Recuemos um pouco. A 1972. A 10 de Fevereiro. Cabo Verde é uma «província ultramarina portuguesa». E na Ilha de São Nicolau reabriu o campo de concentração do Tarrafal, agora com o nome de Campo de Trabalho de Chão Bom. Neste «Campo da Morte Lenta», as condições extremas de vida, maus tratos, torturas, falta de assistência médica, mataram 37 portugueses dos 340 que em levas foram chegando desde a inauguração, em 29 de Outubro de 1936, até ao seu fecho em 26 Janeiro de 1954.
A derrota dos fascismos, na Europa em 1945, fechou o campo de concentração do Tarrafal, as lutas de libertação das colónias portuguesas reabriram-no. E desde 1961, há 11 anos, que o «Chão Bom» (cínico o nome!, a lembrar o ARBEIT MACHT FREI – O TRABALHO LIBERTA – à entrada do campo de extermínio de Auschwitz) ficou reservado para os «portugueses» das «províncias ultramarinas» de cujas mortes e sofrimentos ainda pouco se disse.
Estão aqui, agora, em 1972, angolanos, guineenses e cabo-verdianos…(que para os moçambicanos há, em Lourenço Marques, a Machava). Mais de 20 anos de prisão é a pena de alguns. Por delitos de opinião, por não aceitarem ser colonizados na sua terra. Muitos não têm acusação judicial, só uma decisão administrativa.
Faltam apenas 2 anos, 2 meses e 15 dias para que o mundo concentracionário do «Chão Bom» se desmorone sob os nossos olhos e faltam apenas alguns meses mais sobre a revolta dos capitães para que esta África colonizada conquiste a independência. A espessura do tempo e a espessura do mar não deixa ver o navio grande da libertação que se aproxima e cada um destes homens que estão aqui, na nossa frente, só podem viver os dias que correm sob o império do passado. Mas com a cintilante, a inquebrantável esperança na libertação.
O Senhor Director do «Campo de Trabalho de Chão Bom» está atento, lê a correspondência que vem para os presos e intercepta-a mas não sem comunicar ao Senhor Director Provincial da Delegação da Direcção Geral de Segurança de Angola, escalão intermédio entre o «Chão Bom» e o chão óptimo (para esta gentinha) da sede da PIDE/DGS, em Lisboa.
Eis uma das cartas do director do Campo de Concentração do Tarrafal para o director da PIDE/DGS em Luanda, a dar conta do seu trabalho. A intercepção, o roubo da correspondência, como o roubo da restante liberdade é tão inaceitável, tão repulsiva que o ar de normalidade de tudo o que aqui rotineiramente se passa só pode ser entendido pela monstruosidade do que é uma ditadura. Para mais colonial.
O Senhor Director do Campo interceptou hoje uma carta. Abriu muitas mas esta não deixou escapar. Falará dela ao Senhor Director Provincial. Correspondência (1): entre dois jovens angolanos. Terão tempo para se tornarem conhecidos combatentes da libertação do seu país. Mas pouco tempo. Tragicamente morrerão nas convulsões do país gigante que aprende a ser nação. Cinco anos depois, em 27 de Maio de 1977, em Angola, sucumbem no confronto entre facções do MPLA (Agostinho Neto – Nito Alves), quando florescia já a independência do seu país, por que ambas as partes lutaram:
1. Por julgar inconveniente a sua entrega ao destinatário, o recluso Gilberto Saraiva de Carvalho [estudante de Luanda, preso desde 1970, sem culpa formada, e ao abrigo de medidas administrativas], junto remeto a V. Exª. uma carta escrita em 21 de 12 de 1971, de S. Nicolau (Moçâmedes) [outro campo de concentração mas este em Angola] pelo também recluso Eduardo Artur Santana Valentim [estudante e já famoso na luta de libertação de Angola, conhecido por Juca Valentim, preso transferido do Tarrafal para o campo de concentração de S. Nicolau, em Angola], que foi interceptada nos termos dos artigos 323º e 335º, § 2º, da Reforma Prisional aprovada pelo decreto-lei nº 26643 de 28-3-936. [com artigos e leis isto até ganha um ar decente…]
2. Posso acrescentar a V.Exª. que com a transferência do autor da carta, o grupo de que fazia parte ficou um tanto perturbado e desconjuntado, o que parece confirmar ser ele o “cabecilha”
Apresento a V.Exª respeitosos cumprimentos.
