A eleição de Humberto Delgado é a minha memória política mais antiga. Tão que posso dizer que foi o início da minha formação cívica e política que assim, apesar de o regime não me querer outra que a da Mocidade Portuguesa, simples e escorreita como a letrinha da fivela do cinto, foi precoce, pois tinha então apenas treze anos que acumulavam jogos, descobertas, patifarias também, mas sobretudo preparação intensa e afincada para passar no exame de admissão à perda da inocência.
Morava então no Barreiro “velho”, perto da marginal junto ao Tejo, onde a vista para Lisboa trazia um deslumbramento de mistério opressor de grandeza poderosa que transformava o rio, dando-lhe a majestade imaginada de um oceano, um daqueles que ainda só navegara por livros. Essa marginal, hoje em ruínas (li que a vão recuperar, o que me alivia no desconjunto dos tijolos da memória da minha infância), era o meu campo de liberdade, aquela lúdica e simplória fruição que, naquela época, era uma forma realizada do sonho próprio. Que, além disso, era também terreiro largo, mais comprido que largo diga-se em abono do rigor, para guerrear, competindo entre bandos, o “meu” e os dos “outros”, todos disputando ao metro quadrado terrenos de tribos, pelejas que se resolviam em disputa de bola ou, quando calhava, e por impulsos delinquentes quando os azeites se entornavam, à pedrada. Politicamente, até ali, eu só marchara com camisa verde de “lusito”, e não imaginava que aquilo fosse política. Na altura, pensava a minha militância obrigatória na MP mais como castigo, tamanhas eram as piadas e os risos de escárnio e mal dizer que suportava na rua quando era dia de ter de me enfeitar de fardado pelo regime. E a campanha de Humberto Delgado passou por mim sem nada me dizer. Nem o seu nome sabia.
No dia da eleição, uma espécie de electricidade sentia-se nas pessoas pela forma mais nervosa (e silenciosa) como se moviam e sussurravam, mas isso não evitou que, ganha a rua em dia livre de escola, galgasse com a ânsia costumeira a descoberta e ocupação da marginal do Barreiro, o meu terreiro, a minha companhia com o oceano Tejo. Os “meus” não estavam lá, os “outros” também não. Nem os pescadores de ocasião e do costume, incluindo os que, encostados à muralha, tentavam capturar caranguejos com um fio terminado numa cabeça de peixe-espada. No lugar destes, da “minha” gente, da gente “inimiga” e mais dos “neutros”, uma longa coluna de auto-blindados da GNR fazia uma fila belicamente escura e sinistra que vinha desde os limites das fábricas da CUF e se estendiam ao longo da marginal, da minha marginal. Não entendi que guerra era aquela, menos ainda a razão porque a nossa guerra breve de pedrada dera lugar a que os adultos nos quisessem imitar usando materiais de susto que só do cinema conhecia. Senti o aparato como uma profanação e recolhi a casa. Perguntando o que estava a acontecer, responderam-me baixinho “deixa-te estar em casa que hoje é o dia de se votar no Humberto Delgado”. Mais não perguntei, nem foi necessário para aprender a minha primeira aula política: aquela ocupação, à bruta, do meu “campo de batalha” não a ia perdoar e merecia retaliação: à pedrada ou como quer que fosse. E o tal Delgado, fosse quem fosse, logo ali enfileirando no meu altar de ídolos onde pontificava Sandokan, devia ser bem teso para que, contra os votos, merecesse tamanho aparato de meter medo. Por isso, quando recordo Delgado, penso sempre no seu parceiro no meu heroísmo imaginado, o bravo Sandokan.
Biografia de João Tunes
Terça-feira, 17.Jun.2008 at 12:06:59
Acabo de descobrir dois pontos de contacto com João Tunes: a paixão por Sandokan, o Tigre da Malásia, e Humberto Delgado como primeira memória política.
