Um desencanto suficiente que desemboque na ruptura com a militância partidária implica uma conjugação de circunstâncias, evidências e sentimentos, uma espécie de drop point, que encadeie a capacidade de romper e fazer o luto. É como nos divórcios, poucos serão aqueles que são decididos na primeira constatação da falta de sentido de uma co-habitação. A decisão de «cada um ir às suas», quantas vezes aparece sobre um motivo aparentemente irrelevante mas que é a gota de água que transborda o copo, aparece como momento da necessidade inevitável de lucidez. E surge na altura, naquela altura, muitas vezes a do tal pretexto menor, porque se consegue então a margem racional para constatar o óbvio que não se viu nos momentos de paz, mais ou menos tranquila, com o desacerto.
A vida num partido comunista, se a militância for séria e a sério, é uma espécie de vida substituta. Ali estão os nossos ideais, ali está o nosso sentido de servir, ali estão os melhores, os nossos amigos e os nossos heróis, ali estão os amanhãs que merecem tudo para se negar e compensar o que hoje nos desgosta enquanto ser social. Ali está o vermelho que ilumina os cinzentos da nossa impotência da sensação de pequenez face às forças que nos trituram e trituram os outros. Aquele universo dá-nos a grandeza de sermos camaradas no Nós. Cada um é herói na sua dimensão de dar, ser e fazer, em osmose com os melhores, os mais valiosos, os mais talentosos, os mais capazes. «Eu limito-me a cobrar cotas» mas sou tanto como o herói que sofreu torturas e não falou. «Eu sirvo no bar de um Centro de Trabalho», mas sou tanto como o camarada que saltou as muralhas do Forte de Peniche. «Eu vou levantar o punho na manifestação», mas sou tanto como o Camarada que fala na Televisão ou lidera o grupo parlamentar. «Eu vou fazer claque para apoiar o último livro do camarada Saramago (Nobel!)» e sendo seu camarada, sinto que poderia escrever os livros que ele escreve, ou que os livros dele têm um parágrafo que podia ser meu. «Eu levanto o punho quando se evoca Cunhal» e sou igual a ele pois Ele é dos meus, pertence-me embora seja eu que pertença à sua memória exemplar, genial, heróica, inimitável, única.
Na minha geração, muitos entraram no comunismo porque era a única forma eficaz de se lutar contra o fascismo. A luta era com eles, eles eram a luta. O fascismo português construiu a dimensão que o comunismo teve e tem em Portugal. E se aqui ficou plantada uma das últimas e mais persistentes abencerragens do estalinismo serôdio, isso deve-se ao reflexo do irredentismo provocado pela rejeição ao bolorento salazarismo e de o PCP ter encontrado, em Cunhal, o génio capaz de construir um partido estalinista na última fase do estalinismo real, consolidando um partido reverente e dependente para com um centro estrangeiro mas com uma idiossincrasia nacional, mostrando ora uma ora outra, enquanto internacionalista ou como patriótico, contornando as colisões da contradição. E, talvez, ao facto de em Portugal, estarmos habituados a adoptarmos as modas que já estão caducas onde elas foram lançadas, pela rotina acumulada de sermos um país onde as novidades e a modernidade sempre chegam tarde.
O militante comunista é treinado, mesmo os que não foram a treinos, a criar mecanismos de defesa das contaminações que perturbem a pax interna. Porque, lá, aprende-se cedo que o inimigo está fora mas também dentro, e sempre à espreita. Confiamos nos nossos dirigentes para separarem, por nós e em nosso nome, o trigo do joio. Dizemos «o partido» para dizermos que o nosso é único e que dele somos parte mas sabendo que tem um núcleo, o dos melhores, o que decide, e que questionar o núcleo ou as suas decisões é cindir o que deve ser único tendo o monólito como símbolo. Damos a confiança absoluta ao Comité Central e ao Secretário-Geral, os tecelões da «linha», os emissores das «orientações», mas se perdermos essa confiança, e discordar é isso, ultrapassámos um risco de demarcação sem retorno, passou-se para o lado de fora do partido, de uma forma não explícita mas radical e instantânea, deixámos de ser um camarada entre camaradas.
Romper com o PCP, para um militante comunista, é um acto doloroso, muito doloroso. Não em termos políticos. Isso é o mais fácil, motivos não faltam, ali e em qualquer parte. Mas romper significa perder amigos, perder olhares cúmplices, perder as bússolas que nos orientam as leituras, os olhares e as opiniões, é passar a viver com a sensação de inutilidade dos melhores anos da nossa vida, habitar uma terrível sensação de termos sido demasiado estúpidos durante demasiado tempo. É experimentar a perplexidade do absurdo. É sentir que somos uma árvore com as raízes de fora da terra. E conseguir viver com isso. E ser capaz de fazer o luto. Porque é um drama incontornável. E cada um, humanamente, procura fugir das dores dos dramas. E das trevas. E da solidão. Continuar um jogo em que nunca aprendemos a jogar sozinhos. E que não se pode jogar sozinho. Cada comunista dissidente tem a sua história própria, específica e irreproduzível. Porque a dissidência é o momento em que o Eu se confronta com o Nós. E essa especificidade, essa capacidade ou essa incapacidade, é pessoal e intransmissível, comportando uma carga emocional elevada. Cada um tem, ou nunca chega a ter, o seu direito específico, pessoal e intransmissível, à eclosão das circunstâncias em que o abuso e o absurdo da estupidez estalinista cria repulsa suficiente para não se conseguir viver com ela e ela é mais forte que a dor de ruptura de uma pertença.
Biografia de João Tunes.