A Bem da Nação
Chão Bom, 10 de Fevereiro de 1972.
O Director
Ass (E………………….. )
Adm. Conc
«A Bem da Nação», o campo de concentração do Tarrafal não é o Chão Bom é o chão comum, o chão do sofrimento regado pelo sangue comum de portugueses (alguns portugueses) e dos povos das ex-colónias de Portugal. O triunfo do 25 de Abril de 1974 que nos trouxe a liberdade é também, e muito, tributário da luta anti-colonial dos angolanos, guineenses, cabo-verdianos e moçambicanos. Por sua vez a luta dos portugueses contra a ditadura e contra o colonialismo foi também uma das expressões do homem sem fronteiras pela libertação das antigas colónias.
A luta pela liberdade pressupõe a luta por condições de vida digna para todos os homens, a luta por uma democracia e uma liberdade que todos os dias é necessário escorar. Quando os campos de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, de S. Nicolau em Angola, da Machava em Moçambique e outros, muitos outros, acabaram há décadas, não é possível aceitar, seja com que pretexto for, os “gulags” de Guantânamo, de Abhu Grahib, dos navios prisões sem lei, em águas internacionais. Quando catástrofes financeiras e económicas como a actual lançam na tragédia milhões de seres humanos a Memória das lutas, das vitórias e das derrotas do passado tem um sentido prático. Devem ser um estímulo para transformar crises como a actual do sagrado-mercado-entregue-a-si-mesmo (que o mesmo é dizer entregue a alguns) em oportunidades de mudança para uma ordem global mais humana.
(1) A carta foi obtida aqui, online, na Torre do Tombo.
Sábado, 25.Out.2008 at 04:10:09
Caro Raimundo,
Permite-me uma rectificação: o “campo” não era (não é, pois ainda existe, sem presos mas aberto avisitas) na Ilha de São Nicolau mas sim na Ilha de Santiago (onde se localiza a capital de CV, Cidade da Praia; a capital fica numa ponta da ilha, Tarrafal é na ponta oposta). Quanto às designações Tarrafal e Chão Bom: Tarrafal é uma vila sede de concelho a poucos kms de Chão Bom; Chão Bom é a peuqena localidade (do concelho do Tarrafal) onde de facto se localizava (se localiza) o Campo. Diga-se que o lugar de Chão Bom que era muito pouco habitado no tempo do Campo e há poucos anos atrás, cresceu muito em habitação e em população nos anos mais recentes (o que pode induzir em erro, quanto ao povoamento em volta doo Campo, os que visitarem o Campo agora e pela primeira vez). De qualquer forma, designar o Campo de Tarrafal ou de Chão Bom é uma mera questão de precisão localizadora (referir o local ou o concelho). Quanto á origem do nome Chão Bom (designação que não tema a ver com a existência do Campo ou relacionada com ela) tem a ver com o facto de os crioulos chamarem “chão” a terra onde nascem ou que cultivam, sendo aquela ponta da ilha de Santiago como uma das mais favorecidas em chuvas (quando as há, sendo elas sempre poucas em todas as ilhas de Cabo verde) e portanto mais aptas ao crescimento de vegetação e cultivo agrícola, daí que, no conceito relativo dos ilhéus caboverdianos que baptizaram o local, ali estivesse um “chão bom” (isto é, do melhor que a ilha permitia). Quanto à localização do Campo naquele local (inóspito como todo o Cabo Verde), julgo que pesaram: ser na ilha onde estava a capital da colónia (para melhor controlo), mas colocada na distância máxima e num local pouco povoado (provavelmente, o factor que ditou que o Campo não fosse montado no Tarrafal (mais povoado, terra de pescadores, com acesso ao mar) mas a 2km para o interior, mais longe do mar (perigo de fugas), num lugar menos povoado, mas não muito distante do Tarrafal para permitir o abastecimento de géneros e materiais a partir do Tarrafal, bem como um menor isolamento social do corpo carcereiro e do seu staff. Já agora: o despacho de re-abertura do campo para prisioneiros africanos, datado de 1961, foi assinado pelo ministro do ultramar da época e ainda anda por aí, vivo, de saúde e venerado como sendo um sábio: Adriano Moreira (que também assinou o despacho da abertura do campo de São Nicolau em Angola). Diga-se, em abono de toda a verdade, que o Campo teve ainda uma terceira utilização como campo de prisioneiros, já depois do 25 Abril, mas aqui os carcereiros estiveram a mando do PAIGC/PAICV e os presos foram caboverdianos que se opuseram à independência e outros contra-revolucionários. Funcionou ainda, após a independência e compo última utilização, como quertel das Forças Armadas de Cabo Verde. Esta utilização militar descaraterizou parte do campo da sua época de detenção de presos políticos, pois foram feitas várias alterações nas construções para que, por exemplo, as celas se adaptassem a casernas, bem como transformações para passarem a haver melhores cantinas e melhores cozinhas. É o estado do Campo como quartel que os visitantes actuais vão conhecer. E daí algumas dificuldades e perplexidades de visitantes menos informados perante disposições arquitectónicas que lhes dificuldade recriar o ambiente prisional.
