Não tenho dúvidas acerca da data: 17 de Novembro. Além de não ser normal as pessoas esquecerem-se do dia em que saem da prisão, após quase seis meses de regime de isolamento, a verdade é que foi uma data duplamente memorizada porque o meu primeiro filho, à laia de comemoração, exactamente no mesmo dia, três anos depois, saiu de dentro de mim.
Mas já lá vão tantos anos que não consigo lembrar-me da explicação para não ter um tostão comigo quando, nesse dia, recuperei a liberdade.
Porque terá sido? Ficava sempre depositado pela família, na secretaria da cadeia, algum dinheiro, até para se poder comprar cigarros, papel de carta e selos, por exemplo. Porque me encontrei então na rua, subitamente, sem um centavo?
O que me ocorre agora parece-me óbvio e, no contexto, lógico: eles ter-me-ão dado ordem de saída, após o interrogatório daquele dia, na Rua António Maria Cardoso. Devem-me ter perguntado se queria ir à prisão buscar as minhas coisas, e eu: «Não, não, eu vou lá amanhã de carro…». E ala, pus-me a andar que o desejo de respirar Liberdade já não podia ser sustido e adiado.
Além disso, aquele discurso final do Sachetti (inspector) – «vencidos, mas não convencidos» – deixou-me seguramente com pouca vontade de reentrar numa carrinha deles e rumar de novo a Caxias.
Lembro-me de descer aquelas medonhas escadas e, com a porta pelas costas, nem olhar para trás, acelerar o passo, em direcção ao Chiado.
Foi assim que num fim de tarde muito fria fui parar à Brasileira, ao fundo da rua, com a intenção de telefonar à minha família para me virem buscar.
Só então me dei conta de que, não tendo dinheiro, estava impossibilitada de o fazer. Nem pelo telefone do balcão, nem na cabine telefónica.
O aspecto com que me apresentava estava longe de ser o adequado, quer para entrar na Brasileira, quer para aquela época do ano, mas isso, paciência! Tinha saído da cadeia de Caxias, pela manhã, apenas com uma preocupação no que dizia respeito à roupa e ao calçado: que fossem cómodos para mais uma «batalha campal». Pouco agasalhada e, claro, sem carteira ou um saco. Nada nas mãos. Como sempre, nas idas a interrogatório, levava apenas um maço de cigarros e fósforos.
Parei junto à entrada do café e verifiquei, pessoa a pessoa, se não haveria pelo menos um conhecido a quem pedir emprestada uma moedinha para ligar para casa. Ninguém.
Naquela época, os cafés – sobretudo os da Baixa – a qualquer hora do dia, atafulhavam de homens, e raras eram as mulheres por ali sentadas.
A Brasileira não se afastava muito desse figurino. Lá dentro, aqueles velhos do costume, uns republicanos, ou lá o que eram, e outros, escritores e artistas herdeiros dos modernistas que ali se reuniam diariamente, em tertúlias. Olhavam-me sempre do mesmo modo. Como se, nesse precisos momento, eu não devesse estar ali, mas sim num outro sítio, escolhido por eles e, porventura, com eles. Nas poucas ocasiões em que havia transposto aquela porta, sentira-me como mais uma mulher e isso irritava-me.
Dos meus amigos, havia alguns que às vezes passavam pela Brasileira àquela hora, mas, nesse dia, nem um. Fui ficando à porta, ansiando pela chegada de alguém ou por uma ideia que me resolvesse a situação. Se fosse no Café Londres, conhecia bem os empregados, mas como nunca me habituara ao ambiente da Brasileira, raramente me sentava por ali. Não era aí conhecida – pensava eu.
Depois de muito esperar – a fome e o frio já me impacientavam – enchi-me de coragem e decidi pôr em prática um plano entretanto arquitectado, de que me envergonhava um pouco, diga-se. Mas não havia alternativa, estava visto.
