O primeiro texto desta série e a Bibliografia podem ser lidos aqui, o segundo aqui e terceiro aqui.
Volto às palavras iniciais do texto 1 – Mas de que amigo estou a falar, amigo de quem e em que circunstância? Refiro um evento trágico – a Guerra Civil que se desenrolou em Espanha entre 1936-39 e o apoio que o regime salazarista deu aos franquistas. Baseio esta série de textos numa comunicação que fiz num simpósio organizado pela Universidade Católica em 2006, cujas actas estão publicadas. (Jorge Fazenda Lourenço e Inês Espada Vieira (org), Guerra Civil de Espanha: cruzando fronteiras 70 anos depois, Lisboa, UC, 2007).
Neste texto já se aborda o período pós guerra-civil.
No período em análise, as relações entre Portugal e Espanha, devido aos laços e entrelaços do passado, longínquo ou pretérito, operavam-se a dois níveis: o oficial, caloroso, ideológico, pomposo até, e o não-expresso, feito de uma algo desconfiada observação mútua e permanente, atenta aos avanços, recuos e posições, quer a nível interno quer a nível internacional, numa demarcação clara de esferas de influência e de independência de actuações de ambos os países. Necessariamente, contudo, a disparidade na dimensão dos dois países determinava também as respectivas atitudes.
É possível e até vantajoso periodizar as relações entre os dois países.
1939-1942: Opera-se a consolidação do poder do Caudilho em Espanha, o poder central de Madrid firma-se e os regionalismos/nacionalismos são reprimidos e controlados. A grande maioria da população espanhola vive com graves dificuldades que roçam níveis de miséria absoluta. Nesta primeira fase da Guerra Mundial, Franco coloca-se claramente do lado do Eixo e encara mesmo a hipótese de entrar na contenda. É Ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha o seu cunhado Ramon Serrano Suñer, que alimenta a opção de Franco e que revela animosidade e desprezo pelo vizinho português. Em 1940, há sectores da Falange espanhola que advogam a anexação rápida e imediata de Portugal. Franco, que também a pretendia, não considera o momento oportuno. Salazar, entre 1936 e 1947, acumula a presidência do governo com a pasta dos negócios estrangeiros e mantém uma posição de habilidosa neutralidade face aos dois blocos, sem jamais renegar a aliança com o Reino Unido. Como escreveu Augusto de Castro «Portugal e Espanha ou serão ambos neutrais, ou nenhum deles o será.» Por isso mesmo, o chefe do governo observa as ambivalências espanholas com grande cuidado e algum temor e mantém contactos permanentes com Madrid. No plano interno continua a vigilância permanente e eficaz da política e da censura. O racionamento é introduzido a pretexto da Guerra e as dificuldades económicas da população são muitas.
1942-1945: Segunda fase da Guerra. A perspectiva de vitória dos Aliados torna-se gradualmente mais clara. O Conde de Jordana substitui o cunhadíssimo, como era conhecido Serrano Suñer, e dado o desenrolar das diversas frentes de guerra, assim como a postura muito mais maleável do Ministro dos Negócios Estrangeiros, a Espanha aprofunda a sua neutralidade e procura, através da «janela» portuguesa, contactos com o mundo ocidental. Salazar cede os Açores aos Aliados em Outubro de 1943.
