Sabíamos-te doente e frágil nos teus noventa e dois anos, mas a força da tua personalidade e a tua história fantástica de resistente e lutadora davam-nos a ilusão de eternidade, como eternas são as causas que abraçaste desde a juventude. Por isso recordo, da entrevista que te fiz em 2000 para o Projecto de História Oral do Centro de Documentação 25 de Abril, uma frase que é para mim a legenda de uma vida: «Curiosamente nunca tive medo físico. Penso que naquela altura trabalhávamos com tal amor, púnhamos tanto de nós nas coisas que fazíamos, que o medo, se existia, não dávamos por ele.»
Os mais novos compreenderão mal o alcance destas palavras de quem aos 17 anos trocou o conforto de uma vida burguesa a que te destinava a sua origem e a sua condição de mulher, pela perigosa aventura do combate anti-fascista. Com uma alegria, uma coragem e um amor incondicionais: pelo teu povo, pelos teus companheiros e amigos, pelo teu marido, Fernando Piteira Santos, que acompanhaste durante 44 anos, incluindo os 13 de exílio em Argel. Disseste a dada altura: «fiz tudo para que ele pudesse fazer a sua vida politica. A minha fazia-a com ele». Não, Stella, não foste só a esposa dedicada e abnegada, com duplas e triplas tarefas familiares e profissionais, mais ou menos obscuras. A motorista, a secretária, a telefonista… Foste uma mulher singular à altura de um homem singular, porque é também singular e única a energia que fez de ti uma pioneira na luta pela emancipação das mulheres. À censura, ao medo e à banalidade da ditadura, respondias com gestos de arrojo, rebeldia e provocação. Como recordou a tua filha Maria Antónia, por ocasião dos teus 90 anos, trabalhavas fora de casa e sempre exerceste a tua profissão (excepto quando to impediu a policia politica), completaste o 7º ano já com dois filhos pequenos, tinhas carta de condução, fumavas, vestias calças compridas sempre que te apetecia. A par disto, participaste, apenas com 21 anos, na fuga histórica de Pavel, foste sócia fundadora da Associação Feminina Portuguesa para a Paz, aderiste ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, presidido pela tua amiga Maria Lamas. E foste a alma e durante algum tempo a principal locutora da Rádio Voz da Liberdade. Apenas uma ínfima parte da tua acção de apoio, a todos os níveis e em todas as frentes, aos exilados portugueses em Argel. Mãe Stella! Lembras-te? Era assim que Manuel Alegre diz que te chamavam. A memória afectiva dos que te conheceram é assim que te recordará. A memória oficial dar-te-á, espero, um lugar de destaque na história da resistência e das mulheres no século XX deste país.
Hoje, se pudesse estar presente na tua despedida, gostaria de te levar um ramo de flores de amendoeira da tua terra, a quem deves esse sorriso radioso que te acompanhou até ao fim.
Domingo, 25.Jan.2009 at 12:01:18
Obrigada, Manuela, pelo teu texto sobre Stella Piteira Santos. Também eu não pude estar na despedida e gostava de aqui deixar um abraço para a Maria Antónia.
Mas queria salientar a parte em que escreves “tinhas carta de condução, fumavas, vestias calças compridas sempre que te apetecia”. De sublinhar quanto essas coisas, hoje tão “naturais”, eram, na época, transgressoras – e quanto devemos às mulheres que transgrediram. Quando, às vezes, oiço perguntar “Como interessar os jovens pela memória desses tempos?”, creio que é falando-lhes não só das grandes questões políticas, mas também dessas coisas que hoje têm por adquiridas – e que foram, para os mais velhos, outras tantas razões e formas de luta.
Domingo, 25.Jan.2009 at 07:01:38
Também não pude estar, o que me foi doloroso. Stella não foi só a extraordinária companheira de Fernando ; foi-o de todos os que nos encontrámos na frente de combate ao fascismo e aos mais recentes (por vezes encobertos, outras bem à vista)saudosos desses tempos de opressão e repressão. Até porque ela e nós não nos encontrámos nessa frente por acaso; estávamos lá porque conscientemente o decidíramos. Que belos exemplos Stella nos deixou! A expressão dos meus sentimentos à sua família!
Domingo, 25.Jan.2009 at 11:01:57
De São Miguel, onde me encontro, deixo um grande abraço à Maria Antónia pela grande perda que agora sofreu. Uma perda certamente sentida por todos os defensores e amantes da liberdade.
Domingo, 01.Fev.2009 at 01:02:53
Todas as pequenas gotas convergem para um grande mar.Agradecido pelo exemplo que saberei honrar.