Dirigi-me então a uma mesa, sentei-me, chamei um empregado que me fez um vago sorriso, e pedi-lhe um bife e uma imperial.
Sensação única.
Tudo me parecia irreal. O bife era, desde Junho, a minha primeira refeição que tinha cheiro à comida das nossas casas; o prato era em loiça e o copo em vidro – estranha vivência. E, supremo luxo, um objecto que desde há meio ano eu não via: uma faca.
Só o «bru-á-á» que me envolvia perturbava a minha entrada no paraíso. Incomodava-me mesmo porque aqueles meses de isolamento, e tudo o resto, tinham-me deixado uma certa vulnerabilidade a barulhos. Ao primeiro gole de cerveja, receei não vir a ter sequer energia para levar a cabo a minha estratégia. O álcool não entrava na cadeia, obviamente, e eu fiquei logo «zonza». Poucos minutos depois, tinha dado por terminada a minha refeição. Agora, era ir em frente.
Nesse momento, com pressa de ver a família, mas receosa da reacção do empregado, ainda hesitei.
Subitamente, passando à execução do meu plano, atirei-me: fiz-lhe um sinal, de longe, para que me trouxesse a conta. Ainda ele vinha a caminho, a aproximar-se já do canto da sala em que me encontrava, quando eu me pus de pé e, encenando uma expressão de grande aflição, lhe dirigi com a devida ênfase a «fala»: «Que horror, com tanto movimento neste café e eu, enquanto falava a uns amigos que estavam de saída, deixei despreocupadamente o porta-moedas sobre a mesa. Veja lá: roubaram-mo! O senhor faz-me um favor? Importa-se de ir ali comigo ao telefone, para eu ligar para casa e pedir que me venham trazer dinheiro? Tenho a certeza de que não demoram, vêm depressinha. E depois, quando eu lhe pagar a conta, pago também a chamada, está bem?»
O coitado só dizia: «Menina, ó menina…», mas eu queria acabar depressa com o discurso que tinha preparado e não o deixava falar.
Finalmente conseguiu: «Por amor de Deus, menina, ia agora deixá-la telefonar… Fica a dever e paga para a próxima. Ia lá telefonar para casa só para não ficar a dever! O pior foi ter ficado sem o porta-moedas… Ainda por cima, logo hoje que eu fiquei tão contente de a ver… já está cá fora connosco…».
E prosseguiu em voz baixa, curvando-se para ficar mais perto do meu ouvido: «Quando a vi à porta, até cometei com o meu colega: olha a menina que costumava vir cá com o senhor doutor A. e com a esposa, aquela menina que estava presa, já saiu… É que, há tempo, perguntei por si ao senhor doutor porque nunca mais a voltei a ver por aqui, e ele contou-me».
Tinha mesmo um ar de alegria, o velhote.
A seguir, inclinando-se ainda mais sobre mim, e mais sussurrante, acrescentou: «Se calhar, quem lhe roubou o porta-moedas foi um tipo dos deles que tem estado aí, na mesa ao lado. Um bufo… Cuidado, menina, eles continuam a estar muito por aí!».
Eu estava incapaz de reagir, perplexa com o que acabara de acontecer e, agora, ainda mais longe de resolver o meu problema do que uma hora atrás. Apesar disso, perdida de riso.
Porém, nem me passava pela cabeça dizer ao pobre homem que eu inventara aquela história, mesmo admitindo que se lhe dissesse a verdade seria, muito provavelmente, compreendida e desculpada, e teria a moedinha de que precisava.
Poderá haver mil e uma explicações para só então me ter ocorrido tomar um táxi para casa e pagar na chegada. Se não estivesse ninguém em casa, teria sempre os vizinhos, caramba…Mas, como se vê, não se saía de Caxias no pleno uso das nossas faculdades mentais.