Abraço.
Domingo, 26.Out.2008 at 01:10:25
Meu Caro Tunes obrigado pela corrigenda e as informações suplementares. Vejo que além dos muitos saberes dominas também a História e a Geografia.
Na realidade a “ilha de S. Nicolau” ficou no post por lapso meu. É que confundido com vários tarrafais em várias ilhas tentei tirar a limpo o caso. E andei por aí de Google Hearth na mão à espreita e concluí por Santiago mas depois esqueci-me de emendar. Em todo o caso a tua informação é mais minuciosa que a do Google e mais interessante.
Abraço e obrigado.
Domingo, 26.Out.2008 at 01:10:39
Raimundo, claro que não estranhaste encontrar vários “tarrafais” em várias ilhas de CV, como encontras por outras partes de África (Guiné, Angola). Tarrafal vem de “tarrafo” que designa uma concentração intensa de vegetação desenvolvida junto a cursos de água, normalmente em meio lodoso. Daí que não deixe de ser paradoxal que uma designação de grande viço vital da natureza tenha acabado por estar associada ao nome de um campo de extermínio do salazarismo-marcelismo. E passando para a designação de “Chão Bom” (enquanto o Tarrafal, além da magnífica praia, era e é um importante centro pesqueiro; o Chão Bom, recolhido para o interior 2 km tinha a vantagem de ser melhor para a agricultura por maior protecção dos ventos dalinizados), o paradoxo mantem-se ou amplia-se. Pelo que o sentido do teu post foi plenamente conseguido.
Domingo, 26.Out.2008 at 01:10:15
No comentário anterior, ler “ventos salinizados” onde apareceu “ventos dalinizados”.
Segunda-feira, 27.Out.2008 at 08:10:56
“Quando catástrofes financeiras e económicas como a actual lançam na tragédia milhões de seres humanos a Memória das lutas, das vitórias e das derrotas do passado tem um sentido prático. Devem ser um estímulo para transformar crises como a actual do sagrado-mercado-entregue-a-si-mesmo (que o mesmo é dizer entregue a alguns) em oportunidades de mudança para uma ordem global mais humana.”
Está aqui tudo o que é o essencial e não tenho quaisquer rectificações a propôr.
nelson anjos
Terça-feira, 28.Out.2008 at 01:10:26
Caro João, aprendo consigo que as instalações do campo foram alteradas para adaptá-las para a sua última função de quartel. Isto refere-se também aos dormitórios que recentemtne visitei? Não encontrei na pequena exposição que se encontra no campo, uma referência a estas alterações. Conhece outra documentação, plantas, ou semelhante, online?
