Um texto de Fernanda Paraíso (*)
Esta carta foi escrita há 80 anos, em Outubro de 1928. Pareceu-me interessante divulgá-la pelo que revela de análise politica de um ano chave na evolução da Ditadura saída do 28 de Maio; mas, principalmente, porque denuncia uma das características que mais me têm incomodado na personalidade do ditador português: a hipocrisia.
A camuflagem que sempre fez parte do seu comportamento, o disfarçar das suas verdadeiras intenções, a falsa bonomia e austeridade que procurou activamente cultivar, enfim… a aura de «santinho» que lhe criaram os seus apoiantes e que foi refinando ao longo dos anos. Por isso me interessam os testemunhos dos homens que o conheceram directamente, e que conheceram as suas origens, e que nos podem transmitir uma impressão pessoal e espontânea. Mal sabiam eles que este «obscuro professor de Coimbra» se eternizaria no poder durante quatro intermináveis décadas…
Oliveira Salazar era Ministro das Finanças desde Abril desse ano de 1928. Na sua carta aberta, João Camoesas acusa Salazar de ter vindo salvar uma ditadura que «estava morta» e que define como «um sistema de governo que compromete os destinos da Nação e vive fomentando a dor e a miséria de muitos milhares de portugueses».
Para João Camoesas, a atitude de Salazar revela o seu carácter: «o senhor é uma contradição viva e a expressão máxima de hipocrisia».
E passa a explicar:
«Professor de direito de uma sociedade democrática, o senhor é o único sustentáculo dum governo que nega o direito e trai a democracia. Mestre de ciências económicas ergue a razão de estado acima das possibilidades nacionais. Católico praticante, em vez de amar o próximo como a si próprio, associa-se a uma politica de ódio, imposta pela violência e mantida pela crueldade. Moralista, consente na sustentação da polícia de informações, cuja administração é um descalabro e cuja acção é uma ignomínia. (…) mas tudo isto o realiza o senhor com modos austeros, fingindo intenções respeitáveis. Para esse efeito os seus amigos não se cansam de apregoar a sua discordância com certos actos do governo e o seu desprezo pela quase totalidade dos seus colegas de gabinete, incluindo o respectivo presidente: contudo, continua a acamaradar com eles. Se há cortes, apressam-se a espalhar que o exército será o primeiro nos sacrifícios: mas o orçamento da guerra ficou quase na mesma. Se há acumulações, esboça propósitos audaciosos e intransigências irredutíveis: no entanto, vai abrindo alçapões na lei. Se há deportações iminentes, lança-se na circulação o boato de que se opõe à sua efectivação: mas, para trazerem cerca de duzentas pessoas, vêm dois barcos propositadamente a África, gastando milhares de contos. E seria infindável a lista dos postiços com que o senhor encobre ou consente que lhe encubram a sua verdadeira personalidade, aquela que a sua acção revela e os factos definem».
Sei quase nada de João Camoesas. Apenas que foi republicano e estava deportado em Luanda, em Outubro de 1928, de onde escreve esta carta aberta a Salazar. Além disso, apenas que, no arquivo de Bernardino Machado (Fundação Mário Soares), o seu nome aparece mencionado em várias cartas de onde se depreende que, em 1934, está nos EUA, em Massachussets, para onde terá sido exilado em 1929. E teria um irmão, Augusto Camoesas. Se alguém quiser contribuir…
(Carta aberta dirigida pelo Dr. João Camoesas ao Prof. Oliveira Salazar, IANTT, AOS/CO/PC-3A, pt.1)
(*) Biografia de Fernanda Paraíso
Quarta-feira, 05.Nov.2008 at 01:11:14
Muito interessante.
Quarta-feira, 05.Nov.2008 at 11:11:39
De facto, João Camoesas não poderia estar correcto.
A faceta de “salvador da pátria” e bom samaritano que Oliveira Salazar queria transmitir, não passava de mera fachada para levar a cabo o seu mais íntimo desejo de opressão de um povo.
Não sei se algum psicólogo já se lembrou de traçar um perfil psicológico do ditador português. Se sim, é provável que tenha chegado à conclusão que este indivíduo sofria de um qualquer ressabiamento, fruto de uma infância difícil e rica em falta de afectos.
Quinta-feira, 23.Abr.2009 at 09:04:37
Boa Noite!
Eu li o artigo sobre o João Camoêsas e achei interessante.
Sei apenas que é meu antepassado, pois o meu avô era primo direito dele. Sei ainda que tinha estado a discursar seguidamente com intenções políticas e que tinha feito parte de um conjunto de ministros do governo de 1923. Nada mais.
Cumprimentos.
CristinaCamoêsas
Torres Vedras
Quinta-feira, 14.Maio.2009 at 06:05:31
Muito obrigada pela sua participação. Se tiver alguma fotografia de família daquele tempo, em que aparecessem os primos, seria interessante partilhar comnosco…
Quinta-feira, 14.Maio.2009 at 04:05:37
Agradeço-lhe primeiro de tudo a publicação deste artigo, revelador do caracter obscuro de Salazar.
João Camoesas foi um meu longuínquo antepassado (por parte da minha mãe). Durante os meus estudos na Faculdade de Letras elaborei um trabalho onde mencionei a contribuição de João Camoesas dada enquanto deputado na Primeira Republica (ocupou inclusivé um cargo ministerial), a oposição retórica a Salazar, o exílio e posteriormente a “deportação” para New Jersey onde creio que faleceu.
Passaram-se já alguns anos sobre a elaboração do referido estudo, terei no entanto prazer em rever os meus apontamentos, disponibilidade e gosto em poder contribuir para um seu futuro artigo.
Quinta-feira, 14.Maio.2009 at 07:05:13
Seria muito interessante para mim conhecer seu estudo. Além do mais, espero que as comemorações do 1º centenário da instauração da República, que terão lugar para o ano, possam reavivar a memória de tantos republicanos, como o seu antepassado, que foram deportados pela Ditadura, ostracizados, remitidos ao mais completo esquecimento… Espero que seja uma oportunidade para se desfazerem os variados mitos que Salazar inventou para denegrir a 1º Republica!
Quinta-feira, 11.Jun.2009 at 03:06:58
João Camoesas, médico, foi ministro duas vezes e deputado na I república. Foi deportado pelo Estado para Angola, onde teve um filho, Emiliano Camoesas, de Valéria Van-Dúnem. Em Luanda escreveu um livro sobre doenças tropicais. Conseguiu evadir-se para os EUA onde morreu e onde esteve engajado em vários movimentos de esquerda, e foi uma referência, conjuntamente com outros portugueses, dos quais muitos foram expulsos para os antigos países socialistas da Europa. Em Angola ainda hoje vivem os seus descendestes, netos, bisnetos, família bem conhecida em Luanda.
Domingo, 14.Jun.2009 at 11:06:06
Muito obrigada pelas suas informações. Como expliquei no texto, pareceu-me interessante divulgar a carta, mas não tive tempo de investigar o seu autor.
Quarta-feira, 19.Ago.2009 at 08:08:34
Quem me poderá ajudar a encontrar mais elementos da biografia deste meu parente que esteve 9 horas seguidas no Parlamento a falar, esperando a chegada de outros deputados do Porto para ser aprovada uma moção sobre educação. Seus camaradas loiuvavam o seu dote oratório, mas Oliveira Martins dizia Eu admiro o Dr. João Camoezas, pela sua bexiga