(In Saudações, Flausinas, Moedas e Simones, Campo das Letras, 2006)
Segunda-feira, 02.Fev.2009 at 10:02:46
história deliciosa…
vou comprar o livro.
Segunda-feira, 02.Fev.2009 at 04:02:56
Pois é, é uma bela estória e bem contada e oxalá ajude muitos leitores a descobrirem o livro da Helena porque ele e ela bem merecem.
Segunda-feira, 02.Fev.2009 at 07:02:50
Lena,
Adorei reler a história do teu livro, que há muitos anos atrás me tinhas contado, mas que nem por isso deixa de ser significativa e muito gira.
Não posso deixar de recomendar este teu livro, que em muitas situações me deixou os olhos rasos…. e eu não sou chorona!
Bjnhs e parabéns!
Segunda-feira, 02.Fev.2009 at 10:02:12
Lena,
Mais uma vez… sem palavras! Adorei reler este episódio da tua vida. Tenho tantas saudades de te ver e ao reler isto só me ocorre a imagem de um grupo de jovens adolescentes de boca aberta incrédulos com o teu testemunho.
Para aqueles que estão a ler este episódio pela primeira vez… comprem o livro e deixem-se fascinar qual jovens adolescentes incrédulos, bebendo as palavras da viva de uma MULHER que marcou a nossa história.
Parabéns!
Segunda-feira, 02.Fev.2009 at 11:02:35
Parafraseando Brassens, é uma história que nos aquece o coração. Eram tão comoventes essas solidariedades inesperadas…
Quinta-feira, 05.Fev.2009 at 05:02:37
Para além da história em si mesma, o que mais me surpreendeu foi o registo anti-dramático em que é contada, pouco comum na sensibilidade portuguesa, particularmente no tratamento destas questões.
Por outro lado o apelido da autora traz-me à memória um companheiro que já não vejo há muito. O que é feito do Álvaro Pato?
nelson anjos
Quinta-feira, 05.Fev.2009 at 07:02:48
Este teu testemunho é daqueles que parecendo ser de pequenas coisas tem um valor inestimável. Leva-nos pelo caminho das emoções,com uma escrita cativante, a sentir, a perceber, a brutal realidade daquele tempo de ignomínia.
Mas tu eras fresca. E posso testemunhar que eles não te perseguiam por engano. Lembras-te que mal pus o pé em Lisboa e na Associação de Estudantes do IST comecei a dar uns desajeitados balbucios contra o nosso fascismo de sacristia logo me convidaste para ir até ali, a umas reuniões na vetusta Seara Nova?
Vá, toca a escrever mais uns livros que tens muito para contar.
Quinta-feira, 05.Fev.2009 at 08:02:11
Ah pois, Agora contas a tua saída com bastante humor! Mas a verdade é que percorreste a António Maria Cardoso sempre a olhar para trás, não fosse dar-se o caso de estares a ser vítima de mais uma das muitas alucinações que tiveste durante os interrogatórios, nessa mesma rua.
O livro, já o li e com muito agrado.
Como diz o R. Narciso eras fresca…, e eu que o diga!
Parabéns, beijinho.
Sexta-feira, 06.Fev.2009 at 08:02:04
Diana Andringa:
As solidariedades inesperadas eram comoventes, sim, como o são hoje. Que pena a solidariedade não ser o bem supremo ensinado nas escolas! Que, na nossa terrinha, estes tempos convidam ao safe-se quem puder…
Sexta-feira, 06.Fev.2009 at 08:02:52
Nelson Anjos
A última vez que vi o Alvaro Pato foi no lançamento do livro de onde foi tirada esta história. É meu primo, sim.
