Aquela sala de interrogatório onde me encontrava, na Sede da PIDE, era pequena.
Só tinha a secretária, num canto, com duas cadeiras. Numa, sentei-me eu. Na outra, sentavam-se eles, para interrogar. E, nos intervalos, de horas, ou de dias e noites, sentavam-se elas, para vigiar. Isto é, assegurar que não fechávamos os olhos – com pancadas dos nós dos dedos ou das palmas das mãos no tampo da secretária; com o tamborilar das pontas dos dedos; com o bater forte e ritmado dos saltos dos sapatos, no soalho. Nem pestanejar se podia.
Logo na terceira noite sem dormir, tiraram-me a cadeira. Para eu ficar de pé. Disseram que eu estava a cabecear de sono. (E estava.)
Agora, era-me impossível permanecer assim imobilizada, encostada à parede. Já sentia os pés um bocado inchados.
Comecei então a andar, a contar passos na diagonal: eram quatro.
Pouco tempo depois, eu tinha descoberto um esquema divino. Andava lentamente na diagonal da sala, entre a secretária e o canto oposto. De olhos bem abertos, quando ia em direcção à «pide» – que garantia zelosamente o cumprimento da tortura – mas adormecendo logo que lhe virava as costas, enquanto caminhava cinco segundos no sentido contrário. Juro que dormia de facto, e que acordava no momento certo de dar a volta.
Lembro-me de sentir, de pensar que daria um ano de vida por cada cinco segundos daqueles. Assim mesmo: troca por troca. Nesse estado de delírio, nem nos ocorria se haveria um interlocutor para fechar um tal negócio. Cinco segundos.
Ela deu por isso, chegou-se à porta, fez um aceno e aí foi outra história: entraram na sala aos montes, em catadupas, as bestas. Com os estalos e murros na cabeça e nos braços, despertei. E voltaram a dar-me a cadeira.
Depois, quando disse que queria ir à casa de banho, olhei para o espelho e não me reconheci. Não que estivesse ferida, sangrando. Não estava. Mas parecia uma velha, cara ossuda, cheia de rugas e, nunca soube porquê (dos olhos raiados de sangue?), estranhamente vermelha.
Ainda não tinha mergulhado nas alucinações. Só na noite seguinte.
(In Saudações, Flausinas, Moedas e Simones, Campo das Letras, 2006)
Quarta-feira, 11.Fev.2009 at 01:02:08
Foram tempos muito difíceis…..
Eu por estas não passei, mas houve muitos sustos e aflições!
Abençoado 25 de Abril!
Gostei da história, e… fico à espera da próxima.
Bjnhs
Quarta-feira, 11.Fev.2009 at 02:02:59
Conheço a história mas é bom que as vás publicando. Aguardo a próxima. Bjinho
Quinta-feira, 12.Fev.2009 at 10:02:15
Pois foram, pois foram! Tempos difíceis, sustos, aflições… e uma profunda certeza que queríamos ter: isto um dia há-de acabar! Aquilo, o fascismo que afinal agora tem outro nome, não podia durar sempre. E tivemos o privilégio de participar de corpo inteiro no 25 de Abril!Faço um apelo aos outros e a mim própria: contemos mais histórias destas, para partilhar memórias recentes e já tão perdidas no tempo. Um abraço a tod@s
Domingo, 15.Fev.2009 at 10:02:52
importante testemunho, Helena. Pode ajudar-nos a tentar perceber como sobreviver, em situações limite.
Segunda-feira, 16.Fev.2009 at 02:02:19
Helena Cabeçadas:
Lembrava-me, então, de ter lido no folheto “Se fores preso camarada” que, em última análise, havia que provocar-lhes a pancada, a violência física. Porque, lia-se, se reagia perdendo o sono e com um ódio bloquedor da “confissão”. Não sei se terá sido por isso, mas após esta cena, senti de facto que perdera o medo de “falar”…
Terça-feira, 17.Fev.2009 at 12:02:52
Felizmente há quem saiba deixar estas coisas bem descritas, estas tão decisivas “insignificâncias”…
Precioso!