Oito de Setembro de 1969. Dez e vinte da manhã. Um conhecido oposicionista pega no telefone e marca um número.
A alguns quilómetros dali, na sede da PIDE, um zeloso funcionário escreve:
«Ligou para o 769594 e falou com um indivíduo que tratou por Doutor.»
Mais tarde, ao passar a informação à máquina, em papel encabeçado pelos dizeres PIDE/Serviços de Segurança – Secção Central (C.I.3), com a menção «Secreto» bem visível, acrescentará um novo dado: «769594 – Fundação Calouste Gulbenkian – Av. Berna – Museu – Lisboa.»
Sem o saber, o autor do telefonema lançara a polícia política numa nova pista.
A facilidade de reconhecimento imediato do número para que o telefone sob escuta ligava, aliada à naturalidade com que muitos opositores usavam o telefone, revelava-se um verdadeiro maná para os agentes policiais: não apenas identificavam, de imediato, os telefones com que directamente contactavam, como aqueles que pediam ou davam nas suas chamadas. Um exemplo:
«Do escritório de X, o Y entrou em contacto com Z, a quem pediu o número de W», lê-se num relatório de escuta. Em baixo, o telefone, identificação e morada de W.
Numa entrevista para a série da RTP «Geração de 60», o ex-inspector Álvaro Pereira de Carvalho deu um exemplo da importância da conjugação da escuta com a violação de correspondência, também praticada pela PIDE: numa carta para a família, um jovem oposicionista, radicado em França, anunciava aos pais o seu regresso a Portugal. Suspeitando das suas razões, a PIDE pôs-lhe o telefone sob escuta. Os contactos feitos, as conversas tidas, permitiram à polícia desarticular o grupo a que pertencia.
Depois de tentativas artesanais de escuta, fora Barbieri Cardoso que, usando as suas boas relações com os serviços secretos franceses, conseguira o fornecimento de 45 unidades de escuta que permitiam à polícia uma nova eficiência: assim que o telefone escutado ligava para outro, o sistema – montado no 4º andar do edifício da sede da PIDE, na R. António Maria Cardoso – registava o número marcado, começando um gravador a rodar no momento em que era levantado o auscultador. Evitava-se, assim, a baixa de tensão sentida nas escutas artesanais, alertando para a entrada de outro aparelho no circuito.
A escuta era previamente comunicada ao Correio-Mor dos CTT (Correios e Telecomunicações) e, segundo Pereira de Carvalho [1], «só com a autorização deste é que a central telefónica podia fazer a ligação do telefone posto em escuta na central com a polícia».
Algumas centenas de metros, apenas, separavam a sede da PIDE e a estação dos TLP na Trindade. Em Lisboa, as ligações foram desfeitas em 26/27 de Abril de 1974, pelo corte do cabo co-axial. Mas, segundo o relatório da Comissão de Inquérito às Escutas Telefónicas, «os cabos que serviam para escuta telefónica não foram retirados», permitindo que, mais de dois anos passados sobre o 25 de Abril, alguém recebesse um telefonema de um trabalhador dessa estação, avisando da escuta aplicada no seu telefone.
Segundo o mesmo relatório, a 25 de Abril de 1974, a PIDE/DGS «dispunha de uma capacidade máxima de escuta simultânea de 56 telefones, em Lisboa, e de 8, no Porto» [2].
Alguns telefones estavam sob escuta 24 horas por dia, sendo gravadas todas as comunicações de ou para esse número. Outros eram escutados de quando em vez, em busca de algo que indiciasse uma «conspiração» em marcha. Quase todas as conversas eram reduzidas a escrito e levadas à observação dos responsáveis da polícia política. Durante algum tempo, Pereira de Carvalho recebia apenas relatórios de escuta pré-seleccionados por um inspector, mas em breve passou a receber todos, alegadamente por se ter apercebido de «um uso indevido do conhecimento que decorria do que nessas conversas telefónicas era dito e não tinha interesse policial» [3].
Na mesma entrevista, o ex-inspector garante nunca ter consentido que fossem feitas cópias dessas escutas, arquivadas em cofre de aço na própria divisão onde eram gravadas:
«Vinham directamente da divisão onde estava instalada a aparelhagem – e era feita a escuta e passada à máquina – para a minha mão. Eu seleccionava as que tinham interesse para dar conhecimento ao Barbieri (Cardoso), que devolvia sempre os relatórios para serem arquivados. Por vezes, o major Silva Pais, que não tinha tempo de ler tudo ali, metia-os numa pasta e trazia-os no dia seguinte.» [4]
Pereira de Carvalho recusa que essas escutas tenham sido usadas como forma de atingir o opositor pelo uso das informações privadas recolhidas:
«A escuta não tinha esse fim, pelo menos em minha opinião. A polícia apenas tinha de assegurar que ele (o escutado) não fizesse actos concretos que pusessem em perigo a estabilidade do regime.» Segundo Pereira de Carvalho, só estava em causa «a acção concreta de conspiração – e, desde o momento em que não houvesse conspiração, era matéria de arquivo, de conhecimento, mais nada.» [5]
Uma posição difícil de acreditar, quando as próprias regras da polícia ditavam o contrário. Na verdade, da escuta deviam ser extraídos os elementos considerados de interesse para a ficha «Elementos informativos sobre indivíduos em escuta», de que Nuno Vasco, no seu livro Vigiados e perseguidos / Documentos secretos da PIDE/DGS, divulgou o formulário:
«Informação biográfica. Nome, pseudónimos, nascimento (lugar e data), filiação, nacionalidade, cônjuge, filhos, outros parentes, religião, habilitações, idiomas, profissão, serviço militar, detenções, descrição física.