Quanto ao registo “anti- dramático”, fomos aprendendo a interessar os jovens pela memória do passado recente. Tal como lembra Sandra Pedra no seu comentário, ficam
Sexta-feira, 06.Fev.2009 at 08:02:57
Nelson Anjos:
(…) os jovens ficam de “boca aberta”, a ouvir quem lhas conte, esquecidos dos intervalos e das SMS para os amigos. É inesquecível a experiência…
Sexta-feira, 06.Fev.2009 at 08:02:25
Raimundo: Então não éramos mesmo frescos? Éramos e somos, por isso ainda aqui andamos nesta forma de “em forma”…
Sexta-feira, 06.Fev.2009 at 08:02:16
Sandra Pedra:
Saudades tenho eu de contar estas histórias aos putos, a convite teu, pelos 25 de Abril…Vivos diálogos, esses! Até baralharam resistentes com agentes, um dia… Lembras-te?
Sábado, 07.Fev.2009 at 09:02:06
Querida Lena, acabei de ler, fartei-me de rir e ir pensando, bolas(!)se fosse eu tinha ido direitinha à mesa dos habitués e contava-lhes o que se estava a passaaaar e se não fossem os primeiros, nem que corresse as mesas toooodinhas da brasileira alguem me havia de ajudar (!!)se mesmo assim não; sairia porta fora e gritava bem alto o que se estava a passar, e até ás tantas alguem me levava direitinha a casa, ingénua? creio que não e sabes pk? Sou eu nascida e criada com todo o V/ empenho, esforço, dedicação e tanto de tudo o mais!Habituada e instalada na solidariedade. Resta-me desejar-te continuação de tão Excelente trabalho!!!beijo enorme obrigada .
Sábado, 07.Fev.2009 at 11:02:08
Joana:
Não estás a ver! Uma jovem, nos anos 60, dirigindo-se a mesas de homens, num café? (Nos cafés só havia homens,…ou quase só).Impossível! Nessa altura, ainda nem tinha sido o Maio de 68…Mas felizes os jovens de hoje, confiantes como tu na solidariedade.
Domingo, 08.Fev.2009 at 07:02:28
Lena,
jeito não te falta, assunto também não: continua!
Foi um prazer voltar a ler a “historinha” da moeda…
Domingo, 08.Fev.2009 at 08:02:08
Jorge:
Uma das historinhas com moedas, a bem-humorada, que a outra a bater no panelão da sopa na Cadeia, foi pior…
Domingo, 08.Fev.2009 at 11:02:07
Pois é, cara Lena, reli o teu texto, e de novo com agrado. Essas solidariedades espontaneas, inesperadas, conhecemo-las bem, nós que vivemos esse tempo cúmplice e glorioso dos anos 60. Uma porta da rua que se abria, a meio da noite, para que nos escondessemos; o cobrador da Carris que, em plena Crise Académica de 62, não cobrava o bilhete de um estudante, o empregado de café que avisava da presença de bufos, o continuo do liceu que pedia boletins de voto para o Delgado, o vizinho que se recusa a abrir a porta aos agentes da PIDE, dando tempo a que tu tomes precauções. Há tantas histórias destas que fariam um livro delicioso, recheado de emoções!! E eramos todos frescos!
Domingo, 08.Fev.2009 at 11:02:12
Meto-me na conversa, Artur, para te lembrar que já te pedi que contasses aqui, tu também, algumas das muitas histórias por que passaste… Vá lá!
Abraço
Segunda-feira, 09.Fev.2009 at 01:02:48
A forma depurada como descreves uma situação tão intensa é o ingrediente que mais gosto da tua bonita história.
Que agradável surpresa!
Segunda-feira, 09.Fev.2009 at 01:02:16
Subscrevo o pedido da Joana ao Artur e aproveito para o estender a todos os leitores. Há tantas histórias para contar, histórias que davam livros e filmes, e que a maior parte das pessoas ignora. Se não as contarmos, não podemos queixar-nos dessa ignorância.
Segunda-feira, 09.Fev.2009 at 04:02:16
Artur:
Vá lá! Senta-te ao computador e vais vê-las a sair. Não custa nada. Para os nossos netos e para os bisnetos daqueles que nunca as puderam contar…. Vá lá!