A coisa foi simples: Delgado era aviador, o que me parecia ser, então, a mais bela profissão do Mundo, também a do meu irmão mais velho, mas totalmente inacessível à rapariguinha míope e astigmática que eu era. Já as freiras do Colégio onde então andava eram, naturalmente, partidárias do contra-almirante. Entre os pilotos da B.A.1 e as freiras, a escolha pareceu-me óbvia. Não me lembro dos nomes das cúmplices no acto – já então era de bom conselho esquecer os nomes das cúmplices… – mas sei que, aproveitando um intervalo, enchemos os quadros negros de vivas a Delgado. E assim devo ao general a minha iniciação, aos 11 anos, nas artes da subversão.
Terça-feira, 17.Jun.2008 at 12:06:11
Fico feliz com a coincidência de partilha dos heróis do imaginário juve-infantil. Aliás, entre os “mais velhos” que por aqui andamos, poucos serão os que não tiveram a sua iniciação política com Delgado. Mas, francamente, era escusado apregoar publicamente que eu sou mais velho que a Diana.
Abraço.
Terça-feira, 17.Jun.2008 at 01:06:09
Pois eu associo Delgado a Kant – muito menos divertido, portanto.
Com a explicação, me declaro um tanto mais velha do que a Diana e do que o João: em Lovaina, onde tinha começado a estudar nesse ano lectivo, o professor de Filosofia Moderna pediu-me, em pleno exame oral, que lhe explicasse o que estava a passar-se em Portugal.
Terça-feira, 17.Jun.2008 at 02:06:13
A vantagem da idade é a de – assim não sobrevenha o sinistro Alzheimer – irmos tendo cada vez mais memórias. Assim me ocorreu logo outra história, ao ler a da Joana: a da má nota tirada a Geografia por, pouco tempo depois da entrada das forças indianas em Goa, ter respondido, num ponto sobre o Estado da Índia, que já não havia Estado da Índia. Também no capítulo Ensino, muitas histórias dessa época há para contar. Recordei algumas ontem, a ver “O Século das Mulheres”, de Maria Augusta Seixas, que passou no S.Jorge, integrado no Ciclo de Cinme e Vídeo do Congresso Feminista.
Terça-feira, 17.Jun.2008 at 02:06:50
Já que começámos o rol de memórias.
Com estas histórias do Delgado, ainda vivi bem em Lovaina.
Pior foi quando, em Janeiro de 61, fui acordada por uns belgas que me gozavam porque uns piratas portugueses tinham assaltado algures um barco. Com a comunicação social então existente, só algumas horas depois, quando na rádio alguém falou de «Santa Maria», começámos a perceber alguma coisa. O «começámos» refere-se a um pequeno prupo de portugueses, do qual destaco, por exemplo, a Maria Belo.
Até temos fotografias mascaradas de piratas que, só por decoro e porque este blogue trata de coisas sérias, é que não vou publicar por aí.
Terça-feira, 17.Jun.2008 at 02:06:11
Como estamos num registo de confessionário público:
Olhem que eu sou novíssimo e a memória política mais recuada que tenho é a… da campanha do Delgado. Ia fazer 6 anos, e não fazia a menor ideia de nada, claro. Mas recordo-me de ver cartazes do general e do Tomás colados numa parede da minha rua. E de uma tia, que se declarou anti-maçónica até ao final da vida, se entreter a rasgar os cartazes do opositor do almirante.
Quanto ao Sandokan, foi também um herói querido, mas um pouco depois. Agradeço-o às carrinhas itinerantes da Gulbenkian.
Terça-feira, 17.Jun.2008 at 05:06:48
A “falta” de idade acaba por ser uma vantagem em certos momentos. Quem, como eu, tem como primeira memória política o 25 de Abril (tinha 7 anos, ok, quase 8, em 74) associará sempre – esperança não confirmada, infelizmente – a política a um estado de transbordante euforia feliz.
Ah! Mas partilho convosco o Sandokan… mais a versão televisiva que a emiliana ;-).