Informação pessoal e particular. Endereços das residências, endereços dos escritórios, bens móveis e imóveis, criados, restaurantes, barbeiro, cabeleireira, alfaiate, modista, médico, lojas, igrejas, desportos, teatros, cinemas, clubes, ares, férias, passatempos, amantes, amigos pessoais, visitas, sistema de transporte.
Informação política. Filiação partidária, grau de convicções políticas, sociedades ou associações a que pertence, outras informações políticas.
Emprego. Posição que ocupa, ordenado e bónus, outros rendimentos, viagens profissionais, número de telefone, reputação profissional, outras informações relativas ao emprego.
Informação de controle. Dificuldades com a família, dificuldades no emprego, bens que aprecia mais, aceitação de espórtulas, informação que poderá ser usada como chantagem, idem para assustar ou deprimir.»
Assim, podem surgir nos relatórios de escuta de um opositor a «cunha» para empregar o filho de um antifascista – nesse tempo em que a apreciação política condicionava a possibilidade de obtê-los -, a apreciação sobre um programa de televisão ou um artigo de jornal, um telegrama de parabéns ditado por telefone ou a simples reserva de bilhetes num cinema. Informações difíceis de relacionar com «a acção concreta de conspiração».
[1] Entrevista a Diana Andringa para “Geração de 60”, 1990.
[2] In Vasco, Nuno, Vigiados e Perseguidos, Documentos secretos da PIDE/DGS, Realidade e Denúncia, Livraria Bertrand, Lisboa, 1977.
[3] Entrevista a Diana Andringa para “Geração de 60”, 1990.
[4] Idem.
[5] Ibidem.
(Publicado no nº 22 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo , coordenada por António Simões do Paço.)
Segunda-feira, 06.Abr.2009 at 10:04:11
É a primeira vez que leio uma referência a escutas artesanais feitas pela polícia política.A investigação publicada mais recentemente situa o início dessas escutas num período já tardio – anos 60. Não tendo trabalhado sobre o arquivo da PIDE mas sim o da censura encontrei para os anos 30 um documento cujo teor algo ambíguo parecia apontar para a existência dessas escutas. Faço referência a esse documento no meu livro Os Militares e a Censura.Pelo que conhece julga admissível a existência de escutas ainda que não sistemáticas nos anos 30 em Portugal ? Tem informação sobre esse tipo de escutas noutros regimes totalitários nesse período? Joaquim Cardoso Gomes
Quinta-feira, 09.Abr.2009 at 04:04:00
A minha referência baseia-se em declarações feitas pelo ex-inspector Álvaro Pereira de Carvalho, em entrevista gravada para a série “Geração de 60”. APC afirma: “Tenho conhecimento de que, antes de mim, foram tentadas formas de escuta telefónica artesanal”, descrevendo depois maneiras “improvisadas” de fazer escuta.
Segunda-feira, 27.Abr.2009 at 11:04:53
Mais um interessante trabalho para conhecimento desta nossa recente história. Claro que quando penso no que vai acontecer ao edifício da Rua António Maria Cardoso, onde tudo isto devia estar como depoimento dessa época em Museu, fico consternda. Só o nome da rua nos fazia estremecer
Obrigada Diana por este trabalho. MV
Sábado, 27.Mar.2010 at 12:03:20
sei que todos governos do mundo teem uma pide com esse nome ou outro seja o pais democratico ou nao todos os paises do mundo teem uma policia seja qualquer o nome que lhe queiram dar agora nao o porque que tanto falam na pide eu vivi em portugal até os 22 anos a pide nunca me fez mal algum e vim para o brasil legalmente porque eu servi fiz a recruta no cica 4 em coimbra quartel ruim ali eu quase fugi era muita fome mas depois fui para ri 6 no porto melhorou muito aí eu tirei essa ideia da cabeça depois fui para o ral1 que hoje se chama de ralis nao sei o porque mas essas crianças do 25 de abril junto com as raposas velhas ainda alguns vivos todos eles traidores menos 1 ou 2 sempre fui contra o 25 de abril só nao sou contra ao sr ramalho esse homem evitou uma guerra civil que todo mundo queria mandar mas como estava falando claro acabei indo para o ultramar angola fiquei quase 3 anos e sai de lá com a guerra ganha nao ofender ninguem mas que ouve passos mal dados isso ouve e queriam acabar com a pide e fizeram lógo o copocon o sr otelo e vasco lourenço só fizeram asneiras e fui minha openiao ok e fui abraços