Quarta-feira, 11.Fev.2009 at 12:02:36
Desculpem intrometer-me na vossa conversa familiar, mas reparei que a foto que ilustra o texto está invertida. Durante os anos de “exílio” em Lisboa frequentei a Brasileira do Chiado o tempo suficiente para poder garantir que os balcões estão situados à direita e os painéis de espelhos à esquerda. Eu sei que é um pequeno pormenor, mas são estes que vezes sem conta decidiram as grandes batalhas.
Quarta-feira, 11.Fev.2009 at 10:02:26
Jaime:
Eu dei logo por isso, mas como tive a impressão que se tratava de um pormenor que em nada colidia com a história, nada disse…Em todo o caso, é sempre bom ter por perto quem esteja atento aos pormenores. Um abraço
Helena
Quinta-feira, 12.Fev.2009 at 12:02:16
Helena
Que belo o teu texto. Senti ao lê-lo o perfume primaveril que trouxesta àquela sisuda Coimbra nos anos que por lá passaste, na primeira metade de 60. As conversas na associação, no jardim
Domingo, 15.Fev.2009 at 09:02:59
Diana Andringa fala em “solidariedades ignoradas” e, relendo os comentários a este post, lembrou-me que podia contar brevemente duas histórias que talvez mostrem, de maneiras diferentes, embora, estas solidariedades.
Havia em Caxias, durante alguns anos depois de 1959, um guarda prisional que era uma figura estranha. Estranha, talvez, para nós, as famílias dos presos, que gostavam de ver em todos os guardas prisionais inimigos, prolongamentos da mão dos pides, carrascos mesmo. Era um homem gordo, projectando uma grande barriga, esfera sob a qual mal se adivinhavam as pernas, tendo pescoço curto e uma cabeça com bochechas que caíam bem baixo e uns olhos grandes e líquidos, de uma humidade alegre, e esse guarda ia fazendo o seu convívio, de gordo, com todos os presos e as suas famílias. Nem sempre fácil, com a nossa antipatia pela sua situação de guarda, antipatia que ele parecia não notar.
Quando tomava um ar autoritário, emitia uma ordem, um comando, pouco lhe ligavam.
O homem gostava de ser útil, mas gostava de igual forma, ou mais, de fazer trocas e de receber um dinheiro, por pequeno que fosse. Uma lata de conservas por quaisquer vinte e cinco tostões, uma moeda ou uma nota curta por um recado. Parecia que, ali, mais do que guarda ele era um activo mercador que tudo queria vender ou trocar.
O meu irmão, Franco de Sousa, lá ia escrevendo as suas coisas, era escritor e estava escrevendo um romance, e este guarda, pelo que lembro, era-nos muito útil porque fazia de correio entre nós. Nesse quadro, dei-lhe uma vez 20$00, o que parece ter-lhe dado uma boa alegria. Em contrapartida, tinha eu o aborrecimento de ter de conversar com ele. E nunca deixava de falar da família, puxando por fotografias de filhos que eram a sua cara .
Enfim, um dia, o barbeiro de Caxias que era bufo reconheceu, nas pernas do guarda, umas calças que pertenciam a um preso. Uma das suas trocas, um dos seus negócios, e o bufo fez a denúncia. O homem foi levado à PIDE mas, pelo que me contou o meu irmão, não se descoseu e fez tantas confusões nos interrogatórios, que acabaram, tão só, por transferi-lo para outra prisão (de delito comum) ficando lá a trabalhar.
Já não vou a tempo, mas se o fosse desejar-lhe-ia muito bons negócios com aqueles novos fregueses.
Falei em duas histórias, mas conto apenas uma. O comentário vai longo. Contarei a outra numa nova oportunidade se a houver.