1945-1949: As esperanças de uma transição a curto prazo para uma monarquia constitucional, assumida por D. Juan de Bourbon, não servem os interesses de Francisco Franco que coloca a monarquia num horizonte longínquo. D. Juan e a família tinham encontrado refúgio em Portugal. O primogénito D. Juan Carlos parte para Espanha para aí receber uma educação adequada, preparatória para a sua função de monarca. A Espanha encontra-se num isolamento internacional profundo – com a excepção de Portugal e a Santa Sé, em 1946, nenhum país se fazia representar a nível de embaixador, junto ao governo espanhol. Entre 22-27 de Outubro de 1949, o general Franco, acompanhado por sua mulher, Doña Carmen Polo y Martínez Valdés, vem a Portugal em visita oficial. Chega a Lisboa, vindo de barco a partir de Vigo, na Galiza, para frisar que a Espanha também era uma nação atlântica e instala-se no Palácio de Queluz. Os discursos oficiais falam de «pátria irmã» ou de «Portugal irmão». Durante esta visita oficial, a primeira e a última que faria a um país estrangeiro, Franco recebeu o título de doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra e foi nomeado general honorário do Exército Português. Contudo, apesar das várias tentativas realizadas, não conseguiu que D. Juan de Bourbon acordasse num encontro. Por sua vez, o Presidente da República Marechal António Óscar Carmona foi nomeado tenente-general do Exército Espanhol. Neste período, Franco coloca como meta, inspirando-se na ideologia fascista italiana, a auto-suficiência económica do país, que iria abandonar a partir de 1959, face à persistente penúria. A oposição democrática portuguesa perde igualmente a esperança – a vitória dos Aliados não pronunciou o fim do apoio ocidental ao regime salazarista e muito menos a abertura do próprio regime. Pelo contrário, o anti-comunismo seguro de Salazar promoveu-o a um parceiro não desprezível que foi mesmo convidado pelos E.U.A. a integrar os membros fundadores da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em 1949, sendo um dos objectivos principais desse Pacto a luta contra a «expansão comunista». Para grande consternação do general Franco, a Espanha não foi nem convidada nem admitida, o que aliás causou sérios problemas nas relações bilaterais. O governo espanhol alegava que Portugal, à luz do Tratado de Amizade e de Não Agressão, e do seu Protocolo adicional, não poderia aderir por si só e que era também seu dever servir de mediador junto aos signatários do Pacto, para fazer valer as pretensões espanholas. As negociações foram intensas e por vezes acrimoniosas mas a Espanha acabaria por aceitar o inevitável, pois Salazar não iria, obviamente, rejeitar o valioso convite que lhe fora dirigido pelos países fundadores. Por sua vez, em 20 de Setembro de 1948 tinha sido prorrogado, por mais dez anos, o Tratado de Amizade e Não Agressão.
1950-1960: Na década de 50 assiste-se a um curioso fenómeno – enquanto a Espanha inicia um gradual processo de modernização e de adaptação aos ventos da história, mitigando o seu isolamento (faria um acordo militar com os EUA em 1953, nomeadamente), o regime português fecha-se sobre si próprio. Apavora-se com o processo de descolonização africana, com o despertar dos movimentos independentistas bem aceite pelas potências ocidentais, treme perante a hipótese de perder Goa, Damão e Diu para a União Indiana, reprime severamente qualquer proposta de evolução do sistema político como foi tentado durante a campanha eleitoral para a presidência da república de 1958, indigna-se quando sectores da Igreja Católica, incluindo um membro do episcopado, como no caso do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, se atrevem a levantar problemas. O regime continua a falar em corporativismo como uma boa solução para o relacionamento social. Ambos os países entram para a ONU em 1955 mas Portugal adere por si só à Convenção de Estocolmo, fundadora da E.F.T.A. (Associação Europeia de Comércio Livre) em 1959.
1961-1968: O regime franquista aprofunda um processo de modernização da economia, abrindo-a ao exterior, fomenta a indústria, realiza investimentos públicos, opta pelo turismo como uma das traves mestras do crescimento económico, investe na educação e na formação profissional, aligeira o apertado controle sobre a cultura e sobre a circulação das ideias. Opera a descolonização de Marrocos e a independência da Guiné Equatorial. Apoia, apenas de forma mitigada, as teses oficiais portuguesas na ONU, segundo as quais Portugal não tinha colónias mas sim províncias ultramarinas. Em Portugal, o governo, que continua corporizado em Salazar, rejeita qualquer possibilidade de negociação na frente colonial e opta pela atitude do «orgulhosamente sós» face à hostilidade internacional. Entretanto, a partir de 1961, rebentam com grande violência as lutas armadas em Angola, Moçambique e Guiné, conduzidas por grupos de guerrilha bem treinados e bem armados. A resposta das Forças Armadas portuguesas vai arrastar-se até 1974, constituindo o fulcro de toda a política em Portugal. Salazar (como os seus próximos colaboradores) entende e não quer ver nem saber nada acerca das movimentações sociais desencadeadas pela luta contra o racismo nos EUA nomeadamente, pelos movimentos feministas e pelas organizações estudantis. As Universidades mantém-se à margem da inovação e da criatividade e o fechamento chega a extremos tão ridículos como a ausência de qualquer curso de sociologia em todo o país.
Encerra-se assim, com algum esfriamento, as relações entre os dois ditadores, cujas opções estratégicas já se encontram em planos bem distintos.
En la plaza de mi pueblo
Biografia de Ana Vicente
Sábado, 24.Jan.2009 at 08:01:37
Mme Ana Vicente.
Se tivér opurtunidade,leia “Morrir à Madrid”