local. Calcula-se que o morticínio bárbaro e inqualificável se tenha dado cerca das 16h00 do dia 20.»
(*) Os oficiais do exército colonial Major Raul Ernesto Mesquita Costa Passos Ramos, Major Alberto Fernão Magalhães Osório, Major Joaquim Pereira da Silva e Alferes Miliciano Joaquim João Almeida Mosca, os guineenses colaboracionistas Mamadu Lamine Djuare, Aliu Sissé e Patrão da Costa.
Imagem: Foto de 1974, quando as forças do PAIGC tomam conta do Pelundo, unidade mais próxima e com o comando militar português sobre o local dos acontecimentos de 1970, consumando a descolonização da Guiné
(Publicado originalmente no blogue Água Lisa.)
Biografia de João Tunes.
Sexta-feira, 24.Abr.2009 at 07:04:33
A morte dos três majores e seus colaboracionistas não deve ser motivo de alegria para ninguém mas convenhamos que eles não foram propriamente para uma festa. Eles não eram anjinhos inocentes apanhados numa situação inevitável em que nada podiam fazer. Pelo contrário, faziam parte dum regime colonialista e pretendiam aliciar dirigentes do partido a trair a luta. Numa situação de guerra eles deviam saber o preço que isto custaria. O que eu ouvi da boca dos dirigentes do PAIGC (eu fui militante desse partido)é que André Gomes, o homem a quem Cabral ordenou capturar esses três majores, deu ordem de prisão mas esses oficiais recusaram obedecer e por isso foram executados. Se tudo aconteceu desse jeito, não se pode dizer que foram assassinados a sangue frio. Eu não quero saber de moralismos porque aqueles que querem defender os seus interesses acham que estão no lado do “BEM”. Os factos são os seguintes: Havia uma guerra para acabar com o colonialismo e esses três majores do lado colonial. Não só estavam do lado colonial como procuravam aliciar dirigentes para a traição. Ainda por cima recusaram a ordem de prisão. O que devia o André Gomes fazer? Devia oferecer-lhes ramalhetes de flores?
Domingo, 31.Maio.2009 at 06:05:35
É facílimo capturar 7 pessoas desarmadas! Entre a captura “à mão” e fazer as 7 pessoas em “picadinho” à catanada, mutilando os cadáveres não tem compreensão possível! O militante do PAIGC vem aqui defender que a alternativa à prisão é a trucidação! Nem mais! Se um polícia embirra comigo na rua e me quer prender, eu o mando ganhar juízo, ele a seguir, está moralmente autorizado a fazer-me em picadinho? Estes moralistas, defensores dos direitos humanos de meia tigela…
Domingo, 31.Maio.2009 at 09:05:06
Não pretendi fazer um juízo moral sobre os acontecimentos, nomeadamente sobre a forma como foram cometidas as execuções. Embora elas choquem inevitavelmente. Para fazer tal juízo, teria de ir até ao contexto e ter em conta, pelo menos, o que aconteceu, por regra, aos prisioneiros do PAIGC que terminaram, na maior parte dos casos, nas mãos da PIDE. Mas não pretendi nem pretendo ir por aí. O que me interessou foi assinalar o impacto pretendido e frustado (e que podia ter um peso importantíssimo no evoluir da guerra colonial na Guiné) e o impacto de facto resultante do massacre no moral das forças coloniais. A “reviravolta” foi um trunfo do PAIGC e um desaire para Spínola e o seu Estado Maior.