Segunda-feira, 02.Mar.2009 at 01:03:03
Curiosamente momentos antes deste “post” ter sido publicado eu tinha acabado de ler no Arrastão o “post” do Daniel Oliveira «10 anos depois, na primeira pessoa». E aquilo que me espantou foi a complementaridade dos dois “posts” (e, ainda, de alguns dos comentários feitos ao do DO)! O testemunho pessoal do Daniel Oliveira é bem um desenvolvimento vivo do que o João Tunes acabou de aqui publicar!
Segunda-feira, 02.Mar.2009 at 04:03:30
Curiosidade, pois sim. Mas fruto de mera coincidência, Jorge Conceição (pois desconhecia em absoluto a edição do texto trazido á colação). Este texto (agora reescrito) teve antes mais de quatro anos de apodrecimento no meu blogue. E eu, parafraseando o Silva do PS, sou um pigmeu ao pé do Daniel Oliveira.
Segunda-feira, 02.Mar.2009 at 05:03:17
Pigmeu? Essa é que era boa, João…
Segunda-feira, 02.Mar.2009 at 07:03:43
Embora não o conheça para além dos seus escritos, estes afiançam-me que a Joana é que terá razão: pigmeu? Ora, ora…
Segunda-feira, 02.Mar.2009 at 08:03:27
João Tunes
Grande, belo e muito bom texto. Penso porém que, ao contrário do que parece, há mais diferenças do que semelhanças nos percursos aqui comparados e sobretudo nas espectivas consequências e conclusões. Embora não queira fazer juízos de valor, identifico-me apenas com o seu, porque considero que é precisamente na ausência de substitutos (muitas vzes, apenas mais do mesmo) que está a chave. Ter a coragem da não pertença é, na minha opinião, a atitude que me atrai, pois possibilita a aproximação à liberdade e é, segundo me parece, a mais consequente.
Terça-feira, 03.Mar.2009 at 12:03:23
Não sei se a Irene Pimentel, no seu comentário, se rferia ao meu. Não foi intensão minha, no meu comentário, referir semelhanças entre os dois testemunhos, mas complementaridade, uma vez que, perante o desencanto (ou discordâncias) que ambos tiveram, chegando mesmo nos dois casos a serem tomadas as decisões de não voltarem a enquadrar-se em partidos (subentendendo-se: que lhes tolhessem o pensamento e as opções de prática política), a verdade é que os rumos acabaram por ser diferentes e isso, quanto a mim, alarga o leque das possibilidades consequentes dos espíritos que se quizeram livres e conscientes. Daí a complementaridade. Talvez não esgote todas as saídas possíveis. Parece-me no entanto que estas seriam as de maior coerência. E não me parece que, no caso de Daniel Oliveira, a sua posterior militância se deva a um sentimento insustentável de orfandade. Eu não o conheço minimamente. Mas através do seu testemunho parece-me que aí terá actuado mais um impulso de doação a causa pública (através do meio que lhe surgiu), do que por um sentimento de isolamento.
Outra saída possível para situações de rotura (que não de desencanto ou de discordância política), que envolverá eventualmente sentimentos de orfandade, foi, com surpresa minha, a que envolveu pessoas de espírito ferozmente militante que ingressaram num partido sem militância aparente, como deverá ser maioritariamente o caso do PS. (Soube-o agora ao tomar conhecimento dos nomes que compunham as listas postas à votação no Congresso do PS para os seus orgãos políticos; foi uma triste surpresa; a Joana saberá a quem me refiro).
(Uma observação, de passagem, à Irene Pimentel: embora não querendo fazer juízos de valor, acho que acabou por os fazer, não terá sido?)
Quanto ao texto do João Tunes ele é, mais ainda que belo, duma profundidade e de uma contida amargura espantosas. Gostei imenso dele. E gostei também do depoimento do Daniel Oliveira, pela franqueza com que foi feito e pela esperança que dele irradia. Repito: eu vejo complementaridade nestes testemunhos. E isso agrada-me muito.
Até porque muitos de nós, de uma maneira ou de outra, passàmos por situações semelhantes, mas com saídas que não são sempre iguais.
Terça-feira, 03.Mar.2009 at 01:03:38
Já que o Jorge citou o meu nome, vamos a isto.
Já disse hoje no Brumas, a propósito deste post do João Tunes qual o meu posicionamento em termos pessoais.
http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/2009/03/que-esperar-nao-e-saber.html
Ou seja: não pertenço a nenhum partido (ou igreja) há muitos anos, nem me imagino voltando a pertencer. Mas não condeno, antes pelo contrário, quem tenha feito ou venha a fazer percursos diferentes.
O Jorge fala de militantes passados (assumo que do tempo da fascismo) que hoje estão nos órgãos directivos do PS e diz que eu devo saber a quem se refere. Não, Jorge, não sei, não ouvi nem um nome – simplesmente porque pouco me interessei por aquela assembleia glorificadora, para além do discurso de abertura e do «suspense» quanto ao anúncio do 1º nome da lista para as eleições europeias – escolha «excelente» para mim porque sou eleitora do Bloco. Mas é verdade que quase todos os meus antigos «compagnos de route» estão hoje no PS, mais ou menos activamente, ou são, pelo menos, seus eleitores – em nome da «real politik» ou pura e simplesmente por ódios de estimação ao PC e ao Bloco. Mas não desanime porque há sempre novos «compagnons» para novas estradas – tenho passado a vida em renovações dessas….
Terça-feira, 03.Mar.2009 at 02:03:29
Pigmeu??? Ora essa!!! Pelo contrário. E juro que não sou modesto. Belíssimo texto. Um fim diferente do meu, mas gostei muito de ler e revejo-me em muitas coisas.