O primeiro texto desta série pode ser lido aqui
Conhecida pelos jornais a notícia de que moderno armamento chegado de França seguiria para a guerra colonial em Angola, em 13 de Fevereiro de 1972, a ARA propôs-se destruir tal armamento. Depois de porfiados esforços para reunir toda a necessária informação, soubemos que as armas iriam para os armazéns dos Carregadores Açorianos, no cais de Alcântara em Lisboa, e partiriam no navio Muxima, a 13 de Janeiro de 1972. Planeou-se então colocar ali uma potente carga explosiva e fazê-la lá chegar disfarçada num caixote de vulgar bagagem de quem se desloca para Angola.
Saber fazer tudo isto e com a garantia de que se tratava de movimentos normais e insuspeitos só foi possível porque um dos militantes da ARA tinha a profissão de ajudante de despachante, e além disso, cumpria serviço militar no Serviço de Transportes do Exército (o economista António Pedro Ferreira, falecido em 2004) o que lhe dava o completo domínio do meio. Inclusive sabia que a melhor hora para a explosão seria entre as 6 e as 7 horas por ser a altura em que não havia actividade no porto de Lisboa.
Inventou-se um nome e uma morada – António Pires, morador em Casal Virgínia, Idanha-a-Nova, distrito de Castelo Branco. Morada vaga, longe de Lisboa, difícil de comprovar. Manuel Guerreiro, na altura motorista de pesados e actualmente comerciante em Grândola, assumiu o papel mais arriscado da operação: reservar passagem de avião para Luanda num balcão da TAP, ir com o comprovativo ao escritório de um despachante aduaneiro e por fim conduzir ao cais de embarque, numa camioneta alugada, na zona portuária de Lisboa, o pesado caixote com as comprometedoras cargas explosivas.
Tudo decorreu de acordo com o plano e o resultado foi o que relatámos no 1º post desta série.
O dossier «Muxima» da PIDE/DGS, a que tive acesso depois de 25 de Abril, revela os esforços desta polícia postos na perseguição de quem assim se dispunha a desafiá-la.
Foi fácil à polícia determinar a bagagem que nos armazéns de embarque provocara a explosão e, a partir daí, também não foi difícil reconstituir o caminho que a tinha levado até lá. Para isso serviram os interrogatórios sistemáticos a que procedeu.
Interrogados pela PIDE/DGS, os conferentes marítimos, empregados da empresa «Alcargo», disseram no auto de declarações de 27 de Janeiro de 1971 «que se lembravam muito bem do caixote mas quanto a quem o transportou ou falou com eles não repararam nem se lembravam de nada por se ter passado tudo com normalidade». O mesmo fizeram os praças da Guarda-Fiscal interrogados pela PIDE/ /DGS entre quatro e catorze de Fevereiro.
Em seguida, foi o escritório do despachante aduaneiro passado a pente fino. Reproduzo apenas alguns extractos do auto do interrogatório feito a um dos empregados que foram chamados à sede da PIDE, àquele que atendeu o membro da ARA. Começava assim:
«Aos vinte de Janeiro de setenta e dois, nesta cidade de Lisboa e sede da Direcção Geral de Segurança onde se achava o Excelentíssimo Inspector, Senhor Adelino da Silva Tinoco, [um dos mais odiados quadros da PIDE] comigo Benedito Pereira André, agente, também da mesma Direcção Geral, servindo de escrivão, aqui foi presente…»
Seguia-se o nome do empregado, perguntas e respostas e, já perto do fim, as pressões da polícia para o empregado identificar «o cliente»:
«…A vinte e oito do mês de Dezembro findo, o declarante atendeu pessoalmente no respectivo gabinete, um cliente que disse chamar-se António Pires…informando-o que deveria deixar a quantia de Mil e Quinhentos Escudos, do qual receberia depois o excesso, no caso de sobrar. …Porém, até hoje, o referido António Pires não voltou a aparecer para levantar o troco e nada mais soube a seu respeito…E sendo-lhe presente várias fotografias…é convidado a examiná-las e a declarar se alguma delas corresponde ao António Pires ou apresenta semelhança, pelo que depois de as examinar, declarou que entre as fotografias que tem presentes, uma delas apresenta, efectivamente, relativa semelhança com o António Pires, admitindo, portanto, que ao mesmo corresponda. E verifica agora que essa fotografia contém no verso o nome de Raimundo Pedro Narciso, pelo que a vai rubricar.
Seguidamente ordenou ele inspector, se junte aos autos a fotografia de Raimundo Pedro Narciso… E mais não declarou…»
A PIDE concluiu – erradamente. Concluiu ou talvez não, porque continuou a procurar e molestar os Antónios Pires que ia descobrindo… como no próximo post desta série se verá.
Terça-feira, 28.Out.2008 at 04:10:39
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