Helena Pato, eu fui colega de liceu do Alfredo Noales. Ele esteve entre os meus mais próximos e melhores amigos. Cheguei a passar uns dias de férias com ele nas Azenhas do Mar. Convivia com o pai no quadro dessa amizade. Gostaria bem que ele fosse recordado.
Domingo, 15.Fev.2009 at 10:02:54
bonita história, Helena…e essas solidariedades inesperadas, justamente porque inesperadas, são tanto mais comoventes.
Terça-feira, 17.Fev.2009 at 04:02:37
José Eduardo:
Pois é. O Alfredo Noales morreu com 36 anos: uma vida de combates diários contra o fascismo, passada também pelas prisões e no exílio. Um homem de raras qualidades morais e intelectuais que deixou inúmeros amigos. E, no entanto, nunca foi lembrado – uma palavra que fosse – no regime democrático. Que eu saiba, nem nas comemorações do Dia do Estudante…embora ele tenha sido fundador e o primeiro secretário geral da RIA (reunião inter associações). Impressionante o silêncio feito à sua volta, inclusivé por parte do partido a que pertenceu e se dedicou até morrer. Inexplicável?
Quarta-feira, 18.Fev.2009 at 10:02:46
Helena
Não me lembro, na altura, como o Noales me chamava, mas devia ser Chagas Franco (isto só serve para uma identificação por quem foi desse mesmo tempo e daquele mesmo meio escolar). Na nossa turma, o Noales era o chefe e eu o subchefe. Fazíamos o possível para que não fossem marcadas faltas a colegas ausentes. Acho que, naquela função e perante a turma, fomos bons colegas. O Nikias Skapinakis também estava entre nós e, sem falsas modéstias, os três éramos ali os notáveis naturais. Passe a expressão… sem mais delongas.
As minhas recordações são vagas. Durante os meus 4º e 5º anos do liceu fomos colegas. Depois e, durante anos, houve um convívio. Claro que não era diário como o que tinha sido no Liceu. Procurava-o em casa dos pais, na Politécnica, onde eu até parava um bocado, ele contactava-me, pelo seu lado, enfim, a amizade de liceu foi sempre mantida, com maiores ou menores intervalos.
Não soube ou esqueci que o Noales tinha sido o primeiro secretário geral da RIA.
Eu não quero deixar de dizer as coisas como se passaram, mas a memória, para isso, não está a ajudar muito. E, do que recordo, apenas desejo falar do que poderiam ser os primeiros passos da militância do Noales. Coisas de ordem pessoal, não. Aviso pois a quem me ler: talvez não estejam sabendo bem o que aconteceu. Lembrar o Noales, no início da sua militância, será coisa pequena, em comparação com o que teria feito depois, mas terá o seu significado. Para aqueles que vêem um Noales esquecido ou nunca lembrado.
Inexplicável, interroga a Helena. Talvez não, mas não entro em especulações que possam atingir o que quer que seja. Estou em paz… como gosto. Guardo para mim o que possa admitir.
No Camões e no nosso tempo, começou a haver uma certa agitação. Circulavam papeis do MUD Juvenil. Que eram lidos por bastantes alunos. Havia, naturalmente, aquela inquietude dos jovens. Não gostávamos da polícia, vínhamos para a rua fazer um pouco de barulho. Aquele Juvenil despertava a curiosidade. A guerra não tinha acabado há muito. Era coisa nova. E eu, por exemplo, admirei a coragem de quem subscrevia um documento da Comissão Central do MUD Juvenil. Com razão, foram presos por essa e, talvez, por outras gracinhas. E com essa minha admiração estava com eles, embora ainda não estivesse no seu quadro ideológico. Noales era, aparecia, um dos “agentes” dessa agitação. Pela certa, elemento do MUD Juvenil e havia outros que o eram e de que não vou recordar nenhum em particular.
