O fascínio da autora, Clara Queiroz, pela personalidade de Emma Goldman resulta da impressionante actualidade da análise política, da defesa dos direitos das mulheres e dos trabalhadores, da justiça social e política e, sobretudo, da intransigente luta pela liberdade.
Cada obra acaba por ter algo de autobiográfico, mesmo que seja a biografia de outra personagem. A autora, cuja empatia com a biografada é muito grande, revê-se no seu pensamento e na sua personalidade e retira do silêncio para o público português esta personagem, malquista e malvista pelos hegemónicos na esquerda europeia durante tantos anos.
Através da narrativa escorreita do livro, assiste-se à vida de uma judia russa, nascida na Lituânia e emigrada para os EUA, onde se abriu para a revolução e para o anarquismo. Este seria, aliás, na sua vivência, intimamente relacionado com o feminismo. Emma Goldman participou também em reuniões com socialistas alemães que tentavam organizar o movimento operário norte-americano e acompanhou as lutas operárias pelas oito horas de trabalho.
Esteve presa durante dois anos e, em 1919, foi deportada para a Rússia com Berkman, seu marido. Aí, depressa descobriram que a revolução, na qual tantas esperanças tinham depositado, também encarcerava anarquistas e outros dissidentes. E ouviram da boca do próprio Lenine que a liberdade de expressão era um conceito burguês.
Acabaram por deixar a Rússia e passaram por vários países da Europa, onde assistiram ao nascer dos fascismos e à derrota da República espanhola. Emma Goldman viria a morrer no Canadá, em 1940, com 71 anos – quando o mundo estava já sob o jugo dos nazis e de Hitler, mas sem assistir ao Holocausto judaico.
Talvez valha a pena sublinhar algumas das suas preocupações mais constantes. Para além de explicar por que razão não podia aceitar o estado bolchevique, preocupou-se com a questão da necessidade de coerência entre os meios e os fins:
«Não há maior falácia do que a crença de que objectivos e propósitos são uma coisa, enquanto métodos e tácticas são outra. Esta concepção é uma potente ameaça à regeneração social. Toda a experiência humana nos ensina que métodos e meios não podem ser separados do objectivo último. Os meios empregados tornam-se, através do hábito individual e da prática social, parte integrante do propósito final; influenciam-no, modificam-no e, dentro em pouco, objectivos e meios tornam-se idênticos…»
Na Rússia, «os grandiosos e inspiradores objectivos da Revolução tornaram-se tão nebulosos e obscurecidos pelos métodos usados pelo poder politico governante que era difícil distinguir o que eram meios temporários e qual o propósito final. Psicologicamente e socialmente os meios influenciam e alteram necessariamente os objectivos. Toda a história do homem é uma prova contínua da máxima de que despojar os métodos de conceitos éticos significa mergulhar na profundeza da total desmoralização. Aí reside a tragédia da filosofia bolchevique tal como foi aplicada à Revolução Socialista. Que possa esta lição não ter sido em vão».
Esta longa citação, que faz lembrar outra, do escritor francês Albert Camus, «La fin justifie les moyens? Cela est possible. Mais qui justifie la fin?» («O fim justifica os meios? É possível. Mas quem justifica o fim?») é espantosa, pois remete para a ideia da já referida profunda actualidade do pensamento de Emma Goldman, uma mulher livre que pensou pela sua cabeça, independentemente dos dogmas e da ideologia que se tornaram hegemónicos na esquerda (?) europeia. Por isso, o seu legado foi renegado e esquecido, embora esteja hoje a ser relembrado por todo o mundo (basta ver a profusão de sites na Internet sobre essa anarquista feminista).
É mérito deste livro, que se lê com todo o interesse num ápice, lembrar Emma Goldman em Portugal, ao revelar não só a personalidade da mulher, anarquista e feminista, como a forma como ela viu, tão cedo, de que modo a confusão entre os meios e os fins poderia degenerar no totalitarismo.
Clara Queiroz, Se não puder dançar, esta não é a minha revolução. Aspectos da vida de Emma Goldman, Assírio & Alvim, Lisboa, 2008, 288 p.
Segunda-feira, 22.Set.2008 at 06:09:17
O ocidente produziu uma cultura fragmentada. Os meios e os fins, o corpo e o espírito, o cultural e o natural, e tantas outros entendimentos equívocos. Perdeu-se a ideia do todo, conceptualiza-se separadamente cada fragmento e arranja-se-lhe um nome. Criam-se assim entidades isoladas, com ser próprio. Que existem apenas na nossa cabeça.
Aqui em África existem ainda vestígios da visão unificada do homem antigo, na estrutura das línguas locais. Uma língua, na medida em que descreve uma forma de ver o mundo, é uma filosofia. Por exemplo, em emacua (língua do centro/norte de Moçambique?)não existe distinção entre “natural” e “cultural”.
Tenho uma costela de “anarca”. Vou anotar o livro na minha lista de aquisições.
nelson anjos
Segunda-feira, 22.Set.2008 at 10:09:58
A propósito de Emma Goldman, deixo a sugestão:
http://womenageatrois.blogs.sapo.pt/428193.html
Terça-feira, 23.Set.2008 at 11:09:02
Uma correção: Alexander Berkman não foi nunca marido de Emma Goldman. Foi seu amante durante um curto período, mas Goldman teve muitos amantes, nas diversas fases da sua vida, e em 1919 Alexander Berkman certamente já não era amante de Emma Goldman, tal como aliás Clara Queiroz deixa claro no seu livro (o qual, tenho a impressão, a Irene Pimentel não leu).
Terça-feira, 23.Set.2008 at 01:09:31
Obrigada pela correcção.De facto, Berkman e Goldman não se casaram, foram amantes durante um tempo e companheiros próximos toda a vida. Onde escrevi «marido», quando os dois foram deportados, em 1919, devia ter escrito «companheiros de sempre». Quando à apressadíssima «impressão» de que eu não teria lido o livro, que apresentei quando foi editado na Livraria Assírio e Alvim, considero-a uma insinuação mal-intencionada.
Segunda-feira, 29.Set.2008 at 02:09:15
É uma visão superficial e pequeno-burguesa dos problemas da revolução bolchevique, aquilo que Irene Pimentel escreve.
Esta visão insere-se, quer se queira ou não, na visão burguesa de que a revolução bolchevique foi uma sucessão de crimes. Esta é uma visão mal intencionada e redutora do que foi esse grande acontecimento na vida dos povos.
Aqui o vilão não é Staline. Os males do “totalitarismo” começaram logo com Lenine, que” prendia anarquistas e outros dissidentes”.
A visão burguesa, que nos é apresentada neste livro e nas ideias de Irene Pimentel, é que se não puder dançar esta não é a minha revolução, contraponho outra visão: a revolução não é um acto onde se toma chá, em salões requintados.
Claro que estas visões deviam ser aprofundadas, mas como não é este o espaço para isso, fiquemos então com as duas visões.
Manuel Monteiro
Quarta-feira, 01.Out.2008 at 02:10:28
Esta e outras revoluções também não são as minhas!
O companheiro de Moçambique,Nelson,fala bem:…”perdeu-se a ideia do todo….criam-se entidades isoladas ,com ser próprio.Que existem apenas na nossa cabeça.”
Bem vindos, o livro de Clara Queirós e o comentário de Irene Pimentel.
Há quem pense e pensará de outra maneira que a institucionalizada! Bem Haja!