Obrigado e um abraço
Terça-feira, 28.Out.2008 at 08:10:55
Caro Lutz,
Já tinha reparado que num seu post sobre a visita que fez ao Campo do Tarrafal, tinha ficado um pouco admirado com as instalações que encontrou. Mas meteram-se outras coisas pelo meio e não cheguei então a conversar consigo sobre isso. De facto, houve alterações para adaptar as instalações a aquartelamento militar, nomeadamente quanto a casernas e refeitórios, sendo este uso castrense ainda visível por várias inscrições de exaltação às Forças Armadas de CV pintadas nas paredes no interior nas paredes das antigas casernas (julgo que as viu e leu, dado o seu tamanho grande). Mas as grandes pechas do Campo, em termos de reposição da memória, é a insignificância da exposição e a péssima preparação dos “guias”. Quando visitei o Campo pela primeira vez em 2000, tive a sorte de ter tido a companhia de caboverdianos bem informados que, inclusivé, me localizaram os centros de tortura-castigo (a “frigideira” no exterior, usada para presos europeus já só se sabe o sítio dela; a “holandinha”, usada para os presos africanos e ao lado da cozinha ainda está lá, mas sem explicação, não se detecta). Na segunda visita que fiz este ano, a “guia” jurava que não tinha havido presos angolanos no Tarrafal e que só os guardas eram angolanos (!!!). Encontrei no Tarrafal (praia) um médico português que está a trabalhar há vários anos em Cabo Verde e tem um filme rodado sobre o Campo e conversando com ele também obtive dados que não conhecia. Julgo que o filme será brevemente projectado em Lisboa (ele tenciona editar em DVD). De qualquer forma, amanhã no Colóquio Internacional sobre o Tarrafal estarão antigos prisioneiros portugueses e africanos, portanto tem um óptima oportunidade de ser esclarecido sobre as suas dúvidas.
Abraço.
Quarta-feira, 29.Out.2008 at 09:10:49
Caro João, muito obrigado pelas explicações. De facto, era impossível não reparar nos escritos propagandísticos. E também na pobreza da exposição. Num erro de raciocínio, que me apercebo agora, quase a perdoei: De facto, sabemos que Cabo Verde e o município Tarrafal têm poucos recursos… Só, obviamente, a manutenção adequada do Campo de Tarrafal como museu não é em primeiro lugar obrigação dos Caboverdianos, mas do país que o criou.
Infelizmente, obrigações profissionais não me permitem ir ao colóqui sobre Tarrafal. Em todo o caso, muito obrigado e um abraço!
Quarta-feira, 29.Out.2008 at 11:10:08
Lutz,
Concordo plenamente sobre a urgência da recuperação museológica do Campo e que ela deve ser suportada pelos governos que ali tiveram carcereiros e prisioneiros (Portugal, Cabo Verde, Angola e Guiné-Bissau). [Se fossemos alargar os contributos até aos inspiradores, talvez o problema se resolvesse, metia-se a Alemanha e o assunto provavelmente ficaria resolvido (os campos nazis serviram de modelo para o Tarrafal e os seus criadores estagiaram com a Gestapo; na terceira utilização para prisioneiros do PAIGC/PAICV, após a independência, a Stasi deu uma ajudinha no lidar com os “inimigos do povo”)]. Segundo me disseram, o projecto de cooperação entre governos existe, mas subsistem problemas: 1) O Ministério da Cultura de CV, o qual teria de ter um papel central na concretização do projecto pelas razões óbvias de o Campo estar localizado no seu território, simplesmente não funciona, além de que os caboverdianos não têm uma grande motivação sobre o Campo (não só lá tiveram muito poucos prisioneiros na fase 1961-1974 como não escondem o amargo de memória, que raramente querem recordar, da utilização do Campo pelo PAIGC/PAICV, o qual, refrescado, está actualmente no governo e na Presidência da República); 2) A Guiné não tem dinheiro para mandar cantar um cego e o governo angolano (que podia e devia ser um dos principais incentivadores e financiadores do projecto de recuperação) fala, fala, mas que sim e depois logo se vê. E depois há outras marcas que também não ajudam do lado dos africanos, como, no caso da Guiné (talvez não só), o facto de a PIDE ter “trabalhado” e muito junto dos prisioneiros africanos no Tarrafal no período 1961-1974, particularmente com os guineenses do PAIGC (em Angola fizeram-no em São Nicolau, em Moçambique em Machava) no sentido de os corromper e utilizar para a contra-guerrilha. Basta lembrar que a PIDE recrutou patriotas e guerrilheiros guineenses no Tarrafal para, libertando-os (em 1969), infiltrá-los no PAIGC e passar a utilizá-los como seus agentes, os quais estiveram no centro da operação que assassinou Amilcar Cabral.
Quanto ao Colóquio, este site permite-lhe acompanhá-lo on-line.