Num certo ano, foram bastantes alunos à estátua do António José de Almeida, julgo que por um 31 de Janeiro. Foi a primeira vez que vi a repressão policial. E não esqueço um professor do Liceu, o Augusto de Nascimento, ao aproximar-se do lugar da estátua, abordar um polícia e fazer uma pergunta do género, o sr. Guarda diz-me onde fica a estátua desse grande homem da República, desse inexcedível tribuno que foi António José de Almeida. O polícia, atarantado, teria respondido, mais ou menos, é por ali e por acolá… mas agora não pode lá ir.
Já depois de eu sair do Camões, surge um caso singular mesmo para a época. Tentarei ser mais cauteloso ainda, desconfiado da minha memória. Desconfiem também um pouco, mas não completamente. Caso invulgar, mesmo à época, e até parece uma caricatura do que eram aqueles tempos. Uma professora teria dito numa aula que havia povos na Antiguidade que adoravam o Sol como um Deus. Foi mais ou menos isto.
Foi objecto duma denúncia, e não me atrevo a dizer que foi objecto dum abaixo assinado de protesto, muito embora seja essa a forma que recordo. Tenho também uma ideia da identidade da professora e de mais elementos a ela associados, mas calo-me, para não errar. Na sequência do que quer que se tenha passado, teria sido aberto um inquérito à dita professora.
Ora, nesta situação, o Noales (julgo que foi ele que me contou) envolveu-se num outro abaixo assinado. Envolveu-se em agitações de defesa da sua professora e de protesto pelo que se passava. E a situação animou-se o bastante para levar a professora a chamar o Noales, creio que foi ele o chamado, e pedir para acabarem de agitar o caso, pois que ela acabaria por sofrer, por tal, pesadas consequências.
Aquilo que aquele Deus Sol provocou é tão incrível, para mim, que, mesmo tentando meter aquele tempo na minha cabeça, admito que tenha sido uma reacção política com um determinado alvo. O nome, aqui não dito, pode apoiar esta ideia.
Mais tarde, depois das eleições do Delgado, julgo eu, o Noales, numa fase mais amadurecida da sua luta, propôs-se entrar numa organização que, a esta distância, me parece ter sido uma Frente e de que, de todo, não me lembro do nome. Indesculpável o esquecimento até pelo conheço das lutas antifascistas. Recusei. E calo os porquês pois que não é de mim que estou falando.
O que desejava era registar três factos da militância do Noales, sobretudo, nos seus primeiros tempos.
O Noales foi jornalista da República, durante um certo período. Ele e o Adriano de Carvalho. E tenho a percepção que se deve aos dois uma alteração que me pareceu bem visível; a alteração para outra maneira de fazer jornalismo naquele jornal.
Mais um vez, escrevi muito. E, desta vez, lamento não escrever muito mais, porque isso significava conhecer a luta política de toda a vida do Alfredo Noales Rodrigues e ajudar a fazer lembrá-la por inteiro. Como é obrigação para quem o possa fazer.
Um abraço
Chagas Franco
Quinta-feira, 19.Fev.2009 at 04:02:50
Chagas Franco:
Excelente contributo o seu para que não se deixe apagar a memória, nenhuma dessas memórias de que se fez o derrube do fascismo e o 25 de Abril. Um grande abraço. Não posso deixar de lhe agradecer em nome da família do Alfredo Noales.
Helena
Quinta-feira, 26.Fev.2009 at 04:02:19
E, já agora, que bom ler uma referência ao Adriano de Carvalho, de quem fui amiga e que me habituei a admirar como jornalista quando era ainda uma muito jovem candidata à profissão. E de quem recordo o entusiasmo com que nos dava a conhecer autores e personagens e também diversos textos e colagens (que seria curioso rever a esta distância). Se a memória não fosse tão curta, lembrar-nos-íamos dele, pelo menos, em cada 25 de Abril, já que foi um dos baleados pelos agentes da PIDE na António Maria Cardoso. Mas como lembrar-se dos feridos, se até o nome dos mortos pode ser apagado?